Convento de São Francisco entre a locomotiva e o eucalipto da cultura em Coimbra

Depois de muitos atrasos, o Convento de São Francisco já tem a sua conclusão à vista. Mas o que acontecerá no espaço? Crescem receios de que seque tudo à volta, enquanto outros falam em motor da vida cultural da cidade. Um pouco do véu será levantado na sexta-feira.

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Sérgio Azenha

Depois dos percalços que atrasaram a construção, o Centro de Convenções e Espaço Cultural do Convento de São Francisco tem a conclusão das obras marcada para ao último dia do ano. Sexta-feira, a autarquia promove uma conferência para apresentar a estratégia do espaço cuja requalificação e transformação se fixou nos 42 milhões de euros. Perante a abertura de um grande espaço cultural em Coimbra, o PÚBLICO foi falar com os agentes culturais da cidade para perceber as dinâmicas que este novo equipamento pode criar. E encontrou muitas dúvidas e cepticismo.

Das escassas parcelas que recolhem a unanimidade por entre agentes culturais e poder político da cidade encontra-se a afirmação “Coimbra precisa que isto corra bem”. Referem-se à vertente imaterial do projecto, porque a construção física não tem decorrido com a normalidade prevista. A obra de requalificação e transformação do Convento de São Francisco, na margem sul do rio Mondego, em Coimbra, arrancou em Outubro de 2010 e chegou a ter a conclusão prevista para o mesmo mês de 2012.

A descoberta de ossadas humanas no subsolo do edifício e os posteriores problemas de inundações no auditório principal atrasaram a conclusão dos trabalhos, contratualizada entretanto pela autarquia e empreiteiro para o dia 31 de Dezembro de 2015. Adquirido pelo município na década de 90, vários foram os projectos de adaptação daquele espaço, até que arrancou, no início da década, a intervenção que iria transformar o secular edifício num centro de convenções e espaço cultural com várias salas e um auditório principal com capacidade para 1200 pessoas.

A generalidade dos responsáveis por estruturas e projectos culturais da cidade com quem o PÚBLICO conversou expressaram dúvidas e anseios sobre aquilo que será a estratégia para o Convento, a apresentar esta sexta-feira numa conferência organizada pela Câmara Municipal de Coimbra.

O director do Teatro Académico Gil Vicente, Fernando Matos de Oliveira admite que “o estado em geral é de expectativa” e avalia que, “pela dimensão do equipamento e previsivelmente pelos seus eixos de programação, vai ter um impacto de natureza sistémica sobre aquilo que é a vida cultural da cidade e até da região”. O que não considera necessariamente negativo, dependendo da articulação que se faça com as restantes entidades culturais. A última vez que esse trabalho foi feito em grande escala foi há mais de uma década quando, em 2003, Coimbra foi Capital Nacional da Cultura. Director da organização desse evento, Abílio Hernandez avisa para necessidade de haver uma programação planeada com tempo. “Uma programação de um centro cultural planeia-se a um, dois anos de antecedência. Os munícipes não sabem o que é que se quer fazer dali e o dr. Machado não o diz”.

Em entrevista ao PÚBLICO, o presidente da autarquia, Manuel Machado, referiu-se aos críticos como “pessoas com capacidades divinatórias”. “O que eu vejo é que são prematuras as preocupações”, disse, adiantando que “os programadores do Convento de S. Francisco falarão em altura própria com os programadores” da cidade.

A directora da companhia de teatro O Teatrão, Isabel Craveiro, que actualmente gere a Oficina Municipal do Teatro (OMT) – um equipamento da autarquia – entende que “se podia ter aproveitado o próprio tempo e os problemas que a obra teve para se iniciar um diálogo maior com os outros agentes culturais”, sublinhando, porém, a importância do encontro de sexta-feira. Com um discurso mais crítico, o director da companhia Escola da Noite, que é igualmente responsável por um equipamento municipal, não tem quaisquer pistas sobre a programação ou estratégia do espaço que, prevê-se, vai ser inaugurado em 2016. “Se houvesse realmente uma estratégia cultural para a cidade – que não existe – aquilo poderia ter uma função, mas Coimbra não tem sabido trabalhar e ter uma política cultural que possa fazer sentido”, lamenta António Augusto Barros. Já Carlos Antunes, à frente do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), entende que “a única critica que se pode fazer é que vem tarde”, uma vez que o Convento “é a locomotiva cultural de que a cidade de Coimbra precisava”.

