Presidente da Câmara de Reguengos meteu na gaveta 47 autos da GNR contra discoteca

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Daniel Rocha (arquivo)

A vida de Inácio Santos, um professor de Reguengos de Monsaraz, foi um inferno durante anos. Paredes meias com a sua casa, os lavadouros municipais foram cedidos pela câmara local, em 2001, a uma empresa que ali instalou uma discoteca. A partir de então o barulho e a confusão não lhe largaram a porta.

“Até 2004 praticamente não houve um fim-de-semana em que não me visse obrigado a chamar a GNR”, lembra Inácio Santos. Em causa estava a permanente violação da lei do ruído e dos horários do estabelecimento, apesar de estar autorizado a funcionar até às seis da manhã. Entre os destinatários das suas queixas contavam-se também as autoridades regionais do Ambiente e a câmara municipal, que era a proprietária do espaço.

Por parte da GNR a resposta foi sempre pronta. Os guardas compareciam, constatavam o incumprimento da lei e levantavam o respectivo auto de notícia. Ao presidente da Câmara, o socialista Vitor Martelo, um dos mais antigos autarcas do país, competia depois a instauração dos respectivos processos de contra-ordenação e a aplicação das multas correspondentes.

No caso das autoridades do Ambiente e da autarquia as suas reclamações pareciam cair em saco roto. “O presidente da Câmara, apesar da minha insistência ao longo dos anos, nunca me recebeu”, salienta. Como os autos da GNR não davam em nada e o direito ao descanso continuava a ser-lhe recusado, o professor queixou-se ao tribunal e à Inspecção-Geral da Administração do Território (IGAT). Do primeiro ainda conseguiu, por via indirecta, uma suspensão da actividade da Sharish - era assim que se chamava a casa - durante perto de um ano.

Quanto à IGAT, a sua intervenção acabou por se iniciar apenas em Dezembro de 2006, numa altura em que a situação já estava mais calma, devido ao trespasse da exploração da discoteca para outra empresa. Investigado o assunto no quadro de uma inspecção ao município de âmbito mais vasto, as conclusões foram claras: o presidente da Câmara tinha arquivado indevidamente um total de 47 autos transmitidos à autarquia pela GNR entre 2001 e Abril de 2003.

Mais: a sua actuação configurava uma sucessão de ilegalidades graves que, nos termos da lei, implicava a perda de mandato. Por isso mesmo, foi proposta no início de Janeiro do ano passado a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo de Évora para que fosse desencadeado o processo de perda de mandato. Nessa altura, com as demoras no arranque da acção inspectiva, faltavam apenas quatro meses para que passassem cinco anos sobre o último auto levantado pela GNR à gerência da Sharish, altura em que caducaria a possibilidade de accionar a perda de mandato.

Pese embora o risco de prescrição a curto prazo, a proposta dos inspectores só foi despachada pelo inspector-geral em Agosto passado. A decisão, que veio a ser homologada dois meses depois pelo secretário de Estado da Administração Local, Eduardo Cabrita, foi apresentada como a única possível: o prazo de cinco anos tinha terminado em Abril, pelo que o caso foi arquivado por prescrição.

Em resposta ao PÚBLICO, Vitor Martelo disse ontem que se limitou a “concordar mediante despacho com a proposta prévia de arquivamento formulada em cada auto de notícia pela instrutora dos mesmos, a quem coube ouvir as partes envolvidas”.

Inácio Santos espera agora que a discoteca não volte ao lugar onde entretanto abriu um restaurante. “Conto para isso com o vice-presidente da Câmara, José Calixto, que foi o único que mostrou abertura para o problema.”

Autarca diz que o estabelecimento era discriminado em relação a similares

Tanto quanto sabe o principal denunciante das violações da lei ocorridas na Sharish, não há nenhuma prova de que o arquivamento dos autos levantados pela GNR tenha alguma coisa a ver com as ligações familiares e profissionais dos sócios da discoteca.

Apesar disso, o caso sempre foi relacionado em Reguengos com o facto de um dos quatro sócios da RVG, a firma a quem a câmara cedeu a exploração do espaço, ser à época genro do então governador civil de Évora, o socialista Henrique Troncho. Despercebida também não passou a circunstância de um dos outros sócios ser co-proprietário de uma das principais empresas de construção civil do concelho.

Na sequência da polémica originada pelas queixas de Inácio Santos, que, tal como uma vizinha, chegou a ser vítima de ameaças anónimas, a RVG acabou por trespassar os seus direitos sobre o estabelecimento em 2004. De então para cá a discoteca já teve várias gerências, estando desde 2008 nas mãos de uma empresa que ali explora apenas um restaurante, embora não exclua a possibilidade de vir a apostar também no negócio da noite. De acordo com o professor que denunciou o caso, o presidente da Câmara nunca deu andamento às participações da GNR e só depois de a situação assumir grande relevo local é que mandou arquivar tudo de uma vez.

Nas respostas escritas que enviou ao PÚBLICO, Vitor Martelo garante que “todos os autos de notícia da GNR deram lugar à instauração dos correspondentes processos de contra-ordenação e neste âmbito é que se procedeu ao arquivamento dos mesmos”. O autarca sublinha que, “independentemente do arquivamento legal dos autos por não se considerarem provados, entendia que havia uma discriminação relativamente a este estabelecimento face a outros similares, já que, era público e notório, estes sim violavam sistematicamente o horário de funcionamento sem que tal situação tivesse sido alvo de levantamento de qualquer auto de notícia” por parte da GNR.

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