No Cais do Sodré, o Povo alimenta o fado de calças de ganga

Povo é um restaurante/bar que leva ao forno as noites de Lisboa, tempera-as com Poesia e Fado e serve-as ainda quentes a quem ousar entrar. Nos últimos meses, revelou 15 novos fadistas.

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Nuno Ferreira Santos

Às 21h30 no nº 32-36 na Rua Nova do Carvalho, no Cais do Sodré, em Lisboa, o fado invade a sala cheia de saudade, na companhia de vinho tinto. “Foi Deus/Que me pôs no peito/Um rosário de penas/ Que vou desfiando/ E choro a cantar”. São os versos que ecoam na abertura da noite de homenagem a Sidónio Pereira, músico do Povo que faleceu recentemente. Amigos, familiares e 12 jovens que foram residentes deste espaço reúnem-se para cantar.

O cheiro confirma que se trata de uma tasca portuguesa, onde são servidos os mais tradicionais petiscos. Sara, assistente de Comunicação da Cultural Trend Lisbon (empresa que gere o espaço e o MusicBox), refere que o Povo é mais do que isso, sendo também “uma oportunidade para jovens cantores, não necessariamente fadistas, terem contacto com pessoas ligadas ao fado desde há muitos anos”. O espaço é ainda uma oportunidade para juntar outras “áreas musicais completamente diferentes como jazz, blues, através do processo de residência artística”.

É esta “fusão”, explica Sara, que lhes “permite construir uma identidade enquanto artistas e formarem-se”. Este processo tem início com a inscrição no casting que decorre de dois em dois meses, a partir do qual é feita a selecção de um futuro residente com base na qualidade vocal, motivação e capacidade de criação.

“A voz boa não chega”, explica Nuno Miguel Guedes, jornalista de profissão e um dos responsáveis pelo apoio nas residências de fado do Povo. “Mais vale ter menos voz e mais sentimento do que alguém com uma voz estupenda, e que canta muitíssimo bem, mas que não se quer livrar daquilo que canta”.

Os jovens candidatos devem perceber que não se trata de uma casa de fados em que há uma actuação formal, mas sim de aprendizagem, onde vão interagir com outras pessoas ligadas a várias áreas musicais. Sara considera que “tem que haver essa predisposição de querer aprender e ter humildade para experimentar”.

Os encontros são realizados no Povo com três actuações por noite, acompanhados por aulas de canto no Museu do Fado, financiadas pela casa. “Durante estes dois meses começam a desenvolver-se como artistas e a criar uma personalidade artística, uma forma de cantar, uma presença, que culmina na gravação de um disco que, mais do que um disco de estreia, é o disco zero que o fadista faz”, diz Sara. Até à data já foram gravados 15 discos, fruto do igual número de residências artísticas realizadas.
 

A mais recente fadista que gravou o seu disco, Marta Rosa, relembra que estava com “ganas de ir para os fados” e, por intermédio de uma amiga que estava residente na altura, Nádia Leirão, teve contacto com o Povo. Decidiu integrar o projecto porque se trata “de um modelo diferente daquilo que é a casa de fados em Lisboa, que às vezes se torna maçuda, repetitiva”, pressupondo um crescimento, uma vez que não é algo estático.

Marta, que canta oficialmente desde os 12 anos, refere que este processo “foi a continuação de outra coisa que já vinha de trás” e o facto de “cantar frequentemente quatro vezes por semana com os mesmos músicos dá a possibilidade de aprender outro tipo de repertório”, o que não aconteceria se fosse acompanhada por um músico com o qual não tem um contacto frequente.

“Cria-se uma cumplicidade e amizade porque se vê aquelas pessoas quase todos os dias”. Para Marta, não há dúvida de que se assiste a uma nova geração do fado que tem vindo a crescer. Os cantores do Povo são a prova disso. Marta recorda que quando começou a cantar lhe eram dirigidos comentários como “És tão novinha… cantas fado? Os velhinhos é que gostam de fado”.

Assistiu, num período de cinco anos, ao aumento do número de cantores e instrumentistas, e a uma maior variedade musical. “Estão-se a quebrar alguns preconceitos e visões quadradas de tradicionalismos. Há alguma vontade de usar e partir do que já existe para fazer uma coisa nova”.

O Povo contribui para a renovação em calças de ganga deste legado nacional, como explica Alexandre Pinto, dono do estabelecimento: “Estes jovens estão à procura da sua identidade enquanto fadistas e desenvolvem também um espírito de abertura a outros géneros musicais”.

As segundas são dias de poesia
A poesia acende a luz da casa à segunda-feira. Um público heterogéneo unido pela palavra, sentado e de pé, estende-se até à porta para a escutar. O tema da noite é o “Eterno Feminino”, inaugurado com palavras de Hélder Macedo na voz de José Anjos, um dos programadores dos Poetas do Povo: “O feminino é eterno, mas o ‘eterno feminino’ não existe, porque muda. O ‘eterno feminino’ é um termo perigoso inventado pelos homens para significar que as mulheres não são conhecíveis e que são uns seres mais ou menos indecifráveis”.

Seguidamente, para fazer justiça ao tema, actrizes, escritoras, jornalistas convidadas, entre as quais Patrícia Reis, Inês Fonseca Santos, Sandra Celas, Dora da Cruz e Francisca Aires Mateus, acompanhadas por improvisos musicais, serviram poemas à mesa. A poesia passou a fazer parte integrante do Povo há cerca de um ano, na sequência da falta que, na opinião de José Anjos, fazia à cidade “um espaço onde se pudesse dizer e ouvir poesia de forma informal para tentar recuperar a tradição de dizer poesia em Lisboa, que foi desaparecendo no fim da década de oitenta.” Nuno Miguel Guedes considera estes eventos como “um acto de identidade, de soberania, nesta altura em que estamos um bocadinho aflitos”.

Texto editado por Ana Fernandes

 

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