Porto 2001 mexeu mas pouco

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Inaugurada em 2005, a Casa da Música é o legado do Porto 2001 Paulo Pimenta

Dez anos depois do arranque da programação da Capital Europeia da Cultura, o Porto vive ainda na ressaca da grande festa de 2001. Ganhou equipamentos emblemáticos como a Casa da Música, mas a dinâmica cultural criada regrediu e ficou quase restrita às estruturas financiadas pelo Estado.

Se for verdade que a música popular brasileira tem sempre uma canção capaz de resumir um estado de espírito, uma situação, o balanço do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, talvez se possa fazer recorrendo a alguns versos de Chico Buarque. Depois da festa bonita (pá!) que começou há dez anos - o arranque da programação oficial aconteceu a 13 de Janeiro -, houve um momento, como em Atrás da Porta, em que houve quem se empenhasse em "sujar teu nome, te humilhar/e me vingar a qualquer preço". Ainda assim, dez anos passados, espera-se que, como na versão de 1978 de Tanto Mar, tenha ficado alguma semente por aí, nalgum canto de jardim - e que vá frutificando.

O tempo, diz-se, é o melhor juiz. E uma década devia ser um hiato suficientemente grande para que, extinguido o ruído das querelas políticas que rodearam a capital europeia da cultura, se pudesse fazer agora um balanço mais desapaixonado daquilo que o Porto ganhou com a iniciativa. Dez anos depois, a ex-presidente da sociedade Porto 2001 (Teresa Lago), um criador da cidade (Mário Cláudio), a então directora de um equipamento beneficiado (Teresa Siza) e um fazedor de opinião (Rui Moreira) coincidem em apontar a Casa da Música como o mais importante legado que a cidade recebeu. E também concordam que a cultura no Porto quase ficou sem rumo, por força da chegada à presidência da câmara, há nove anos, do social-democrata Rui Rio, personagem pouco sensível às subtilezas das artes.

"Por causa das querelas relacionadas com os prazos e os custos das obras, como tantas vezes acontece no Porto, fez-se uma análise precipitada e simplista. Houve um revanchismo injustificado e perdeu-se a embalagem que tinha sido criada", reconhece Rui Moreira, presidente da Associação Comercial do Porto, recentemente indicado por Rui Rio para presidir à Sociedade de Reabilitação Urbana Porto Vivo. "Estava planeado que 2001 fosse um salto incremental, com continuação posterior na vida cultural da cidade, mas sabe-se que isso não aconteceu. Falhou por razões mesquinhas", acrescenta Teresa Lago.

"O que não ficou do Porto 2001 é maior do que aquilo que ficou. E o que não ficou foi, sobretudo, uma rotina cultural, uma dinâmica de coisas a acontecer. A capital da cultura limitou-se a criar os fundamentos para uma alteração de mentalidades. Cabia aos responsáveis pegar neste élan e transformá-lo em acontecimentos visíveis, mas a administração da cidade está de costas voltadas para a cultura", considera Mário Cláudio.

Dez anos, dizia-se, devia ser tempo suficiente para um balanço desapaixonado. Mas não será por acaso que a Câmara do Porto, questionada duas vezes no último mês, por escrito, preferiu não indicar o que a cidade ganhou com a iniciativa, aquilo que não ganhou e podia ter ganho, e qual a principal herança deixada pela Porto 2001.

Obra feita

O que ficou feito, porém, não foi tão pouco como isso. Para além da Casa da Música, a Porto 2001 criou a Casa da Animação, reinventou o Teatro de Carlos Alberto, requalificou o Museu de Soares dos Reis, o Teatro Nacional de S. João e o Mosteiro de S. Bento da Vitória, apressou a Biblioteca de Almeida Garrett e concretizou o Centro Português de Fotografia. "De certeza que, sem a Capital Europeia da Cultura, a obra não se tinha feito tão depressa", reconhece Teresa Siza, que então dirigia a instituição sediada na antiga Cadeia da Relação (e que, entretanto, tal como sucedeu com o Teatro Nacional de S. João, perdeu autonomia sem que a câmara levantasse um dedo). "A Porto 2001 permitiu ainda concretizar a aquisição da magnífica colecção de câmaras fotográficas que está no CPF", recorda a ex-directora da instituição.

