Um japonês vestido de gato ou o que o Porto está a ensinar a Tóquio

Há três anos que uma casa de espectáculos de Tóquio anda a aprender com a Casa da Música, do Porto, a criar um serviço educativo na instituição. Esta semana houve mais uma visita a Portugal.

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Nelson Garrido
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São 111 miúdos numa sala, os formadores, alguns curiosos a apreciar os ensaios e quatro japoneses muito atentos a tudo o que acontece, durante mais uma actividade do Serviço Educativo da Casa da Música, no Porto. Os miúdos, alunos de três escolas do país, batem com as mãos no peito, castigam o chão com um pé e cantam. E quando cantam, Akiko Watanabe, balança-se, bate palmas, entusiasma-se. Ela não é uma mera espectadora. Akiko, como os seus colegas, está a aprender. Um dia, lá no Japão, há-de haver um serviço educativo feito à semelhança deste, com as devidas adaptações. E ela faz parte desse caminho.

Não é bem uma ponte aérea, mas desde 2013 que há gente a circular com regularidade entre a Casa da Música, no Porto, e a Tokyo Bunka Kaikan, na capital japonesa. De cá seguem formadores que vão ajudar a desenvolver o serviço educativo da casa de concertos japonesa, de lá vêm “os melhores” formandos, para sentirem e verem como tudo acontece na Casa da Música. Desde o início da colaboração entre as duas instituições que nove escolhidos já cruzaram a distância entre o Extremo Oriente e o Porto. Agora, chegou a vez de Akiko Watanabe, soprano, Nobutaka Yoshizawa, tocador de koto (uma espécie de cítara japonesa) e Yukako Takata, pianista, rumarem ao Porto, acompanhados de Chizu Fukui, a responsável pelo desenvolvimento do serviço educativo da Tokyo Bunka Kaikan e por todo este intercâmbio estar a acontecer.

Chizu Fukui, antiga pianista, é a única dos quatro que fala inglês, e passa parte do tempo a servir de intérprete. Viveu em Itália durante alguns anos, investigando a educação musical em serviços públicos, e acabou por se deparar com a experiência da Casa da Música numa conferência em Berlim, Alemanha, desenvolvida pela RESEO, a rede europeia para a educação de ópera e dança de que a instituição do Porto faz parte e em que a japonesa participou de forma independente. “Disseram-me que a última conferência, organizada pela Casa da Música, tinha sido maravilhosa e que tinham ficado todos muito emocionados. Eu ia regressar ao Japão e ainda não sabia o que ia fazer, mas perguntei ao Jorge Prendas se podia vir cá, ver o trabalho que faziam”, diz. O director do serviço educativo “disse logo que gostava de colaborar”, relembra Chizu Fukui.

Quando, em Abril de 2011 regressou definitivamente ao Japão e começou a trabalhar com a casa de concertos de Tóquio, as sementes estavam lançadas. Em 2013, as viagens Porto-Tóquio-Porto começaram. “Tem sido um enorme privilégio e honra sermos reconhecidos por uma instituição como a Tokyo Bunka Kaikan”, diz Jorge Prendas, que já esteve seis vezes no Japão e se prepara para regressar, com a equipa de formadores, em Julho deste ano. “O grande desafio é conseguir adaptar o nosso modelo ao que é a realidade cultural e a mentalidade japonesas. Não poderíamos pura e simplesmente copiar o modelo português, não é essa a nossa perspectiva”, diz.

Chizu Fukui explica que foi exactamente essa ideia que Jorge Prendas lhe transmitiu, quando lhe disse que poderia continuar a ir ao Japão desenvolver workshops, mas que isso não iria fazer crescer raízes. Que o mais importante era ter japoneses a fazê-lo. A Casa da Música podia ensiná-los, mas depois o trabalho teria sempre de continuar em casa.

É isso que tem sido feito. Devagar, com a implementação, em Tóquio, do projecto Outreach, que é, para já, a face visível do serviço educativo japonês e que tem já envolvido algumas escolas da cidade. Nobutaka, Yukako e Akiko descrevem, com facilidade, o que mais os marcou no intercâmbio com os portugueses e riem-se quando descrevem experiências que não lhes passariam pela cabeça, se não tivesse existido o contacto com a equipa da Casa da Música.

Como mascararem-se de animais num workshop para crianças. Nobutaka ri-se abertamente enquanto descreve como actuou “com um fato de gato” para um grupo de crianças. A Casa da Música desafiou o grupo a desenvolver uma actividade para apresentarem na visita ao Porto. O resultado foi Nyao nyao chu chu, o equivalente a “miau miau” e seja qual for o ruído que um rato fará. Nobutaka vestiu-se de gato, Yukako, ao piano, de rato. Aprenderam algumas expressões em português, que agora repetem sem grande dificuldade – “bom dia”, “como te chamas”, “vamos cantar juntos”, “vamos semear”, “vamos ao circo” – e entraram num mundo novo. Nobutaka garante que quer levar este gato português até ao Japão, para ver como corre.

