No Bairro do Intendente, em Lisboa, ainda há quem viva com medo

Um grupo de moradores e comerciantes do bairro lançaram uma petição para regular o consumo de droga nas ruas, mas discussão divide a população residente.

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Os problemas não desapareceram, só mudaram de morada Miguel Manso
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O renovado Largo de Pina Manique é hoje local de encontro de um público jovem e cosmopolita Miguel Manso
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Prostituição e droga sempre foram selos que se colavam ao Bairro do Intendente, na freguesia de Arroios. A fama tirou-lhe o proveito, entretanto restaurado com a chegada da sede de candidatura do então presidente da Câmara — e actual primeiro-ministro — António Costa para o Largo Pina Manique, o coração do bairro. Moradores e comerciantes não esquecem e ainda elogiam a sua dedicação à reestruturação da zona. A marginalidade nunca mudou de morada, mas melhorou com a sua vinda, dizem. Agora, lamentam o retrocesso, que se esconde em zonas menos afamadas, como as ruas dos Anjos e do Benformoso. O Largo Pina Manique, esse, é hoje um lugar de passagem para um novo público, alheio aos problemas do bairro.

Os moradores relacionam o regresso da decadência das ruas às obras no Cais do Sodré, antigo ponto de encontro para venda e consumo de droga. Este ano, 271 assinaturas deram voz a uma petição que já chegou à Câmara Municipal de Lisboa. Entre outras soluções para fazer frente ao consumo de droga nas ruas, moradores e comerciantes pedem mais policiamento e a revitalização da rua dos Anjos.

“Já houve uma melhoria, como toda a gente sabe. Foi bastante agradável. Mas de há alguns meses para cá, as coisas voltaram a piorar. É só ir lá fora e ver, mais ou menos a partir das três da tarde. Todos os dias”. Filipa, 27 anos, gere um restaurante tradicional português que é também vegetariano, o Sabor K Intende, o único na rua dos Anjos. O restante comércio é sobretudo bares e lojas de indianos. Juntamente com o antigo sócio, Bruno, agora político em França, redigiu a petição que chegou às mãos da presidente da Junta de Freguesia de Arroios, Margarida Martins. Há uma semana, Filipa marcou lugar na Assembleia Municipal. Foi a última vez que viu discutido o assunto junto de quem procurava uma resposta. Esta, está por dar. “A petição foi feita há nove meses. Não temos resposta nem prometeram discutir mais sobre o assunto”, esclarece.

Em entrevista ao PÚBLICO, Margarida Martins, presidente da Junta de Freguesia de Arroios, garante que as queixas estão a ser ouvidas e discutidas. “Tem havido reuniões na junta, com a polícia, inclusive. Temos outra esta segunda-feira para discutir este assunto”, explica. Mas, alerta, “não é algo que se consiga combater de um dia para o outro. Até porque não se pode combater de um lado e correr o risco de ver o problema ir para outro. Tem que se combater em conjunto”.

É entre a Rua dos Anjos e a Rua do Benformoso que se desenha o bairro do Intendente. Há um cheiro de cerveja derramada pelo chão. As casas, a maioria de vidros partidos, azulejos sujos e portas sempre abertas, fazem convites à troca e consumo de estupefacientes. No centro, o Largo, o coração da área. Um órgão renovado, agora local de encontro de um público jovem e cosmopolita.

Falar no processo de viragem do que foi e do que é hoje o Intendente é, para todos os que lá moram, relembrar 2011, ano em que António Costa, na altura presidente da Câmara Municipal de Lisboa, faz as malas e ruma ao bairro. Aqui instalou a sua sede de candidatura. Já em 1849, no lugar que entretanto ocupou, havia uma oficina de olaria, entregue às mãos de alguém que dava pelo mesmo nome, António Costa.

A antiga oficina Viúva Lamego tornou-se também a sede da esperança de um renovado bairro. Os, até então, invisíveis ganharam rosto e deixou de haver medo de ali passar. Contudo, os problemas não foram erradicados.

