Noutra vida eu fui mineiro

O couto mineiro do Pejão, em Castelo de Paiva, fechou em 1994, mas os antigos mineiros ainda por lá andam, transformados em outra coisa, porque a vida lá de baixo, no subsolo, é impensável cá em cima. António Pinto, mineiro durante dez anos, conta porquê.

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António abriu o jornal e viu a sua outra vida. Aquela em que o trabalho lhe deixava o rosto e o corpo pintados de negro. Hoje é cozinheiro e passa os dias vestido de branco. António viu-se no PÚBLICO quando os seus dias eram passados na escuridão, 400 metros abaixo do solo, no couto mineiro do Pejão, em Pedorido, Castelo de Paiva. E teve saudades daquela vida que morreu com o encerramento das minas, antes de uma nova começar. “Eu tenho muito orgulho em ter sido mineiro.”

O arame farpado colocado por cima do portão de acesso ao couto mineiro abandonado está coberto de ferrugem, testemunha dos anos que passaram desde que o último carregamento de carvão deixou Pejão, em Dezembro de 1994. António Pinto tinha 32 anos, cinco filhos pequenos e ficava desempregado. Mas o que perdeu, diz hoje, foi muito mais do que o ordenado ao fim do mês. Foi toda uma forma de vida, que só existia ali, depois de cruzar a entrada da mina, depois de atravessar o primeiro túnel e dobrar a esquina que escondia, em definitivo, a luz do dia.

“Lá dentro nós éramos companheiros”, diz junto à boca negra de acesso à mina. Coloca-se num determinado local sobre a relva, num ângulo preciso em relação àquele acesso para a sua vida passada, e diz para o homem da máquina fotográfica: “Foi aqui que me tirou aquela fotografia, exactamente aqui.”

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António na sua vida de mineiro Adriano Miranda

A fotografia de Adriano Miranda, tirada quando este ainda estava a estudar Fotografia, já fora publicada no jornal e integrara uma exposição nos Encontros da Imagem, em Braga. Recentemente, voltou a aparecer num portefólio sobre operários (PÚBLICO, 6 Março de 2016). António viu-se ali e escreveu-nos um email. “Lembro-me como se fosse hoje do momento em que me bateu essa foto.” O fotojornalista Adriano Miranda voltou às minas ao longo de três anos, a última vez em Janeiro de 1994, no início do ano que veria o fim do Pejão. Para António foi também o fim de Pedorido, a terra que crescia à sombras das minas, dos salários dos mineiros, mais elevados do que a média por causa da dureza do trabalho. Uma terra de mercearias e cafés em cada esquina, em que as casas não tinham relógios, porque os ritmos do dia eram guiados pela passagem dos homens que iam ou regressavam da mina, e dos transportes que abandonavam o complexo, carregados de carvão. Fechadas as minas, foram-se as pessoas. António diz que ainda há dias passeou pela localidade e só encontrou três pessoas nas ruas. E que “90% dos companheiros emigraram para a construção em Espanha”. Ele não foi tão longe. Partiu para Santa Maria da Feira, a cerca de 30 quilómetros, regressou à profissão que já experimentara, mas que trocara pelas minas, a de cozinheiro. As minas é que nunca mais o deixaram.

Olhar para trás, olhar para a luz

As minas eram uma realidade entranhada na família de António Pinto. O seu avô materno mudara-se para ali, para trabalhar debaixo de terra. O avô paterno, que era lavrador, também chegou na década de 1930, com a intenção de pôr o filho Manuel a trabalhar no Pejão. E ele foi. O pai de António cumpriu esse destino e enquanto chegavam os cinco filhos, a vida da família era regulada por aquela profissão, que fazia Constança, mulher de Manuel, andar com o coração nas mãos, sempre a pedir aos santos que trouxessem o homem de lá de baixo são e salvo. “Quando o meu pai estava na mina, não se ligava o rádio em casa, não se falava alto, não havia risos. Se os homens começavam a passar e ele não vinha logo, a minha mãe começava a dizer que ele estava atrasado, temendo que alguma coisa tivesse acontecido”, recorda António, com a camisola decotada a deixar ver o grosso crucifixo que traz ao pescoço.

