Universidade do Algarve revela o Portugal profundo, contado pela tradição oral

Mais de dez mil versões do romanceiro tradicional português estão disponíveis em plataforma digital. O projecto romanceiro.pt, com mais de 3600 inéditos, revela retalhos da vida de um país que ainda não perdeu a memória.

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Ramos Rosa publicou vários livros de ensaios que marcaram gerações de leitores de poesia David Clifford

Muitas das estórias que a História não conta estarão, a partir deste sábado, acessíveis a todos através de uma plataforma digital. O projecto romanceiro.pt, desenvolvido pelo Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve (Ualg), funcionará a partir da biblioteca da Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG), em Querença. O acervo é constituído por 10.096 versões do romanceiro tradicional português, a que se juntam 3.632 inéditos.

O coordenador da iniciativa, Pedro Ferré (vice-reitor da Ualg), destaca a importância deste trabalho, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian: “Este arquivo é precisamente a colecção de todos os romances publicados em Portugal desde 1828 até aos nossos dias”. Algumas dessas peças, diz, “são verdadeiramente estórias da História”, registadas em 660 horas de gravações. Assim, milhares e milhares de versões coligidas em Portugal, Espanha e nos países da diáspora portuguesa e espanhola ficam ao alcance de um clique: romanceiro.pt. O ministro da Cultura, João Soares, preside à inauguração do projecto, a cargo de três investigadores da Ualg: Pedro Ferré, Mirian Tavares e Sandra Boto.

Com o êxodo dos campos para a cidade, observa Pedro Ferré, “perdeu-se uma certa vitalidade na cadeia de transmissão da memória que era feita de pais para filhos”. Segundo os investigadores, o género poético do romanceiro tradicional circula desde os finais da Idade Média na memória dos povos de expressão portuguesa, galega, castelhana e catalã, difundindo-se de geração em geração. Trata-se de um património imaterial de uma “riqueza ímpar que importa preservar”. Do Minho ao Algarve, passando pelos Açores e Madeira, é possível encontrar no acervo, a cargo da FMVG, cerca de 12 mil documentos que retratam uma outra face do país que não perdeu a memória. “Acho que isto é um passo importante para o estudo do romanceiro português”, enfatiza.

Pedro Ferré estuda o romanceiro do ponto de vista literário desde 1980, fazendo recolhas em Portugal e Espanha. Uma das razões porque este género de manifestação cultural sobreviveu, diz, é porque são “textos que dizem qualquer coisa à colectividade, funcionando no fundo com uma espécie de mandamentos sobre o que se deve fazer”. E a tradição de quem conta um ponto aumenta um ponto, mantém-se? “Sim, quem conta um conto, acrescenta um ponto”. Mas, atenção: “os conhecedores desta linguagem sabem que existe uma gramática própria” a ter em consideração no acto de recitar, alerta. Só sobre a Nau Catrineta, de Almeida Garrett (Lá vem a Nau Catrineta, que tem muito que contar! Ouvide, agora, senhores, Uma história de pasmar…), existem mais de 200 versões.

Os textos do romanceiro, acolhidos pela FMVG, incorporam o trabalho do Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Ualg, tendo em conta as versões que foram “retocadas” ao longo dos tempos. Sobre a ilha da Madeira, diz Pedro Ferré, até 1981, ”só se conhecia o romanceiro da Madeira pelas versões profundamente retocadas de Rodrigues de Azevedo. Não conhecíamos a tradição da Madeira”. No Algarve, Estácio da Veiga foi tão “longe ou mais do que Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Graças a recolhas recentes, adianta, “podemos agora ver onde se corrigiu e refundiu”.

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