O músico diz que o surpreendeu o contacto com as crianças, até o físico. “Tocar as crianças” não é mal visto no Japão, mas não seria algo que faria de livre iniciativa, num workshop, se não tivesse visto o trabalho português. Akiko deixou-se encantar com “o ritmo” que encontrou por cá. “No Japão não somos tão rítmicos, não há o hábito de expressar o que nos vai no interior. De pôr esse sentimento cá fora. Tenho a certeza que as pessoas têm este ritmo dentro do corpo, mas não têm ideia de como o expressar", diz.

Yukako ouve a colega e concorda com tudo o que ela diz. É isso mesmo, diz. Mas é mais. Os workshops realizados pela equipa da Casa da Música no Japão foram “muito divertidos, mas não como aqui”, diz. Aqui, que é como quem diz nas salas de ensaios da Casa da Música, onde o pessoal do Serviço Educativo desenvolve vários workshops, como aquele a que os quatro japoneses assistiram, na passada sexta-feira. “Aqui é diferente, há mais conversa, muito envolvimento e ligação às crianças”, diz.

Os visitantes da Tokyo  Bunka Kaikan apreendem tudo isto sem perceberem uma palavra do que se vai desenrolando à sua frente. Os gestos, as expressões faciais, a música, a forma como tudo flui, é suficiente para apreenderem um sentimento e forma de estar que querem levar para o Japão. Com calma.

Jorge Prendas, que já leva mais de dois meses de trabalho em Tóquio, se somarmos todas as visitas que lá fez no âmbito desta colaboração, diz que as diferenças entre as duas culturas são mesmo muito grandes. Falemos do toque, que impressionou Nobutaka. “Um dos exercícios de ice-breaking que fizemos em 2013 era levar as pessoas a abraçarem-se. Eram 20 e poucos formandos e reparamos que não se tocavam. Era muito estranho, porque faziam de conta que se abraçavam mas não se tocavam”, diz. Mas o que o director do Serviço Educativo da Casa da Música mais sentiu de distintivo no contacto com os japoneses envolvidos no projecto de colaboração foi o perfeccionismo. “Nós jogamos muito no risco. Não temos medo de arriscar quando propomos um projecto novo, quando sai fora do normal. Eles não arriscam nada. O erro é imperdoável. Tem de estar tudo perfeito para poder ser mostrado, não pode haver falhas”, diz. Jorge Prendas acredita, contudo, que o contacto que vários dos envolvidos têm tido com países ocidentais, a começar pela própria Chizu Fukui, ajudará o pessoal da Tokyo Bunka Kaikan a avançar para uma maior capacidade criativa, sem pôr de lado o modo de ser japonês.

E isso já se nota entre os três formandos que passaram uma semana no Porto. Nobutaka ainda parece perplexo por a Digitópia (o laboratório de criação e experimentação de música electrónica da Casa da Música) estar aberta a todos. Mas é mesmo assim? Basta aparecer? É, explicam-lhe e ele fica a pensar naquilo.

Yukako diz que o que mais a marcou foi “poder sentir que os participantes nos workshops se podiam expressar livremente”. Que, fizessem o que fizessem – mesmo sem a perfeição de que falava Jorge Prendas – o sentimento que recolhia das crianças era: “Eu sou aceite”. “Construir este tipo de relação é muito importante. Quero levar isto para Tóquio”, garante.

Já Akiko, que se balançara entusiasmada ao som das vozes portugueses, tem uma catadupa de vontades a saltar-lhe da boca. “Depois de tudo o que vi aqui, gostava de ter mais competências e mais ideias, mais instinto. Desenvolver a sensibilidade. Ajudar as pessoas a tirarem cá para fora o que têm lá dentro para expressar. Aumentar os horizontes e apoiar muitas pessoas”. Se houvesse um prémio para o entusiasmo, a soprano ganhava.

Chizu Fukui vai traduzindo tudo. O rosto enche-se de verdadeira admiração quando fala no trabalho da Casa da Música e diz que Jorge Prendas está sempre a lembrá-la que está a olhar para uma experiência de dez anos e não de um. Para ter calma, que um dia lá chegará. Mas ela nem quer pensar que a parceria pode terminar em 2018. “Espero que seja para sempre”. Até porque há muito ainda por fazer. Chizu quer investir no trabalho com as pessoas com deficiência e com os mais velhos. Estes são, aliás, o grande foco da sua atenção para os próximos tempos. “O primeiro problema social no Japão é o envelhecimento da população. As pessoas vivem muito tempo, sofrem de solidão. Descobrem-se pessoas mortas em casa há cinco meses”, diz. Aqui também, respondemos-lhe. Não somos assim tão diferentes.

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