Constança poderá por isso não ter achado muita graça quando o filho mais velho também se tornou mineiro. Na altura, o complexo era um mundo. Tinha piscina, escola, court de ténis. Nos anos de 1960 tiveram banda de música (ainda existe) e diversos clubes de actividades desportivas. António entrou pela primeira vez no Pejão com 13 anos, para frequentar o curso de carpintaria. Os alunos visitavam as minas, o local escuro não era por isso novidade quando no primeiro dia se apresentou ao trabalho. Mas agora era diferente. Agora era um deles. Não teve medo, confessa. “Senti-me um homem.” E assim foi durante dez anos.

Com os filhos a chegar uns atrás dos outros, António não facilitava. Trabalhava na mina à semana, lavrava o terreno que tinha, seguindo as pisadas do avô lavrador, assumia a cozinha de um restaurante ao sábado e domingo. A opção pelas minas tinha sido um misto de racionalidade e sonho, diz. “Casei muito cedo, com 20 anos. Casei em Maio e em Julho nasceu a minha filha. Em Setembro fui cumprir o serviço militar e quando regressei fui para as minas porque ofereciam outras condições salariais. Ganhava o equivalente a 100 euros no restaurante e nas minas fui ganhar quase o dobro.” Mas havia mais. “Pisei todos os caminhos que o meu pai trilhou. Eu era o mais velho e queria seguir-lhe as pisadas.”

O complexo está fechado e abandonado. As antigas estruturas de apoio à mina e às oficinas que ali existiam não são mais do que esqueletos que se estendem colina abaixo até ao Douro. Mal começamos a descer o caminho principal, somos recebidos por uma raposa de pêlo castanho, que pára e volta a cabeça na nossa direcção, por duas vezes, intrigada com quem se intromete nos seus domínios. Depois, desaparece entre a folhagem e nunca mais se deixa ver. A entrada da mina é um buraco negro coberto de água. António atreve-se, conhece o percurso de olhos fechados. Repete o trajecto que cumpriu durante uma década sempre com o mesmo ritual. “Ao fim do primeiro pedaço de caminho há uma curva e antes de a virar olhávamos sempre para trás, para a luz. Era a última vez que víamos a luz do dia antes de descer na jaula, o elevador que nos levava para baixo.”

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Seguimos-lhe os passos, sentimos como luz nenhuma parece ser suficiente para alumiar o caminho. Viramos aquela esquina e à nossa frente só há negrume. António quer seguir um pouco mais, porque é só vencer mais uns metros para se encontrar, à esquerda, o altar onde em tempo de actividade repousava a estátua de Santa Bárbara – a padroeira dos mineiros, a que António e todos os companheiros rezavam, pedindo protecção. “Ali deixávamos a nossa vida. Éramos todos pessoas de fé. Olhávamos para trás e só pensávamos: ‘Será que voltamos a ver a luz do dia?’ Deixávamos a família toda, pai, mãe, mulher, filhos, ao cuidado de Santa Bárbara.” Depois, eram apenas as profundezas durante o tempo que durava o turno – entre as 7h e as 15h ou entre as 15h e as 23h.

Também Adriano Miranda descia às minas com os mineiros da manhã, mas estava sempre de regresso a tempo de fotografar a mudança de turno, à espera dos rostos dos homens imersos em carvão. Foi num desses instantes, no final de um dia de trabalho de António, que o fotografou, um rosto completamente escurecido e sério, fechado. Naquela altura, a ameaça já pairava sobre as minas. A decisão de encerrar o couto mineiro, por pressão da Comissão Europeia, já fora assumida pelo Governo em 1989. Em Outubro de 1990, é publicado o decreto que consuma esse facto. O fecho definitivo é agendado para 31 de Dezembro de 1994, com Cavaco Silva como primeiro-ministro.