O “efeito eucalipto”
Nas reuniões da Assembleia Municipal, vários são os responsáveis políticos que, face ao desconhecimento da estratégia para o Convento, têm apontado para a necessidade de evitar o “efeito eucalipto”, segundo o qual, dada a dimensão do espaço, afectaria a actividade dos restantes espaços culturais da cidade. José Miguel Pereira fala pelo Jazz ao Centro Clube e entende que “a grande parte das estruturas culturais já tem muita dificuldade em encontrar o seu público e é óbvio que se há um aumento substancial de oferta cultural é perfeitamente possível que - caso não se articule o trabalho dessas associações com o Convento - acaber por existir uma excessiva oferta para quantidade de público que existe na cidade”. Semelhante preocupação têm os restantes agentes culturais, sendo que Matos de Oliveira entende que o novo equipamento pode complementar e não competir com a oferta cultural que há na região. Mas para isso tem de “haver diálogo e reflexão conjunta”.

Machado procura responder à preocupação das estruturas mais pequenas ao garantir que os agentes culturais da cidade “serão contactados para encontrar um modo de operação para aquele espaço de modo a que todos os demais se potenciem com base naquele e vice-versa”.

Para Augusto Barros, esse trabalho não foi realizado “com antecedência”. “Trata-se de um papel que vai ser apresentado como uma pretensa estratégia, como números muito discutíveis que não são explicados”, acusa. Outra das questões levantadas pelo director da Escola da Noite é o modelo jurídico. “Enquanto não se definir sequer a estrutura jurídica que vai suportar o funcionamento daquilo, não se sabe”. “A câmara não discutiu a estratégia com a cidade e com os agentes culturais e vai lançar uma estratégia. Essa estratégia está vocacionada ao fracasso”, vaticina.

O autarca reconhece que antes de ser lançada a empreitada (antes de tomar posse), “o conceito devia ter sido discutido”. Quanto ao regime jurídico, o autarca socialista afirma que “quem diz isso não conhece suficientemente bem as regras contratuais dos financiamentos comunitários” porque “há algumas hipóteses que não são permitidas”. No entanto, Machado garante que o Convento vai ser gerido como “um equipamento municipal, da forma que melhor se adequar à conjuntura” e que será “oportunamente divulgada”.

Contestada pela oposição camarária foi também a contratação, por ajuste directo, de João Aidos (que integrou a lista do PS à CMC nas eleições autárquicas) para assessorar no projecto do Convento. Abílio Hernandez considera este acto como sendo de “profundo desprezo pela cidade e pelos seus cidadãos”. Augusto Barros “entende que um espaço daqueles devia ter um concurso público, aberto, com um processo de entrega de candidaturas, normal, como se tem feito noutros sítios para grandes centros”. Manuel Machado defende-se e diz que “é uma relação contratual” e garante que “trata as pessoas por igual, independentemente das convicções”. Presidente do município entre 2010, João Paulo Barbosa de Melo (PSD) entende que “pôr alguém que é da lista politiza uma coisa que não devia ser politizada porque é da cidade”.

“Os nomes não se discutem, as pessoas têm o direito à sua dignidade e ao seu bom nome. O engenheiro João Aidos foi contratado em cumprimento do código de contratos públicos e isso não servirá de pretexto para outros ataques”, assevera. Quanto ao facto de o assessor contratado ter integrado a lista do PS, Machado remete para Hegel e para o conceito de moral. “Eu considero-me um cidadão ético e com moral. E sobre isso não aceito lições nem as quero dar a ninguém”, afirma.

