Um amor proibido, fascismo q.b. e pasta: eis a receita do La Gondola

A história do La Gondola, que fecha neste domingo, tem as suas raízes na segunda guerra mundial. O primeiro restaurante italiano de Lisboa nasce pela mão de um casal fugido de uma guerra que se adivinhava perdida.

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O casal e a filha
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Livro de honra com assinaturas da alta sociedade
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Livro de honra com assinaturas da alta sociedade
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O casal mudou-se depois para o Brasil
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Maddalena Ranedda era jornalista
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Na ementa estavam também conselhos de gastronomia

Apesar de tudo, em Portugal não se vivia mal. “A cerimónia da bênção aos lugres bacalhoeiros revestiu-se este ano de excepcional brilho”, contava o Diário de Lisboa. “Os terrenos ribeirinhos de Belém encheram-se de uma multidão de muitos milhares de pessoas, entre as quais muitas centenas de senhoras e numerosos oficiais da Armada”, continuava o jornal, que dava conta da presença de Óscar Carmona, do cardeal Cerejeira e de membros do Governo no evento.

Esta era a peça jornalística com mais destaque na primeira página do vespertino naquele domingo, 29 de Abril de 1945, mas o jornal também trazia uma notícia relevante, embora breve. “Mussolini foi fuzilado com alguns dos seus colaboradores”, lia-se em título, logo abaixo da fotografia do ditador italiano.

Numa moradia da Avenida de Berna, a novidade foi recebida com consternação. “Quando o Mussolini morreu, o meu avô ficou muito abatido. A minha mãe já era crescida e ficou toda contente. Gritou ‘boa!’. Foi a primeira e única vez que ele lhe deu um grande estalo.” Paula Mandillo é neta de Enrico Mandillo e Maddalena Ranedda, um casal que se refugiou em Lisboa no fim da Segunda Guerra Mundial e que, poucos meses depois do fuzilamento de Mussolini, abriu um dos mais emblemáticos restaurantes da capital: o La Gondola, que fecha definitivamente este domingo.

Enrico e Maddalena fugiram de Itália quando a guerra já estava perdida e chegaram a Portugal com a ajuda de amigos fascistas. Jornalista, correspondente de guerra, poeta e oficial de Marinha, Enrico Mandillo era um entusiasta do fascismo italiano, tinha escrito panfletos e livros sobre o assunto. “Achava que o Mussolini era uma pessoa de bem, acreditava genuinamente naquilo”, conta a neta Paula do que ouviu dizer, porque já não chegou a conhecer o avô.

A história do casal é digna de um filme que está à espera de ser feito. Maddalena Ranedda nasceu na Sardenha em 1910, numa “família com muitos irmãos e muito pobre”, mas deu-se bem na escola e conseguiu sair da ilha. “Aos 18 anos foi para a Sociedade das Nações (SDN), em Genebra, para ser tradutora. No comboio encontrou um senhor que tinha mais 20 anos do que ela e apaixonaram-se”, relata Paula Mandillo. Era Enrico, claro. Mas havia um senão na história romântica: “Ele era casado e tinha duas filhas.”

Um contratempo, mas não o pior. “A minha avó engravidou, mas só se apercebeu aos cinco meses. Foi um problema.” No final dos anos 20, era um escândalo uma rapariga solteira ficar grávida. A família não podia saber, a SDN também não. Com a ajuda de alguém, Maddalena arranjou uma baixa médica, mudou-se para Génova e teve lá a bebé, Enrica, mãe de Paula. “Ela pôs a minha mãe num convento ao cuidado de uma ama e de umas freiras. Ao fim de um ano foi buscá-la e levou-a para um colégio de freiras em Roma.” Como Enrico era casado, para que as religiosas aceitassem a menina, “tiveram de dizer que eram tios dela”. A mentira manteve-se por muito tempo. “Só aos 18 anos, quando já estavam em Lisboa, é que a minha mãe soube que era filha deles”, conta Paula.