As razões apontadas para esta decisão eram várias. O carvão que dali saía deixara de ser rentável. Dos Estados Unidos e da África do Sul importava-se a tonelada por metade do preço, diziam os jornais da época, e, além disso, a qualidade do produto do Pejão já não era a mesma. A percentagem de cinza no carvão atingia os 40% e a quase totalidade do produto arrancado à terra tinha um único destinatário: a Tapada do Outeiro, uma central térmica do outro lado do rio Douro, em Gondomar, onde o minério chegava em barcos conhecidos como "a Esquadra Negra do Pejão". Portanto, os mineiros sabiam que o pior podia acontecer. Mas, ao mesmo tempo, os dias continuavam, olhavam e viam investimento, as oficinas funcionavam, e a secreta esperança de que um futuro sem minas não chegasse instalava-se.

Por isso, nos dez anos em que lá esteve, António nunca deixou de se empenhar. Queria progredir. Ultrapassar o pai. “Oferecia-me para todos os trabalhos arriscados.” À conta disso, teve três acidentes. Mostra o dedo mindinho curvado, que nunca mais foi ao sítio, depois de se ter partido. Também fracturou um pulso, um braço, um tornozelo. Mas nada que se compare com outros acidentes mais graves: só no ano de 1985 morreram cinco trabalhadores – três no interior da mina, dois no exterior. E António recorda-se de um companheiro apanhado por um rebentamento e que ficou soterrado sob pedra e água antes de ser encontrado. “Já o temos.” Foi esta a frase que se recorda de ouvir a um companheiro, quando chegou ao pé dele. António ajudou a carregar o moribundo para fora. Pousa a mão no ombro esquerdo e diz: “A cabeça dele vinha aqui pousada, com três cortes fundos.”

É uma memória triste, mas não são de tristeza a maior parte das memórias que guarda. “Lá em baixo podíamos fazer tudo, estávamos sempre a brincar uns com outros, a pregar partidas, e ninguém levava a mal. Cá fora já não era assim, mas lá em baixo éramos companheiros, havia solidariedade.” "Lá em baixo" tornou-se uma impossibilidade há 22 anos.

A família "29"

Santa Bárbara desapareceu do nicho onde estava. Mas em torno do altar há restos de velas recentes, prova de que ainda há quem ali vá, apesar da escuridão, da água no chão, da madeira espalhada e que já se desprende do tecto naquele ponto. No retrocesso para a saída, descobrem-se pontos de luz que pareciam inexistentes ainda há minutos. Aberturas laterais que iluminam um bocadinho e que há pouco, ao entrar na mina, podíamos jurar que não existiam.

Lá fora, António recorda o tempo em que deixou de ser mineiro. “Foi um retrocesso muito grande na minha vida. Tudo ficou lá, no fundo do poço.”

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António nos dias de hoje Adriano Miranda

Os mineiros não partiram sem luta. No dia 29 de Dezembro de 1994, naquele que seria o seu último dia de trabalho, já não os deixaram descer. Dos 501 trabalhadores, 381 seriam despedidos no fim do ano, os outros 120 continuariam por mais uns meses, para desmantelar a estrutura. A ideia do presidente da Câmara de Castelo de Paiva da altura, Antero Gaspar, de inaugurar, no último dia do ano, o monumento ao mineiro, à porta do complexo, foi mal entendida. Parecia que se queria festejar o fim de um modo de vida. Os mineiros levaram a mal. Foi o rastilho para um protesto que duraria quase um mês, com uma manifestação em Lisboa e muita tensão, quando os mineiros ameaçaram inundar as minas, causando um desastre ecológico na região. Uma hipótese que acabaria por não se concretizar, depois de intensas negociações com o Governo, que acabou por aceder a alguns dos pedidos, como a construção de uma área industrial e melhorias nos acessos rodoviários.

António levou para ali um fogão. Levou os filhos. A família “29”, alcunha pela qual é conhecida, estava bem representada. Passavam os dias à porta, agarrados a algo que já não existia. Tinha acabado, mas custou-lhe aceitar. Ainda agora, depois de os terrenos terem sido comprados por um membro da família Amorim, lhe custa ver tudo ao abandono. Em 2006 surgiram notícias de que o couto mineiro seria transformado num complexo turístico, mantendo a memória do que ali se produzira. Nada aconteceu. “Não se percebe. Foi a segunda maior empresa nacional, com capitais públicos, e está para aqui tudo ao abandono.”

