Há reis, pescadores, espiões e até Camões sentados à mesa de Cascais

A gastronomia de um local não é apenas fruto dos saberes das suas gentes. É uma viagem pelos hábitos de todos os que por ali passaram. É isso que conta o livro Receitas de Reis e Pescadores: a história de Cascais.

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Cascais é descrito como "território de reis e pescadores, de gentes da terra e de gentes de outros lugares".

“A comida remete para a História, para os lugares onde se come ou para os lugares de onde viajaram até nós os produtos, os alimentos e as práticas a eles associadas”. Por isso, procurar as raizes da gastronomia de um determinado local — no caso Cascais — pode dar pistas para contar histórias de reis, pescadores, espiões, poetas, exilados, enfim, do passado e presente de um país. É este o ponto de partida de uma viagem guiada por Cláudia Silva Mataloto e Raquel Moreira, aluna e professora da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE), no livro Receitas de Reis e Pescadores.

Cláudia Mataloto explicou ao PÚBLICO que desde o primeiro ano do curso em Produção Alimentar em Restauração na ESHTE que se apercebeu que existia pouca informação relacionada com o património gastronómico do concelho de Cascais. Da falta de informação surgiu o projecto que dá a conhecer a gastronomia cascalense. “A ideia inicial de uma pesquisa e registo de receitas evoluiu para a procura dos fundamentos históricos e culturais locais em torno da gastronomia, resultando neste livro de Receitas de Reis e Pescadores. Memória e Património Gastronómico do Concelho de Cascais”, explicou. A ideia foi acolhida pela Câmara Municipal de Cascais (CMC) e a professa Raquel Moreira, docente na ESHTE, aceitou o desafio. E a comunidade académica envolveu-se. Deste esforço, nasceu a obra lançada esta semana.

Como um cardápio, a obra segue a ordem sequencial de uma refeiçãos: da Horta, com sopas e caldos; do Mar, com caldeiradas e arrozes; da Capoeira e da Caça, com assados e estufados; e, por último, Para adoçar a boca, onde se desmistificam os “bolos, bolinhos e outros docinhos”. As receitas incluem produtos típicos de Cascais, do mar e da terra.

Mas, muito mais que as receitas, o objectivo era encontrar o rasto destes repastos. E esse vem do Norte e do Sul, do pobre e do rico e também de muitos lugares do mundo.

“Pescadores vindos do Algarve e da Figueira da Foz, agricultores vindos das Beiras, do Alentejo ou de Trás-os-Montes, a Corte Portuguesa no início do século XX, famílias reais de outros países, exilados e espiões em fuga da Europa em guerra (II Guerra Mundial), estrangeiros que em diferentes épocas se encantaram com Cascais e com os Estoris. É um território de reis e pescadores, de gentes da terra e de gentes de outros lugares”, adianta Raquel Moreira.

“Cascais tem um património gastronómico que reflecte o seu território e a história daqueles que o habitam e habitaram. A investigação desenvolvida revelou mais do que estávamos à espera. Foi uma surpresa”, comentam as autoras.

Múltiplas influências

A investigação que permitiu desenvolver receitas de Reis e Pescadores assentou no contacto com as populações do concelho, na pesquisa no terreno e na pesquisa de fontes históricas. “Um dos aspectos mais interessantes que encontrámos foram as múltiplas influências na gastronomia local decorrentes de migrações de outras regiões do país, designadamente da Figueira da Foz, do Algarve, do Alentejo e da Beira, que ao longo do século XX se vão instalando em Cascais, trazendo consigo os seus hábitos alimentares. E há também os estrangeiros que escolhem o Estoril e Cascais para residir. Este é um território de confluência de populações com origens e culturas diversas e isso reflecte-se também no seu património gastronómico”, dizem as autores.

É claro que muito desse património, numa vila litoral, é obra dos pescadores. No entanto, os reis também contribuíram. Nos doces, com o “Bolo Real”, identificam influências da presença da Corte e os gostos do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia. Na secção “Da Capoeira e da Caça” encontramos a receita de lebre preferida de D. Carlos de Bragança.

Também Luís Vaz de Camões marca presença e influencia uma das receitas criadas. Em pagamento de uma quadra, o 4.º Conde de Monsanto prometeu a Camões uma galinha, enviando apenas meia galinha. Em resposta, o poeta escreveu: “Cinco galinhas e meia/deve o Senhor de Cascais/e meia vinha cheia/ de apetite para mais”.

Esta é uma das histórias que inspiraram as receitas criadas pelos alunos da ESHTE. Neste caso, “Galinha Recheada a Camões”. Os alunos da licenciatura em Produção Alimentar em Restauração tiveram a oportunidade de participar na elaboração deste livro ao confeccionarem novas receitas com ingredientes da região e ao adaptarem receitas históricas para o presente.

Para as autoras, o livro representa para o concelho “a identificação, sistematização e registo de um património gastronómico que se encontrava disperso ou não identificado, e que com este livro se constitui como um factor de identidade e um legado às gerações actuais e futuras.”

Questionadas acerca da sua receita preferida no livro, Cláudia Mataloto destaca “a das Chatas, porque é uma criação minha e de um colega, onde houve a preocupação de confeccionar um doce que pudesse ser representativo de Cascais”. Raquel Moreira não tem uma receita favorita. “Há várias receitas e aspectos históricos que me despertam a atenção, como a empada de congro com funcho-marítimo, as receitas de galinha e de perdiz, com destaque para a galinha recheada a Camões”.

Receitas de Reis e Pescadores - Memória e Património Gastronómico do Concelho de Cascais foi lançado nesta quinta-feira, na Casa Sommer, em Cascais. Editado pela Casa das Letras, do grupo LeYa, estará disponível no dia 10 de Outubro. A obra resulta de uma colaboração entre a Câmara Municipal de Cascais e a Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril.

Texto editado por Ana Fernandes

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