"A gastronomia não é objecto de luxo"

No início de 1945, quando já era evidente que a guerra estava muito perto de terminar, Maddalena e Enrico (de novo solteiro, depois de anulado o casamento) começaram nova vida em terras portuguesas. Alojaram-se então numa espaçosa moradia da Avenida de Berna, quase na esquina com a Praça de Espanha e fronteira à Feira Popular (hoje Fundação Gulbenkian). A casa pertencia a Fernando de Almeida, médico, que em Julho desse ano a arrendou ao casal.

A renda era caríssima: 3.200 escudos. E o restaurante que Maddalena e Enrico montaram também não era para qualquer bolso. O La Gondola foi o primeiro restaurante italiano em Lisboa e tinha uma cozinha “muito, muito elaborada”, segundo Paula Mandillo. No livro de honra, que a neta do casal ainda conserva, encontram-se algumas das ementas que Maddalena preparava. Cappelletti verdes, feitos à mão um a um, com manteiga e parmesão. Crepes de lagosta à italiana. Cabrito assado à romana. Ervilhas com presunto. Bolinhas de batata. "Eu tenho um livro de receitas da minha avó e não percebo absolutamente nada do que lá está", conta Paula.

Ao lado da lista, mensagens que traduzem a filosofia da casa. “A gastronomia não é objecto de luxo, é indispensável para se gosar [sic] de boa saúde.” Ou: “Um mau café inutiliza por completo a refeição mais cuidadosamente preparada.” E ainda: “Fumar antes do café é crime sem perdão. Não pode ser praticado por gastrónomos.”

“A minha avó era uma cozinheira exímia, aquilo era muito requintado”, conta Paula, que se lembra de Maddalena manter exactamente os mesmos padrões, muitos anos depois, quando já não tinha o restaurante. “Eu não me esqueço que, aos cinco anos, ela nos obrigava [aos netos] a bater as natas com dois garfos e ai de quem parasse!”, ri-se Paula. Ou quando ia à charcutaria Martins e Costa, desaparecida no incêndio do Chiado, de “ensinar aos empregados que o presunto tinha de ser cortado para ficar quase transparente”.

O La Gondola “era um orgulho muito grande” para Maddalena, que liderava a cozinha enquanto Enrico ficava na sala a receber os clientes. E foi isso que afundou o negócio. “O meu avô gostava muito de conversar e jogava. Apostava refeições e vinhos. Aquilo não era rentável com produtos de requinte”, diz Paula Mandillo. Perante o “flop financeiro”, o casal acabou por trespassar o restaurante em 1951.

Foram apenas seis anos, mas marcaram a cidade. Nesse período do pós-guerra, o La Gondola foi frequentado por muita realeza europeia, individualidades do Governo e da Câmara Municipal de Lisboa, solistas do São Carlos, artistas e personalidades várias. Uma das páginas do livro de honra do restaurante tem as assinaturas de uma duquesa de Génova, de uma mulher com os apelidos Bourbon, Orleans e Bragança, de uma princesa da Roménia.

Quando passaram o restaurante, em 1951, Enrico e Maddalena viviam em Sintra. Pouco tempo depois, emigraram para o Brasil. Enrico Mandillo morreu em 1959, Maddalena voltou a Lisboa e tornou-se correspondente da agência italiana de notícias, a ANSA, em 1965. “Antes de haver telex, ia lá a casa o SNI [Secretariado Nacional de Informação] pôr os jornais à porta”, recorda Paula, que assistiu à cena muitas vezes. “Ela estendia-os na cama, lia tudo e, se houvesse alguma coisa relevante, às quatro da manhã ia para o aeroporto mandar os textos pelo primeiro avião.”

A avó de Paula Mandillo só voltou ao La Gondola uma única vez, muitos anos depois. Mais democrático, o restaurante era então uma casa afamada e acarinhada por muitos lisboetas. Assim se manteve até agora, momento em que fecha de vez para dar lugar a um edifício de escritórios do Montepio. Maddalena Ranedda morreu em 2006, com 96 anos.

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