Houve actores em palco e muita conversa. A festa do teatro insiste em resistir

Este domingo é o último dia do 36.º Fazer a Festa. Têm sido tempos difíceis para o festival de teatro, que recebe cada vez menos apoios. Mas com sacrifício e muita ginástica, o evento trouxe nove companhias ao Porto e à Maia. E, como sempre, a festa prosseguiu.

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Shakespeare en Berlín foi uma das peças exibidas na 36.ª edição do festival Nelson Garrido
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A obra retrocede até 1933, em Berlim Nelson Garrido
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Três amigos falam da crise, da maior inflação da Europa em que Alemanha estava mergulhada. Dentro de uma década, tudo muda Nelson Garrido
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A peça espanhola da Arden Producciones encheu meio auditório Nelson Garrido
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José Leitão, director do Teatro Art'Imagem, que organiza o Fazer a Festa Nelson Garrido

Há uma década que o Fazer a Festa está “em modo de resistência”, diz José Leitão, director do Teatro Art’Imagem que organiza o evento. O terceiro festival de teatro mais antigo em Portugal trouxe, ao longo de 13 dias, nove companhias ao Porto e Maia: cinco portuguesas, três espanholas e uma luso-australiana. E muitas conversas.

Apesar das dificuldades financeiras, o Fazer a Festa não deixou de inovar no seu 36.º ano de vida e trouxe ao festival o Teatro ao Chá, nome dado ao pequeno ciclo de conversas que se fizeram ouvir nos bares da cidade portuense, entre segunda e quarta-feira. Ao fim do dia, três directores de diferentes companhias sentaram-se à mesma mesa do público que vê as suas peças. Pela Pipa Velha passou Rui Madeira, da Companhia de Teatro de Braga, nos Maus Hábitos esteve Rui Alves Leitão, da Fértil Associação Cultural, e na Aduela sentaram-se Cristina D. Silveira e David Péres Hernando, do Karlik Danza Teatro.

Todos eles falaram dos seus espectáculos e do comum que têm entre si: a memória. Partindo da frase de Virgílio Ferreira – “O tempo que passa não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou” – a organização escolheu trazer a palco “espectáculos que falassem de memórias, ou do teatro, ou políticas, ou da vida das pessoas”, revela.

A última das conversas desenrolou-se numa mesa no canto da Aduela, rodeada por uma dúzia de pessoas. Com música de fundo, falou-se do que liga Cáceres ao Porto: as dificuldades no financiamento das companhias.

No caso do Teatro Art’Imagem, este festival é posto de pé somente com 12 mil euros dedicados à programação, a maior parte investida pelo Ministério da Cultura. O valor do orçamento para a programação já foi sete vezes maior, mas a Câmara do Porto deixou cair o apoio há mais de uma década. Este é o quarto ano consecutivo que o evento não integra a programação cultural nem recebe qualquer apoio da autarquia.

Já pela experiência de Cristina e David ficamos a saber que em Espanha “a itinerância no teatro é obrigatória” – é raro que uma companhia independente se mantenha por mais de dois dias num local e o número de produção é, em média, uma a cada dois anos. Uma realidade que, apesar de tudo, contrasta com a do Teatro Art’Imagem, que consegue duas produções diferentes todos os anos.

O Karlik Danza Teatro nasceu como uma companhia de dança contemporânea, mas Cristina quis “levar a dança à palavra” e agora a companhia é um local de simbiose das duas artes. A peça que trouxeram nesta sexta-feira ao Auditório da Quinta da Caverneira liga os 25 anos da morte da filósofa espanhola María Zambrano aos 25 anos de vida da companhia de Cáceres.

“A investigação foi longa e a sua obra é tão extensa que foi muito difícil entender o caminho a seguir”, explica Cristina. Isto, acrescido ao “pânico de fazer justiça à obra de María”. Meio-ano de pesquisa e documentação culminaram numa peça que caminha por entre os pontos-chave da vida da filósofa e expõe-na “não só como pensadora, mas também como humana”, conta. E são as palavras da própria Maria, em áudio, que guiam as duas actrizes em palco.

