No Porto há arrumadores desempregados e reformados que pedem para comer

Já não há só toxicodependentes a ajudar automobilistas a encontrar lugar para estacionar

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O universo dos arrumadores de carros do Porto já não se resume só à toxicodependência e está cheio de histórias de quem troca lugares de estacionamento por moedas para comer, porque perdeu o emprego, a reforma não chega ou o negócio faliu.

Aos 43 anos, Jorge é o mais recente arrumador da Boavista. Chegou há seis meses, depois de ter ficado sem empresa, dinheiro e emprego. Procurou trabalho, tentou “ir para fora”, não conseguiu “nada”, restou-lhe arrumar carros, e a família nem sabe. “Estou sempre à espera de arranjar um trabalho para melhorar outra vez a minha vida e seguir em frente”, relata.
Arménio Duarte está reformado, tem 59 anos e tornou-se arrumador há três, porque “170 euros não dão para manter uma casa” e assim, “pelo menos, dá para comer”, apesar do embaraço: “Às vezes tenho vergonha, mas fujo para longe, para ninguém me conhecer”, descreve o trolha aposentado.
Desempregado há cinco anos, Sérgio Correia, de 37 anos, arruma automóveis há três, “para comer e comprar a medicação da mulher”. “Nunca andei em drogas. É para comer”, garante o pedreiro. “Durante dois anos andei à sucata, mas à sucata anda muita gente, não dá para comer. Ao menos aqui faço pelo menos 15 euros por dia. Chego às 9h00 e saio às 19h”, explica, lamentando que os 267 euros que recebia de Rendimento Social de Inserção se tenham transformado em 32 e que o aluguer de um quarto lhe custe 240.
Nuno Pereira, de 31 anos, dorme na rua. Foi lá parar porque era toxicodependente (consumia heroína e cocaína) e saiu de casa há 11 anos, mas agora está “no programa metadona, há um ano e dois meses”, e quer mudar. “Isto é chato. Fazia isto por causa da dependência. Não me estou a ver aqui muito mais tempo. Quero arranjar um trabalho, seja o que for. Sair daqui. Estou saturado”, desabafa. Ao longo do tempo notou mudanças: “Há mais arrumadores, muito mais. Até pessoas que tinham trabalho e ficaram desempregadas sujeitam-se a isso. Para sobreviver, senão é impossível. Ligados à droga não sei se são mais ou menos, mas são bastantes. Eu conheço muitos”.
Aos 52 anos, quase 53, Américo Matos arruma carros “há mais de dez anos” por causa do “vício da cocaína” e nota que “cada vez há mais” quem arrume carros “porque têm de levar para casa para comer”. O gosto pela conversa e o respeito com que aborda os automobilistas renderam-lhe a estima daqueles com quem se cruza diariamente: “Pode perguntar a quem quiser, ninguém lhe diz mal do Américo. Estou aqui para ajudar e toda a gente gosta de ser ajudada. Faço aqui muitas amizades”. O segredo é tratar bem os clientes, avisá-los das máquinas avariadas, ou convencê-los a dar-lhe a moeda que pretendiam colocar no parcómetro para ele a usar apenas se a polícia aparecer.
Revelando ser toxicodependente desde os 14 anos, por “ver o que não devia” na Sé, Américo explica que arruma carros para “não tirar de casa” e conseguir para lá levar “alguma coisinha”.
“Comprar umas sapatilhas para a menina [a filha, de 11 anos] já é complicado. Mas agora vou fazer uma desintoxicação. Quer dizer, para deixar a coca não é preciso desintoxicação, basta querer. Eu quero. Tenho é de sair do ambiente. É o que vou fazer, a ver se consigo dar um par de sapatos à menina, finalmente... “, observa.
“Perdi muita coisa, mas ainda estou a tempo de recuperar alguma. Acho que estou a meio do caminho... que vou mudar de vida. Uma pessoa diz sempre que sim, mas já chega de andar aí armado em maluco, porque isto já nem me diz nada...”, reconhece.