Hoje o Pejão permanece à espera não se sabe de quê. O célebre monumento ao mineiro está à porta, com os seus sete mineiros de bronze, equipados para o trabalho. Só foi inaugurado em Junho de 1996. Tudo o que representam não é mais do que uma memória.

 

A entrada para a mina, onde trabalhavam António e os companheiros Adriano Miranda/Público
Lá em baixo "era uma alegria, com muitas brincadeiras", recorda António Pinto Adriano Miranda/Público
O túnel de acesso ao poço, agora abandonado. Lá ao fundo, depois de uma curva, a luz do exterior desaparecia Adriano Miranda/Público
Os mineiros seguiam para as profundezas da terra em dois turnos, de manhã e à tarde Adriano Miranda/Público
O antigo couto mineiro é hoje um conjunto de esqueletos das estruturas e de entulho Adriano Miranda/Público
A fé era uma constante entre os mineiros, que diariamente rezavam para regressar à superfície, recorda António Adriano Miranda/Público
Na antiga sala da administração ainda subsiste um mapa em que eram registados os acidentes mensais e anuais Adriano Miranda/Público
O trabalho era feito a 400 metros de profundidade, com temperaturas que atingiam os 36ª e 98% de humidade Adriano Miranda/Público
Apesar do abandono de décadas ainda subsistem algumas memórias espalhadas pelos terrenos do Pejão Adriano Miranda/Público
A lâmpada no capacete era essncial ao trabalho dos mineiros que arrancavam o carvão das entranhas da mina Adriano Miranda/Público
A sala onde se desenhavam e analisam os mapas topográficos, onde já não há quem trabalhe Adriano Miranda/Público
Os mineiros comiam no interior da mina, durante o turno, apesar de existir um refeitório para o resto do pessoal, no exterior Adriano Miranda/Público
O carvão era despejado dos silos numa espécie de locomotiva, que o levava até ao rio Douro e aos "rabões", os barcos de transporte Adriano Miranda/Público
O trabalho no interior da terra, em Pedorido, terminou no final de 1994 Adriano Miranda/Público
Já não há vagões a seguir para o interior das minas do Pejão, nem a sair, carregados de carvão Adriano Miranda/Público
Os lenços transformavam-se em máscaras improvisadas, na tentativa de proteger os mineiros das poeiras que provocavam silicose Adriano Miranda/Público
As ruínas do antigo complexo estendem-se pela encosta, até ao rio Douro Adriano Miranda/Público
"Companheiro" era a forma carinhosa com que os mineiros se tratavam uns aos outros. "Havia uma enorme solidariedade", diz António Adriano Miranda/Público
Em 2006 anunciou-se um projecto turístico para o couto mineiro, mas ele nunca sairia do papel Adriano Miranda/Público
O pó do carvão cobria os mineiros de negro, ao fim de um turno de trabalho Adriano Miranda/Público
O complexo privado é hoje um espaço expectante, à espera de um futuro que tarda em chegar Adriano Miranda/Público
Quando as minas fecharam, 500 homens ficaram no desemprego, e muitos deles acabaram por emigrar Adriano Miranda/Público
Já nada resto dos antigos balneários, passagem obrigatória depois de um dia de trabalho Adriano Miranda/Público
Roupas e calçados eram içados em ganchos, para que as aberturas no tecto ajudassem a libertar os cheiros e partículas trazidos do subsolo Adriano Miranda/Público
António Pinto, 54 anos, foi mineiro no Pejão durante uma década e não oculta o orgulho nesse passado Adriano Miranda/Público
António Pinto, nos últimos anos de trabalho da mina, à saída de um dos turnos diários Adriano Miranda/Público
O monumento que foi o rastilho para a revolta dos mineiros, aquando do encerramento das minas Adriano Miranda/Público
O fim das minas do Pejão foi também o fim de um modo de vida em Pedorido, e da vida, tal como a conheciam, de centenas de famílias Adriano Miranda/Público
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A entrada para a mina, onde trabalhavam António e os companheiros Adriano Miranda/Público
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