Um livro para fixar as marcas que a pesca do bacalhau deixou em Caminha

Em Caminha, homens e mulheres guardam em tatuagens ou fotografias em esmalte sinais desses tempos em que se namorava à distância, e ver os filhos crescer era um luxo raro.

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Adelino Quintas, um dos homens fotografados por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Ana Verde, uma das mulheres fotografadas por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Belmiro Pereira, um dos homens fotografados por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Detalhe de uma das tatuagens fotografadas por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Rosa Santos, uma das mulheres fotografadas por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Detalhe de um dos medalhões fotografados por António Barreiros e Jorge Meira DR
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Ana Pereira, uma das mulheres fotografadas por António Barreiros e Jorge Meira DR

Tatuavam-se a bordo, com tinta-da-china, materializando no braço a saudade da terra, da mãe, da mulher ou dos filhos, ou fixando, na dupla condição das sereias, o seu estatuto de homens também eles divididos entre o mar, nas lonjuras da Terra Nova e da Gronelândia, e a terra deixada para trás durante longos meses. Elas, por cá, “guardavam-lhes” a cara, nas fotografias em esmalte que levavam, e levam, ao peito. Agora, essas marcas são também um livro, e uma exposição de fotografia. Viagens à Terra-Nova II, de Aurora Rego, tem “bota-a-baixo” marcado para este sábado, pelas 17h, na praça da República, em Caminha.

Aurora Rego, historiadora, pôs o pé na água há anos e nunca mais o tirou de lá. Natural de Vila Praia de Âncora, de onde partiram centenas de homens para a pesca do bacalhau, esta técnica da divisão de Cultura do município de Caminha vem liderando uma pesquisa em torno da Faina Maior e, depois de ter escrito, no ano passado, Viagens à Terra Nova – Memórias de um Tempo, uma obra essencial para se conhecer a fundo o impacto, neste concelho, deste tipo de pesca longínqua na qual participaram 740 pescadores do concelho, a maioria deles ancorenses, voltou a lançar a linha, desta vez em parceria com António Manuel Garrido Barreiros e Jorge Simão Meira, que assinam as fotografias dos 16 homens e 36 mulheres a partir dos quais se desenvolve o novo projecto.

Viagens à Terra Nova II (Marcas), uma edição do município, é o resultado desse segundo lanço, e debruça-se, desta feita, sobre as marcas que perduram desses anos em que homens e mulheres viviam grande parte do tempo separados pelo Atlântico. Marcas psicológicas, reveladas em longas conversas que aqui surgem resumidas, marcas na pele, tatuadas, quase sempre, a bordo dos navios, pelos próprios camaradas, marcas levadas ao peito, ainda, pelas mulheres que, dizia uma delas, assim “guardavam a cara deles”, enquanto eles se aventuravam pelos mares do fim do mundo, para usar a expressão cunhada, também em livro, em 1958, por Bernardo Santareno.

Em declarações ao PÚBLICO, Aurora Rego explica que já durante as entrevistas que fez para o primeiro livro se tinha apercebido da existência dessas marcas profundas. Recorda até uma mulher que destruiu todas as cartas que trocara com o marido porque, após a morte dele, num incêndio no Porto de St. John’s, na ilha da Terra nova, no final dos anos 70, as lia dia após dia, não se conseguindo libertar daquela perda. Para outros, que não guardam nas suas biografias as notícias da morte entregues, num curto telegrama, por alguém da capitania, as memórias, ainda que duras, por vezes, são mais suportáveis, e, no caso dos homens, nota, as perguntas sobre as tatuagens não raras vezes traziam respostas carregadas de saudade do convívio a bordo e dos companheiros.

Esta obra é também uma oportunidade para se conhecer o papel das mulheres em comunidades piscatórias marcadas pelo recrutamento de boa parte dos homens para a pesca longínqua. Com os pescadores a passar meio ano ou mais longe da família, elas eram namoradas à espera do correio, mães substituindo-se, também, aos pais, gestoras, solitárias, de uma vida doméstica centrada no esforço, árduo, para obtenção do dinheiro necessário para a compra de uma casa, sinónimo de uma vida independente dos pais ou dos sogros, recorda Aurora Rego. Que promete voltar a lançar a linha, para novas memórias. 

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