Em Lisboa, um plano a três anos para a habitação “é impensável”

Sandra Marques Pereira, socióloga, considera que Lisboa entrou tarde e muito rapidamente no mercado imobiliário global. Avisa que é urgente olhar “para isto de forma muito séria”.

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Sandra Marques Pereira considera que a pressão imobiliária é irreversível Enric Vives-Rubio
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Santa Maria Maior, Misericórdia e Santo António são as freguesias com maior pressão imobiliária Rui Gaudêncio
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Santa Maria Maior, Misericórdia e Santo António são as freguesias com maior pressão imobiliária Rui Gaudêncio
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Santa Maria Maior, Misericórdia e Santo António são as freguesias com maior pressão imobiliária Rui Gaudêncio

Um "turismo imparável" está em Lisboa "para durar" e é pequena a margem de manobra para dominar um mercado que é global. Disto Sandra Marques Pereira, socióloga, investigadora e docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), não tem dúvidas. Com as vantagens e desvantagens que isso acarreta. Assim, qual o futuro para Lisboa, onde a massificação turística atrai investidores e afastam residentes do centro da cidade? É o mote para dois dias de debate e conferência, esta segunda e terça-feira, no ISCTE.

Na conferência “Lisboa, que futuro?”, organizada pela Dinâmia’Cet-IUL – Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território do ISCTE, a gentrificação (processo de substituição na cidade de classes mais baixas por classes mais altas) e o displacement (mudança da população para outras zonas da cidade devido a diferentes pressões) vão ser discutidos por especialistas de cidades que experienciam fenómenos semelhantes (Nova Iorque, Vancouver, Milão, Paris e Barcelona) e problematizados por intervenientes no turismo, comércio, imobiliário lisboetas e moradores (representados pelo Movimento Quem Vai Poder Morar em Lisboa). É um debate que quer chegar também à sociedade civil – há mais de 450 inscritos. A entrada é livre.

Especialista em sociologia urbana e coordenadora da conferência, Sandra Marques Pereira está segura de que os efeitos sentidos hoje – especulação e pressão imobiliária, crescimento do turismo, reabilitação dos edifícios – fazem parte de um processo “irreversível”. “Em fase inicial”, em Lisboa. É, por isso, necessário "picar ideias e referências de várias cidades". Monitorizar as transformações e estudar a possibilidade de limitar os licenciamentos de empreendimentos turísticos são cartas que coloca em cima da mesa.

A pressão do turismo é um fenómeno recente, em Lisboa, mas as mudanças acontecem a grande velocidade. Esta rapidez pode mudar a forma como se pensa a intervenção na cidade?
Hoje não podemos pensar em modos tradicionais. Esta mudança é tão rápida que se vamos fazer um estudo, passado cinco meses está completamente desactualizado. Portanto, temos que arranjar mecanismos de monitorização em tempo real destas transformações. E as políticas públicas devem ir ao encontro desta velocidade. Medidas ágeis, de aplicação imediata. Neste momento, um plano de intervenção na cidade a três anos é uma brutalidade, é impensável. O que era pensado como médio e longo prazo, neste desenvolvimento da cidade de Lisboa está completamente subvertido, porque este processo é estonteante.

Como pode ser feita esta monotorização?
Vamos ter um painel com o Yann-Fanch Vauleon do Atelier Parisien D’urbanisme/APUR, que é um observatório das transformações na cidade, e até na região. O observatório utiliza os dados abertos, alguns disponibilizados em tempo real, e analisa essa informação em tempo útil para enformar as políticas públicas.

