Ser centenário tem futuro, “é bom e recomenda-se”

Morremos cada vez mais tarde e há cada vez mais gente a atingir um século. Fotógrafo Marcus Garcia anda há mais de 12 meses a fazer retratos de homens e mulheres com cem ou mais anos. Os Centenários vão dar origem a um livro, uma exposição e conferências. Haverá um segredo para a longevidade?

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Carlos Ferreira, 102 anos Marcus Garcia
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Emília Monteiro. 100 anos Marcus Garcia
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Idalina Peixoto, 100 anos Marcus Garcia

O ritual repete-se todos os dias. Levantar, tomar banho, lavar o rosto com sabão, de vez em quando passar um creme. Quase sempre sem pedir ajuda. Depois a roupa, impecável. E uns brincos, pulseiras, colares — um deles, o obrigatório, com uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Idalina Peixoto nasceu no tempo da guerra, da I Grande Guerra. Era 10 de Novembro de 1916. Mas ao espelho do seu quartinho partilhado no Centro Social São Martinho de Aldoar, onde mora há dois anos, garante não ver rugas. Envelhecer é um processo pacífico. “A vida é para ser encarada com optimismo”, diz como quem revela parte da fórmula do elixir da eterna juventude que parece ter tomado. Segredos da longevidade?

— Ser boa para os outros e comer dois pratos de sopa. É isso que eu faço.

Marcus Garcia ouve-a com o olhar cheio de ternura. Regressou ao lar junto ao bairro de Aldoar, no Porto, para que o PÚBLICO conhecesse uma das centenárias que há meses fotografou para o projecto ao qual se dedica desde Maio de 2016. Chama-se Os Centenários e quer retratar 30 homens e mulheres com um século de vida, nos distritos do Porto, Viana do Castelo, Braga e Aveiro. “Este eu já conheço bem”, sorri-lhe Idalina, a “mascote” do lar, orgulhosa por fazer parte desta ideia que, em Outubro, deverá materializar-se num livro e numa exposição.

O fotógrafo, nascido há 46 anos no Rio de Janeiro e filho de portugueses, mudou-se para o Porto aos oito anos. Do Brasil, ficou-lhe um certo jeito “romântico” de ver o mundo. De querer transformá-lo. Os Centenários não é apenas um projecto fotográfico: é um pretexto para falar sobre envelhecimento e uma forma de retirar o tema das academias. “É importante que a sociedade discuta isto.”

Foi ao conhecer o PT100 – Estudo dos Centenários do Porto, a primeira investigação feita em Portugal sobre esta população, que Marcus se pôs a pensar mais seriamente no assunto. Tempos depois, a matéria bateu-lhe à porta da forma mais dolorosa. Laura, a sua sogra, adoeceu e foi parar ao hospital. Quatro meses de internamento, uma operação, complicações físicas e emocionais. “Apercebi-me nessa altura da dificuldade que tinha em lidar com aquilo.”

A emoção ainda leva a melhor quando o recorda. A sogra, nascida a 13 de Fevereiro, como ele, mas 34 anos antes, era um exemplo de vida para o fotógrafo: activista política, mãe de oito, viúva cedo demais. Quando adoeceu, a família viu-se na difícil posição de assistir à sua degradação. Conheceu as entranhas dos hospitais. Teve dúvidas e pouco apoio. “Questionava-me muito, por exemplo, se ela tinha capacidades mentais para decidir sozinha se queria continuar internada ou ir para casa. Se devíamos decidir por ela ou não”, conta Marcus.

Laura morreu em Abril do ano passado. E, um mês depois, Marcus entregou-se ao projecto que andava a desenhar mentalmente há algum tempo. Os Centenários são também uma “homenagem” à sogra — e a outras “pessoas de rostos marcados pelo tempo”.

Encontrar centenários não é tarefa simples. De acordo com dados divulgados em Abril pelo Instituto Nacional de Estatística, existem em Portugal 4287 pessoas com cem anos ou mais. Em cinco anos, este número mais do que duplicou — e até 2080 deverá aumentar cinco vezes. Ou seja, poderá haver 22 mil centenários no país.

Para descobrir potenciais retratados, Marcus contactou juntas de freguesia, instituições de apoio domiciliário a idosos, lares. Tem 12 imagens feitas — e aceita candidatos (que podem contactá-lo via email para centenarios2016@gmail.com), porque quer chegar rapidamente aos 30.

As fotografias são simples. Marcus improvisa um estúdio no local onde o idoso se encontra (casa ou lar) e mantém-se “o mais transparente possível”, interferindo apenas no “posicionamento” da pessoa perante a câmara. As fotografias vão ser quadradas e na exposição já confirmada na estação de metro do Bolhão, no Porto, estarão impressas em 1,5 por 1,5 metros.

