O legado de Ezequiel de Campos regressou à Póvoa de Varzim

Espólio do engenheiro, académico e co-fundador da Seara Nova, um poveiro nascido e sepultado em Beiriz, foi entregue à biblioteca municipal.

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Adriano Miranda/Público
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Há poucas áreas do saber em que Ezequiel de Campos não tenha tocado. O antigo deputado, ministro da agricultura em breves meses, académico e engenheiro deixou uma obra notável e os seus herdeiros decidiram doar o seu espólio à biblioteca da sua cidade natal. Na Póvoa de Varzim, o legado do homem que sonhava com o aproveitamento hidroeléctrico do Douro e o regadio de várias zonas do país; e que propôs a criação do Parque da Cidade do Porto muitas décadas antes de ele começar a ser construído está agora a salvo, e guardado lado a lado com a herança de outros poveiros, de berço ou de afeição, que aqui quiseram deixar o melhor de si.

Há quem queira atirar cinzas ao mar da Póvoa, por amor. Há quem queira deixar-lhes os seus livros e há, ainda, outros, como os escritores Luísa Dacosta (Vila Real, 1927 – Matosinhos, 2015) ou Alexandre Pinheiro Torres (Amarante, 1923 - Cardiff, 1999), que deixaram aqui tudo isso: os restos de um corpo inútil, calcinado, e os livros, que, se não duram para sempre, são, para quem vive da palavra, o mais próximo que há da eternidade. Numa biblioteca municipal de uma cidade nada grande acumulam-se heranças de figuras que, por um motivo ou por outro, se ligaram a este mar de antanho, e a esta terra. Ezequiel de Campos, poveiro nascido em 1874 em Beiriz, é o último a juntar-se a este panteão sem mortos, e cheio de cultura para oferecer aos investigadores.

O acordo para a entrega do espólio de Ezequiel de Campos (1874-1965) à Biblioteca Municipal Rocha Peixoto foi assinado há dias, mas desde o ano passado que, para lá das salas de leitura que por estes dias se enchem de estudantes à procura do sossego que os exames exigem, funcionárias da instituição liderada por Manuel Costa cirandam em torno de milhares de documentos de várias tipologias originárias da Casa do Mosteiro, em Leça do Balio, a última morada do engenheiro e professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e que é hoje reconhecido como um dos ilustres da academia portuense. Foi uma neta de Ezequiel de Campos Maria Teresa Ramos Pinto, que assinou o termo de uma doação pela qual a Póvoa ansiava há muito.

Foi o antigo livreiro da mítica Lello, Domingos Lima, um sobrinho de Ezequiel de Campos, quem alertou Manuel Costa para a necessidade de fazer regressar à Póvoa esse legado, cumprindo uma promessa feita ao antigo director da biblioteca, Manuel Lopes. Aliás, foi Lopes, com o seu charme próprio de quem, à entrada da era Google, cultivava um humanismo démodé, que lançou amarras a outras personalidades, como o já citado Alexandre Pinheiro Torres, que vivera na cidade, ou ao também poveiro Flávio Gonçalves (1929-1987), outro académico (da Faculdade de Letras da UP), historiador de arte e etnólogo que acabou por legar também a sua biblioteca e manuscritos relacionados com o seu trabalho à instituição.

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O espólio está a ser alvo de uma primeira operação de limpeza Adriano Miranda

Lopes, que faleceu há uma década, encontrou na câmara da Póvoa aliados e sucessores para essa vontade de agarrar o mundo de figuras várias, entre as quais está António Santos Graça (1882-1957), um jornalista e etnógrafo que chegou a ser administrador do concelho na I República mas que qualquer habitante da cidade reconhece, mais rapidamente, como autor de O Poveiro. Quer o vereador da Cultura, Luís Diamantino – que tutela a área desde 1998 e fixou no roteiro cultural nacional o festival Correntes d’Escritas - quer o actual director da Biblioteca Rocha Peixoto persistem nesse interesse em resgatar acervos. Que vão transformando em património e que, à medida que vão sendo limpos, organizados e digitalizados, se tornam fonte para novas pesquisas.

“Quase todos os dias chega gente à biblioteca com livros para dar ou vender”, conta Manuel Costa. O director já chegou a pagar do seu bolso vinte euros a um homem que trazia um saco deles empurrado pelo neto, para calar a tristeza do puto, que esperava conseguir dinheiro para umas sapatilhas. Descobriu, mais tarde, que, sem saber, comprara os restos de uma biblioteca do século XVII e XVIII, pertencente a um padre daquela família. Noutros casos, é a própria Biblioteca Municipal, e a Câmara, que, de moto proprio, ou contactados pelos proprietários ou por herdeiros, assumem o interesse na salvaguarda de alguns espólios, como aconteceu com o de Domingos Lima ou com Bento de Assunção Leite, senhor de uma colecção de livros sobre temática marítima que, admite o vereador, vão enriquecer um espaço de leitura no futuro Museu do Mar.