Mais de 20 chaves na mão

Ele sorri, cumprimenta, põe o talão do parcómetro no carro quando aparece a polícia, corre a avisar das multas. Conquistou os vizinhos e chega a ter 20 chaves de automóveis para gerir: Dragos Mocanu é “guarda-carros” no Porto.

“A primeira palavra que aprendi em português foi ‘Venha, venha, venha’. Agora fico com a chave dos carros. As pessoas acreditam e confiam. Vêem que não sou bem um arrumador, sou mais ou menos um guarda-carros. Posso acautelar as situações da melhor maneira para ninguém pagar multas ou estacionar em sítios errados”, descreve o ucraniano de 26 anos, a viver em Portugal há mais de três.
Dragos diz ter sido “por sorte” que ganhou a confiança de quem habitualmente estaciona na zona de Agramonte, mas admite empenho na tarefa cumprida em nome do sonho de ter um filho e dar-lhe “uma vida boa”. Explica que faz questão de ser bem-educado, de cumprimentar quem conhece, de deixar as pessoas divertidas e de ter uma cabeça que grava tudo - os nomes, os escritórios, os horários, os carros, as chaves, os lugares de estacionamento.
“No primeiro ano, consegui aprender português. Toda a gente se deu bem comigo. Pedi: vou falar em inglês, você em português, para eu aprender mais fácil e mais rápido. As pessoas concordaram. Passados nove meses, já sabia o principal. No segundo ano, uma pessoa que não tinha hipótese de sair do emprego deixou-me a chave. Falou com outras, disse-lhes que podiam deixar porque não roubava ou assaltava, era só para colocar o talão do parcómetro”, recorda.
Foi sobretudo depois de a zona ter entrado em obras que a tarefa de estacionar se complicou e a ajuda de Dragos se tornou preciosa. “Arranjei o sítio da melhor maneira para a maioria das pessoas poder estacionar”. Agora que a empreitada já terminou, nos dias mais movimentados Dragos fica com “20 e tal chaves durante um dia inteiro”.
O dinheiro que reúne é o que lhe deixam por simpatia ou o que lhe sobra na ginástica de colocar os talões dentro dos automóveis quando há multas à vista.
“As pessoas deixam o dinheiro. Se vier a polícia não o gasto todo. Coloco 20 cêntimos... Se vir que continuam a multar vou pôr mais. O que não gasto fica para mim”, explica.
Vivia na Roménia, onde aos nove anos foi abandonado pelo pai depois da morte da mãe, quando a renda da casa começou a consumir-lhe quase todo o ordenado de 170 euros. Sobravam 20 euros, chegou a não ter casa. Veio para Portugal porque “já não podia estar assim” e agora poupa tudo o que pode pela “ambição” de “ter uma mulher para ter uma criança”. Mas acha que nenhuma se vai interessar por ele enquanto arrumar carros. “As meninas pensam: ‘Vou-me enamorar por um arrumador?’ Não vêem a outra parte, só pensam na palavra arrumador”, lamenta.
O problema, diz, foi a ideia criada de que “todos os arrumadores são iguais”.
“Pensam que todos insultam, que todos estragam os carros. Mas não são todos. Aquele está a arrumar carros, mas se vier a polícia ele pira-se. Eu não, tenho de estar aqui, a tirar bilhetes, a ir buscar chaves”.
Dragos trabalha todos os dias, sábado e domingo incluídos, e até gosta do que faz. Mas aspira a mais. Gostava de ver instituída a profissão de “segurança de carros”.
“Isto não é vida. Para ter uma vida tens de ter um emprego, uma família, uma situação em que as pessoas olhem para ti de outra maneira. Aqui às vezes as pessoas olham-me como uma pessoa que dorme na rua, que não tem sentido nenhum. Que não faz nada, que não merece nada”, desabafa. 

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