No mandato do anterior autarca foi criado um grupo de trabalho constituído por Fernando Seabra Santos, reitor da Universidade de Coimbra em 2003 e 2011, explica Barbosa de Melo. “Não era ele que ia definir a programação, mas iria conferir consistência a uma equipa”, esclarece, falando da necessidade de uma “figura de grande projecção” à frente da estrutura. Necessidade que, entende, continua actual. “A minha ideia sempre foi que esta estrutura tivesse uma certa autonomia, não pode ser gerido como se fosse um departamento da câmara municipal”. Barbosa de Melo recorda ainda que essa equipa fez “um trabalho de acompanhamento técnico” da obra, sendo que também iniciou trabalho de programação cultural.

“Tenho conhecimento que [Seabra Santos] foi convidado e ajudou a resolver esses problemas técnicos graves”, respondeu Manuel Machado ao PÚBLICO, quando questionado sobre o trabalho desempenhado pelo grupo na vertente cultural do espaço. “Quanto ao grupo de trabalho, está a dar-me novidades”, declarou. O autarca refere apenas que “um grupo de funcionários da câmara” produziu um projecto de programação cultural para 2014, mas “sabia-se que, em 2014, aquilo não era susceptível de ser ocupado”. “Da parte idealizada para 2015, os estudos eram de facto escassos, insustentados e imponderados”, adianta.

Entre as convenções e a cultura
Outra das questões reside na prioridade de eventos que terão lugar no Convento de S. Francisco. Se a autarquia tem anunciado o edifício como “Centro de Convenções e Espaço Cultural” – nome indicado na programação de conferência de amanhã – na entrevista dada ao PÚBLICO, o presidente Manuel Machado refere-se ao espaço como Centro de Convenções e Congressos de São Francisco. Essa é uma das preocupações apontadas por Abílio Hernandez: “ o lugar primeiro da designação não vai para a cultura nem para espaço cultural. O que tem mais relevo, o que é mais sonante, é Centro de Convenções”. O director da Capital Nacional da Cultura vai mais longe e imputa a autarquia de falta de transparência na condução do processo. “São questões que devem ser pensadas e que preocupam quem não sabe o que se passa, quando a coisa é apresentada com esta opacidade e, ao mesmo tempo, com esta solenidade pomposa provinciana que é característica do anacrónico caciquismo cultural”, acusa, referindo à conferência de sexta-feira, onde será apresentada a estratégia para S. Francisco.

A opinião coincide com a de António Augusto Barros que, ao ouvir falar do “grande negócio dos congressos” alerta para a falta de procura. “Não há autarquia que não decida fazer um centro de congressos, isto é do mais provinciano que existe. Caldas da Rainha, Santa Maria da Feira… Não sei se Freixo de Espada à Cinta já tem. Para quê, onde está o mercado?”, questiona.

O autarca lembra que “o espaço é suficientemente grande para acolher uma diversidade de utilizações”. Machado defende que a cultura e o turismo são “alavancas importantes para o desenvolvimento” da cidade, pelo que as vertentes de centro de convenções e a de espaço cultural são importantes. “Cada uma, só por si, não consegue gerar receitas nem condições que o tornem a gestão possível”, alerta. “Não há prioridade, não estamos a fazer ali um centro comercial”, adensa o autarca.

O desconhecimento da estratégia do Convento preocupa Fernando Matos de Oliveira também pela vertente financeira. “O que me parece um a zona de risco é a disputa de preços de aluguer e isso é um prejuízo directo que acho muito perigoso para o futuro do TAGV”, receia. O aluguer de espaços representa cerca de 50% da receita do Teatro Académico, pelo que uma redução dessa percentagem “afectaria imediatamente a programação”. No entanto, o responsável pela estrutura afasta um cenário de competição, mas acredita num “diálogo estratégico razoável”.

A estratégia para o Convento de S. Francisco será apresentada nesta sexta-feira, na conferência “Conversas do Convento” que, para além de painéis sobre cultura, economia e políticas públicas, conta, segundo a autarquia, com mais de 300 inscrições. 

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