No livro, o autor quer juntar à imagem informação e reflexão sobre o tema. Também por isso, Os Centenários associaram-se ao estudo PT100 e ao Porto4Ageing, Centro de Excelência em Envelhecimento Activo e Saudável, um consórcio de quase cem empresas e entidades públicas que buscam soluções (produtos e serviços) para questões relacionadas com o envelhecimento. Com estes parceiros deverá ser desenhado um ciclo de conferências, na mesma altura do lançamento do livro.

Para Carlos Ferreira não há muita ciência na matéria. Quando completou cem anos, a 21 de Maio de 2015, decidiu que havia de voltar aos zeros no calendário. “Agora digo que tenho dois”, apraz-se. Na Obra Social Boa Viagem, no Porto, chamam-lhe “o principezinho” desde que, há tempos, recebeu de prenda o livro intemporal de Antoine Saint-Exupéry. E ele gosta. Tem o “feitio alegre” de uma criança — e isso talvez seja parte do segredo da longevidade. A genética também: “O meu pai viveu até aos 99.”

Carlos nasceu em Amarante e começou a trabalhar aos dez anos, no Porto, “a fazer recados”. Em 1915, passava-se muita fome no país. “Raspávamos a broa com bolor para ter o que comer”, recorda de lágrimas postas nos olhos claros. Tem memória afinadíssima e umas “saudades imensas do tempo da mocidade”, apesar da “vida difícil” quase sempre como trabalhador da construção civil. Teve duas filhas de um “casamento feliz durante 66 anos e sete meses”.

“Isaurinha” partiu em 2011. Era seis anos mais nova do que ele. “Olhei pela minha mulher até ao último dia. Mudava-lhe os pensos. Tudo. Entre nós houve sempre amor, não é como os casais de agora.” As saudades apertam. Carlos intercala a nostalgia com o sorriso, faz versos como quem respira. “Quando falo não estou calado, é este o meu fado”, atira. Tem netos a viver na Irlanda, outros em Coimbra. Gostavam que ele fosse para perto deles. Mas Carlos Ferreira não se dá em casa alheia — ainda que estar no lar seja “muito triste”.

“Conviver com pessoas mais novas do que nós e vê-las a morrer aos pouquinhos é um desânimo”, diz, enquanto vai contando que o senhor que dorme na cama ao lado está entubado e já não se mexe. “Às vezes, estar consciente é pior. Sofre-se mais.”

Com a saúde dele — apenas a audição e um joelho direito o atraiçoam um pouco — chegar aos cem é uma alegria. “É bom e recomenda-se.” Com a de Idalina Peixoto também. Medo da morte não têm. “Peço apenas que seja santa”, confessa a mulher de cem anos, crescida em família pobre de sete irmãos, com um filho de 81 anos a viver no Canadá. “Falamos só por telefone porque ele não pode viajar. Está mais doente do que eu.” Tem netos, bisnetos e trinetos, engana as saudades com fotografias. Não se sente sozinha. Da vida, apesar das dificuldades, guarda uma mágoa só: a de não ter aprendido a ler. “No resto sou feliz. Se não me falta de comer nem beber, só posso ser feliz.”

Como se chega aos cem anos?

O estudo está no terreno há alguns anos e tem, nos últimos tempos, dado um “enfoque psicossocial e de saúde” ao tema. O PT100 identificou 186 centenários na Área Metropolitana do Porto e recolheu informação sobre 140, com idades entre os cem e os 108 anos. A maioria, concluíram, são mulheres (89,3%), viúvos (76,4%), com baixos níveis de escolaridade (quase metade nunca frequentou a escola) e baixos rendimentos (70% vivem com valores abaixo do salário mínimo nacional).

Entre estas pessoas, a maioria vive com a família, ainda que uma percentagem significativa (42%) esteja em lares, destaca Oscar Ribeiro, docente no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e responsável pelo PT100, que entretanto se alargou à Beira Interior e tem ainda dois estudos satélite, um centrado nos filhos destas pessoas e outro nos serviços de apoio disponíveis. No que à saúde diz respeito, o estudo concluiu que apenas 30% dos centenários apresentam bom funcionamento cognitivo, embora a esmagadora maioria (91,1%) faça uma avaliação positiva do seu estado. Como conseguiram chegar àquela idade? "Por vontade de Deus, pela vida de trabalho e por ter saúde ao longo da vida" foram as respostas mais frequentes.  

Elísio Costa, docente da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto e coordenador do Porto4Ageing, recorda que a população considerada idosa “está tendencialmente a aumentar” para justificar a constituição deste centro de estudo do envelhecimento, há quase um ano. A associação à ideia de Marcus fez para ele todo o sentido: “Embora seja um projecto sobretudo artístico serve também para dar visibilidade ao tema e fomenta a discussão”. Recentemente, o Porto4Ageing lançou duas aplicações, uma para uma auto-avaliação da fragilidade e outra para pessoas com alergias. A "academia de bem envelhecer, plataforma online com informação dirigida a idosos" é o projecto mais recente.

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