Para além dos equipamentos culturais, o evento que o Porto dividiu com a cidade holandesa de Roterdão permitiu ainda a construção de parques de estacionamento no centro da cidade, hoje fundamentais, e reabilitou várias zonas da cidade (sobretudo na Baixa, mas também, por exemplo, na orla marítima entre Matosinhos e o Molhe). As obras de reabilitação urbana, reconhece Teresa Lago, foram das mais criticadas na época, mas, paradoxalmente, é nas praças e artérias então beneficiadas, na zona dos Clérigos, que, há três anos, começou a germinar um Porto completamente diferente, animado e vivo.

"É inevitável estabelecer uma relação directa entre as obras feitas e a vida que ali se instalou", considera Teresa Lago. "Se o espaço público é convidativo, isso mobiliza as pessoas. Fico entusiasmada de cada vez que lá passo e vejo aquela quantidade enorme de gente nas ruas. Durante algum tempo não se tratou sequer de fazer a manutenção dos espaços recuperados, parecia que havia a intenção de deixar as coisas cair, mas, depois de uma fase de desalento, as pessoas arregaçaram as mangas e as coisas começaram a acontecer por iniciativa privada", considera a responsável máxima pela sociedade Porto 2001.

Rui Moreira concorda apenas parcialmente. Diz que "há coisas que estão a ser bem aproveitadas e que, por isso, valeram a pena", mas acrescenta que, em alguns casos, "se correram riscos muito grandes e se fizeram experiências desnecessárias em cima de partes da cidade que estavam consolidadas". Já Teresa Siza acha que se fizeram "muitas tolices" no âmbito da reabilitação urbana. "Desfiguraram-se algumas partes da cidade por um certo novo-riquismo e por uma febre de fazer coisas que enchessem o olho", diz.

Oportunidades perdidas

Mário Cláudio continua também a ser um crítico acérrimo dessas intervenções, que, afirma, foram, na maioria dos casos, "infelizes" e "desastrosas", considerando que a actual animação na Baixa se limita a bares e a "modismos", não tendo criado "uma dinâmica cultural consistente". "Há galerias de arte, mas não há teatro, não há ópera, não há bailado. Tudo regrediu a uma dimensão minimalista", critica.

"Parte o coração ver o estado em que está o Rivoli", acrescenta Teresa Lago, que, apesar das derrapagens orçamentais, faz do Porto 2001 um balanço "muito positivo", pelo que teve de "incremento das condições para as pessoas que vivem na cidade e a visitam, seja ao nível dos equipamentos culturais, seja no espaço urbano".

Teresa Siza, que não aprecia particularmente o edifício da Casa da Música, diz que este equipamento "tem conseguido manter uma programação muito boa. E recuperou a tradição musical que o Porto tinha quando eu era nova", assinala. "Mas algumas coisas foram um bocadinho precipitadas e talvez se devessem ter feito coisas mais permanentes. E, depois disso, o Porto perdeu o Norte. Não vejo um projecto, não se percebe para onde é que esta cidade quer ir, o que se quer fazer com ela", diz.

Rui Moreira é um pouco mais optimista. Considera que a capital da cultura foi demasiado virada para dentro e que, por isso, não rendeu o que podia ter rendido em termos de visibilidade internacional, mas admite que a Casa da Música "é uma aposta ganha" e que o maior triunfo da iniciativa foi "a multiplicação e verticalização de públicos". "Vai-se a Serralves, à Casa da Música e ao Teatro Nacional de S. João e percebe-se que havia públicos que não tinham acesso a formas de cultura mais erudita, ou que não se interessavam, e que passaram a ter sede de cultura".

Dez anos passados, parece assim claro que o Porto 2001 deixou equipamentos, infra-estruturas e alguns hábitos - as sementes. As críticas e o "revanchismo", porém, ainda não se extinguiram. Na sequência da eleição de Rui Rio para a presidência da Câmara do Porto (e das posições que o autarca adoptou), Pedro Burmester, um dos mais conceituados músicos da cidade e responsável pelo programa da Casa da Música, fez jura de não voltar a tocar no Porto enquanto o Rui Rio se mantivesse no cargo. O piano dele continua, pois, sem se ouvir na cidade que foi uma vez a Capital Europeia da Cultura.

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