Edifício guarda bibliotecas de 26 personalidades

Desta forma, doadas ou por vezes vendidas, as bibliotecas e, nalguns casos, a documentação de 26 personalidades estão nas mãos do município. Manuel Lopes (1943-2006) ainda acrescentou no legado à cidade a sua casa, tornada espaço cultural, mas os milhares de livros e documentos espalhados em salas de acesso reservado no edifício inaugurado em 1991 obrigam o município da Póvoa a pensar seriamente na necessidade de usar parte do jardim nas traseiras da biblioteca para uma ampliação. Até porque o vereador vai assumindo estar à espera de outros acervos importantes, dignos do melhor acolhimento, dado o interesse que suscitarão, certamente, na comunidade científica.

É por tudo isto, e pelos milhares de documentos de Ezequiel de Campos recém-regressados à terra natal do antigo professor da FEUP, que por estes dias, algumas das salas da biblioteca se parecem mais com os espaços de um arquivo, tal a quantidade de papel que por ali se vê à espera de ser salvo dos bichos e fungos, e de um trabalho de análise e catalogação que lhes ordem e um sentido que os torne úteis para o visitante. Entre as 2300 cartas já contabilizadas será preciso perceber, por exemplo, se A. Sérgio, que assina um postal mostrado ao PÚBLICO, é mesmo António Sérgio, co-fundador, como Ezequiel de Campos e outros intelectuais, da Seara Nova, em 1921. 

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Muita da documentação é composta de manuscritos de obras de Ezequiel de Campos Adriano Miranda

Só livros, viajaram da Casa do Mosteiro para a Póvoa 1800 exemplares de obras várias. Mas o mais importante será mesmo a documentação e manuscritos deste homem ecléctico, que se dedicou às questões agrárias e florestais, na “metrópole”, na Madeira ou em São Tomé – onde exerceu o seu primeiro cargo, “projectando reformas agrícolas e de viação ferroviária, bem como um programa de educação destinado às populações locais” – , lê-se na sua biografia, escrita por Noémia Castro para o site da Universidade do Porto. Os cargos que ocupou após o seu regresso a Portugal explicam o seu interesse noutras áreas como a siderurgia, a electrificação das cidades e a produção hidroeléctrica num rio Douro ainda inexplorado, a actividade portuária em Leixões, onde imaginou um canal navegável a ligar o Douro ao Leça, o alargamento do regadio na bacia do Mondego, etc.

Lembra Noémia Castro que, em 1911, após a proclamação da República, “Ezequiel de Campos foi eleito deputado à Assembleia Constituinte pelo Círculo de Santo Tirso. A 1 de Março de 1917, casou com Isolina Gonçalves Mendes, de Beiriz. Em 1918 foi nomeado pelo ministro Francisco Xavier Esteves para dirigir os Estudos Hidráulicos do Douro, Cávado e Tejo. Entre 1922 e 1939 desempenhou o cargo de diretor dos Serviços Municipalizados de Gás e Eletricidade do Porto. Foi Ministro da Agricultura durante alguns meses do ano de 1924, no breve governo de José Domingues dos Santos. Durante o Estado Novo, foi Procurador à Câmara Corporativa. Entre 1957 e 1964 pertenceu ao Conselho da Presidência. Foi ainda docente do Ensino Superior: no Instituto Superior do Comércio do Porto, entre 1925 e 1927; e na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, entre 1928 e 1944”.

Na universidade, Ezequiel de Campos proferiu em 12 de Dezembro de 1944 a sua última lição, intitulada A Ideia, a Produção mais Valiosa do Mundo, editada no ano seguinte. Nela, o homem que nunca se coibira de passar as fronteiras entre saberes; que participou nos planos de urbanização da Póvoa ou do Porto com o mesmo empenho que pusera nos seus sonhos de um país autónomo do ponto de vista energético - concretizados na autoria da barragem do Carrapatelo, a primeira no Douro português - avisava que “os povos que não têm ideias práticas para aproveitar os recursos potenciais do seu território continuarão a ser explorados pelos que têm essa habilidade”. Palavras ditas há 70 anos mas que, como avisava Manuel Lopes, mantêm, como a sua obra, “toda a actualidade e interesse”. 

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