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Enric Vives-Rubio

Vimos as mudanças a acontecer noutros países e o fenómeno tornou-se premente nos indicadores, em Lisboa, em 2014. O que o provocou?
Tem a ver com o "ressurgimento" dos centros históricos das cidades. Durante algumas décadas, os centros entraram num processo de perda populacional e de desvalorização do imobiliário. Com a crise, as pessoas não tinham crédito e as empresas de promoção imobiliária nacionais foram ao ar. Os preços do centro da cidade, que já não eram altos, ainda desceram mais. A autarquia e o governo central têm aqui uma oportunidade: como não havia recursos públicos, fazem uma espécie de parceria tácita entre privados e a economia. Há a captação de investimento estrangeiro, há o marketing urbano internacional da cidade de Lisboa, há a facilitação dos processos de reabilitação. O imobiliário, o turismo e a reabilitação alimentam-se uns aos outros. E em 2014, começa a escalar o investimento estrangeiro e os efeitos desse investimento. De forma muito evidente, em 2015, 2016 e 2017.

Quem sai a perder?
Aqui o elo mais fraco é sempre o arrendatário. Aqueles que foram para o centro e compraram, podem ganhar. Os que arrendaram estão numa posição muito débil. São muitas vezes pessoas com grandes níveis de precariedade profissional, têm rendimentos muito baixos que não são minimamente compatíveis com estas lógicas globais de imobiliário. Toda a gente reconhece que temos aspectos positivos e aspectos mais problemáticos. Para mim o mais importante é a transformação do imobiliário que está subjacente a tudo isto. Falamos imenso do turismo, que é a coisa mais visível e muito importante, mas a montante o que temos é uma inserção muito tardia, mas muito rápida e recente da cidade de Lisboa no mercado imobiliário global. É muito urgente que se comece a olhar para isto de forma muito séria. Desde logo, porque o processo é rapidíssimo e é global. Ter esta força da globalização é absolutamente avassalador e temos uma margem de manobra muito pequena sobre esse fenómeno.

Defende a regulamentação possível. Isto pode passar por quotas para limitar os licenciamentos no turismo?
Acho que isto tem que ser muito pensado, mas eventualmente sim. Mas acho que não pode ser só uma medida. Deve ser um pacote de medidas, feitas de modo a que se perceba exactamente o objectivo e os efeitos não pretendidos de cada uma. Limitar o alojamento pode manter os preços altos, pode trazer investimento internacional capaz de superar o nacional, etc.

Limitar em si faz sentido, porque a proliferação de residência turística gera problemas, não só na inflação dos preços do mercado, mas como ameaça à função de residência permanente. Há uma diversidade social, funcional e do património que é preciso manter e temos que perceber como é que isto se consegue fazer. Barcelona trará certamente muita informação para este debate. 

Este processo, de gentrificação e displacement, pode de alguma forma ser revertido ou é um caminho de não retorno?
Realisticamente, acho que estas lógicas de globalização do mercado imobiliário, da expansão do turismo urbano são irreversíveis, são imparáveis. Mas se ficarmos de braços cruzados, a exponenciação de todos os efeitos é muito maior. Tendo a consciência de que a margem de manobra dos governos locais é limitada, mas não é impossível, essa acção deve ser o mais activa possível. E para isso há a taxa turística, mas também há as receitas do Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT). Há muita receita, o que permite que uma pequeníssima percentagem seja alocada para permitir algum equilíbrio.

O que é possível prever para os próximos anos?
Sabemos que isto vai subir. Os alvarás de obra aumentaram nos últimos anos, isso quer dizer que a curto prazo vamos ver esses efeitos. Sabemos que existem três freguesias onde o investimento está completamente concentrado e a pressão imobiliária é enorme: Santa Maria Maior, Misericórdia e Santo António. Agora começa a ir para Arroios e São Vicente. Sabemos que, ao contrário do que se passava em 2005, há uma disparidade de preço da habitação nas diferentes zonas da cidade. O futuro tende a reforçar estas tendências todas. Eventualmente a expandir o fenómeno no território. Expansão que obedece a factores: a proximidade do centro e o património. Este fenómeno assenta no fascínio pelo património pré-moderno, por isso, tudo o que tem património edificado anterior aos anos 40 é uma zona de risco, digamos. Já se fala no Beato, porque tem o potencial dos lofts. É muito importante perceber as ondas de choque deste fenómeno noutras partes da cidade. 

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