Em palco, não há língua que nos separe

Durante 13 dias, o festival dividiu-se entre as cidades da Maia e do Porto, saltitando entre o Grande Auditório do Fórum da Maia, os jardins e auditório da Casa das Artes, culminando na Quinta da Caverneira, sede do Teatro Art’Imagem. Outrora, a sede era outra. Tinha nome de Tzero.com.Palco e encontrava-se na Rua da Picaria. Agora, o espaço pertence a uma hamburgueria e já não há sinal do teatro ter lá estado.

Nesta quinta-feira, Valência veio à Maia pela mão da Arden Producciones e encheu metade dos cem lugares do Auditório Quinta da Caverneira.

Berlim, 1933, uma “cidade vibrante”. Num cenário familiar três amigos falam da crise, da maior inflação da Europa em que Alemanha estava mergulhada. Um par de recém-casados queixa-se do desfortúnio e o amigo, que é actor e judeu, parece prosperar na carreira. Entre 1933 e 1946, os papéis invertem-se. Um incêndio deflagra no Palácio do Reichstag, Hitler ganha as eleições, uma loucura colectiva sai às ruas movida pelo discurso de ódio contra os judeus. O casal é empregado pelos estúdios UFA, ao serviço do Ministério da Propaganda alemão. E o actor perde o que tem. Na trama, a voz de Shakespeare é constante, citada pelas personagens e derramada no chão, na tragédia final.

Com apenas três actores em palco e um vídeo que intercala filmagens da época e o monólogo de uma quarta personagem, que nos fala já no futuro, Shakespeare en Berlín relata a vida dos que ficaram e dos que foram obrigados a ir. Põe em palco a prosperidade de uns e as ruínas dos outros. E denuncia os que foram sugados pela propaganda nazi e que esqueceram os que a sentiram na pele.

Uma peça que arrancou longos minutos de aplauso da plateia e para a qual as pessoas ficaram mais um pouco, para a habitual conversa com os actores no final do espectáculo. Habitual, porque este ano foi constante, mas esta é outra das novidades do programa de 2017. José Leitão revela que a ideia veio de longe: “É uma prática que aprendemos no Brasil. Sempre que lá vamos, as pessoas batem palmas e sentam-se à espera que os artistas digam alguma coisa.”

Foram só dez minutos de conversa: um elogio rasgado de um elemento do público que também é autor e o agradecimento dos actores. A barreira linguística levanta-se mais alto para os valencianos do que para os portuenses, mas Chema Cardeña, encenador e actor na peça, acredita que há muros que podem ser deitados abaixo em palco: “Mesmo que não tenham entendido tudo, esperamos que o tenham sentido”, remata.

Neste domingo, o último dia do festival, é a vez de O Sonho de Pedro preencher o mesmo palco, pelas 18h30. A produção do Teatro do Noroeste, de Viana do Castelo, narra a vida e o sonho de António Pedro, um dos maiores agitadores da cultura portuguesa do século XX e fundador do Teatro Experimental do Porto. Mais tarde, às 20h, faz-se a festa de encerramento com uma exposição dos 36 cartazes de todas as edições.

Para o ano, há mais?

Para o próximo ano, o festival, segundo José Leitão, vai ser revisto: “Queremos propor uma nova fórmula para o festival. Não ser tão generalista como ele é.” O director diz que não pode revelar a ideia, mas está certo que vai satisfazer uma das “lacunas” do teatro na cidade. Mas há coisas que nunca vão mudar, como a “irreverência” e o “espírito muito tu cá tu lá”, do festival que faz subir, aos mesmos palcos, companhias de fora e dentro do país, umas maiores de idade e outras acabadas de nascer.

Por enquanto, as produções do Teatro Art’Imagem vão continuar. A Identificação do meu País, uma trilogia sobre os últimos 70 anos de Portugal, com dramaturgia e direcção de José Leitão, vai estrear no Teatro Aveirense. A primeira parte, Fascismo aqui não existiu, vai poder ser vista já em Novembro.

Texto editado por Ana Fernandes

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