Quercus e investigadores das aves põem em causa nova localização do Marés Vivas

Festival de Música vai acontecer numa zona mais próxima da reserva natural e Quercus admite violação de directivas europeias. Investigador britânico pede estudo de impacto ambiental.

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O festival Marés Vivas vai acontecer, em 2016, a poente da reserva natural do estuário do Douro Nelson Garrido

A Câmara de Gaia está a enfrentar críticas pela opção de instalar o festival Marés Vivas no novo parque urbano que pretende criar, nos próximos meses, no Cabedelo, numa zona adjacente à Reserva Natural do Estuário do Douro. A Quercus, e académicos ligados ao estudo das aves temem o efeito do ruído e da presença humana na avifauna, em plena época de nidificação e repouso de espécies que usam esta zona húmida integrada, desde 2012, na Rede Nacional de Áreas Protegidas. A câmara garante que a reserva não será mais afectada do que foi até agora, com a realização do festival a centenas de metros da nova localização.

A associação ambientalista Quercus vai pedir ao Ministério do Ambiente que se pronuncie sobre esta intenção da autarquia de levar para uma área mais próxima da reserva natural um festival de música que, para além do habitual ruído, origina a movimentação de cerca de 90 mil pessoas em três dias, a “cem metros” de uma zona de repouso e nidificação. Uma área protegida que, ainda no início de Dezembro, recebeu uma “menção honrosa” nos prémios Nacionais de Ambiente criados pela Confederação Portuguesa de Defesa do Ambiente em honra de “Fernando Pereira”, o fotógrafo do Greenpeace que perdeu a vida em 1985 a bordo do navio Rainbow Warrior.

O presidente da Quercus, João Branco, considera que a localização do festival é incompatível com a protecção da avifauna – motivo da criação da reserva – e admite mesmo que estejam a ser violadas as directivas Aves e Habitats, transportas para a legislação portuguesa, e que obrigam os Estados membros a tomarem medidas para evitar a deterioração de áreas como as zonas húmidas, entre outras, e a proibir “a perturbação intencional” das espécies a proteger, “nomeadamente durante o período de reprodução, de dependência, de hibernação e de migração”, por exemplo.

O presidente da Câmara de Gaia considera que a “localização provisória” encontrada para o festival não afecta a reserva por estar fora dos limites desta, em “espaço devidamente delimitado”. “Percebo que haja quem queira aproveitar esta oportunidade para levar o Festival para concelhos vizinhos, mas isso não está na agenda da Câmara de Gaia, que trabalhará com equilíbrio e rigor”, argumenta Eduardo Vítor Rodrigues num comunicado. Mas a Quercus entende que, a nova localização porá em causa anos de trabalho em prol da conservação da natureza.

“A área da Reserva Natural contém tanto habitats (como estuários atlânticos, dunas móveis embrionárias e prados salgados atlânticos), como espécies de aves prioritárias (todas elencadas no Guia da Reserva Natural, editado com apoio do QREN, em 2012). A realização do Festival Marés Vivas neste local contraria o disposto na lei portuguesa”, avisa a associação em comunicado emitido esta segunda-feira, argumentando que “o local onde o Festival Marés Vivas se realizou desde 2008 até 2015, além de distar cerca de mil  metros da área mais importante da Reserva Natural, continha um morro fortemente arborizado da Quinta Marques Gomes, que reduzia e moderava a propagação do ruído”.

Considera a Quercus que, “por sua vez, o lugar proposto para a edição de 2016 é adjacente à Reserva Natural, sendo que o movimento de pessoas e viaturas vai, fatalmente, perturbar as espécies existentes na Reserva Natural, em plena época de nidificação das aves”. E, explica, “o ruído, especialmente à noite, aterroriza as aves que voam descontroladamente e vão posteriormente ferir-se ou morrer”. “Prova disso” – notam – “foi o lançamento do 'maior foguete do mundo' do Porto para o Estuário do Douro. Este evento, que foi denunciado pela Quercus, em 2010, resultou em inúmeras mortes de aves do estuário”, recordam.

O investigador britânico Peter Rock, que há anos estuda a utilização do estuário do Douro como stopover (zona de repouso) da gaivota-de-asa-escura na sua migração para Sul, defende que, dada a “importância internacional da reserva” não seja tomada qualquer decisão que a possa afectar sem um Estudo de Impacto Ambiental. O docente da Universidade de Bristol considera que, pela observação e contagem de aves que vem fazendo no terreno, o estuário do Douro poderia já estar integrado na lista portuguesa de sítios abrangidos pela Convenção de Ramsar sobre as Zonas Húmidas. 

No final da semana passada, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves enviou uma carta à Câmara de Gaia, pedindo mais elementos sobre o projecto de criação do parque urbano no Cabedelo e da instalação, neste local, do recinto para o Marés Vivas, explicou ao PÚBLICO o presidente desta organização. Já o investigador Paulo Santos, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, e responsável por um estudo sobre a biodiversidade daquela zona protegida, não tem dúvidas em criticar a escolha tendo em conta, na sua perspectiva, que o local onde o festival se realizou até agora já não era aconselhável.

Paulo Santos explica que em 2008, aquando da realização da primeira edição do festival na foz do Douro, escreveu, como membro da associação Fapas, uma carta à autarquia, que ficou sem resposta, alertando para os efeitos do evento, naquele local. Este investigador lamenta que aquando da sua criação, a reserva natural não tenha, desde logo, abrangido toda a área do Cabedelo, em Gaia, e que por “mera politiquice” não tenha havido acordo com a Câmara do Porto para estender o estatuto de protecção à margem Norte do Douro, onde, na foz da Ribeira da Granja, vinca, as condições são propícias à alimentação e descanso de um grande número aves, facilmente observáveis.

Em todo o caso, tendo sido criada a reserva, com as suas dimensões actuais, e dado o seu impacto no acréscimo de biodiversidade detectada na zona, este investigador lamenta a decisão da autarquia. Se há uns anos foi fácil convencer o município vizinho a acabar com um festival de pirotecnia na margem Norte, como o próprio recorda, impedir que o Marés Vivas de 2006 se aproxime da reserva está, neste momento, fora das intenções da Câmara de Gaia.

“Depois de se ter feito todo este esforço para a criação de uma reserva de âmbito local, isto devia ser evitado, porque pode ser um retrocesso em termos de conservação da natureza”, alerta outro investigador, Paulo Célio Alves, do Centro de Estudos de Biodiversidade e Genética da Universidade do Porto. Este académico lembra que no litoral português são cada vez mais escassas as zonas onde as aves migratórias podem descansar e alimentar-se sem serem incomodadas pelo homem e pede por isso que a Câmara faça um “estudo aprofundado” antes de avançar para o terreno com algo que, em três dias, "pode pôr em causa anos de trabalho".

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