Rosa Ribeiro, 54, mora na Benformoso desde os seus três anos. Quando chegou, “ainda não havia consumo e tráfico de droga. Havia prostituição”. “Este bairro sempre foi um bairro boémio”, lembra. Desde cedo, aprendeu que ambas as realidades integravam os traços da cultura deste bairro. Foi o ambiente em que cresceu. Mas agora, pela primeira vez, pondera abandonar a sua casa.

“À porta da casa do meu filho estão sempre pessoas a consumir. Há bem pouco tempo, foi ameaçado com uma faca. Há mais tempo empurraram a minha nora, que tinha a bebé de um mês ao colo. Bateram com a cabeça e foram parar ao hospital em estado grave”, conta uma das moradoras mais antigas, para quem chamar as autoridades se tornou prática diária. “Todos sabem que isto existe. Acontece há mais de 20 anos, não dois dias. E a polícia não faz nada. Para mim, isto só pode ser corrupção”, desabafa.

Um projecto em abandono

Quem caminha pelo revitalizado Largo do Intendente não imagina o ambiente, contrastante, que se respira nas ruas adjacentes. Separa-os pequenas passadeiras, entre o moderno e o que sempre lá ficou. “Parecem duas aldeias diferentes. É um mundo completamente à parte”, desabafa Filipa.

A altura das casas, frente a frente, distanciadas por uma estreita rua de paralelos cinzentos, tapa o sol que por ali vai espreitando. Nas sombras, de um lado para o outro, vagueiam prostitutas, presença habitual na zona. Mas, desabafa Filipa, “fossem esses todos os problemas”.

Também o tráfico de droga faz parte da mobília da casa. Sofre o seu restaurante, que tem sobrevivido de clientes habituais e dos dias de folga do mundo da droga. Chegou àquela rua na altura em que o problema parecia estar extinto. “Acontece-me regularmente ter pessoas mesmo ao lado da porta a consumir estupefacientes e ver chegar clientes que, ao repararem nesta situação, recuam e decidem não entrar. Se me levarem a jantar a um sítio assim, também prefiro não entrar. Tenho que me pôr no lugar das outras pessoas”, acrescenta.

Já Marta Silva olha o bairro como um lugar mais maduro e “bem comportado”, no qual nunca se sentiu realmente insegura. Bailarina de profissão, passa a maioria do seu tempo no Largo do Intendente, onde edificou, num edifício abandonado, a cooperativa cultural Largo Residências.

“Pousei os pés no Intendente há seis anos. No entanto, já trabalhava nesta freguesia e neste bairro há mais de dez. Por profissão e por uma questão pessoal, sempre fui de trocar as grandes avenidas pelas ruelas. Por isso, ia passando aqui”, conta. “Eles não se metem com os outros”. “São menos do que em 2011”, antes das reformas aplicadas por António Costa, “mais do que em 2013”, mas “as ruas não estão conflituosas”.

Admite ser uma “voz contraditória” no bairro. Não concorda com a petição que chegou à Assembleia Municipal. Compreende o ponto de viragem que a zona tem sentido “nos últimos dois anos”, mas não com as soluções propostas. Explica que o problema do Intendente “é o produto de algo que demora muito tempo a ser feito e de algo que foi, entretanto, mudado” e que isso “entra em colisão com os interesses que as pessoas têm do presente, do imediato”.

Ainda assim, concede legitimidade “à avaliação que algumas pessoas fazem”, pois “um projecto de reabilitação que foi bem começado, com uma filosofia estratégica e pluridisciplinar, foi um pouco abandonado nos últimos anos”.

Atraídos pelas melhorias sociais implementadas pelo antigo presidente da câmara, no Largo do Intendente instalaram-se novos investidores, novo comércio. Entretanto, “os consumidores de rua, pelo trabalho de proximidade, pela presença de crianças e de clientes habituais nos estabelecimentos, começaram, organicamente, a ter muito mais cuidado com aquilo que faziam na rua. O consumo na rua foi reorganizando-se e isto deixou de ser um lugar por onde ninguém passava”, explica Marta.

Depois de Casal, o Intendente

“Houve uma fase no bairro em que qualquer pessoa que entrasse aqui tinha que pisar uma seringa”, recorda António Vasconcelos. Na passada quinta-feira, moradores, comerciantes e interessados pela história do bairro reuniram-se no Largo para discutir a transformação do Intendente. “Ninja” ou “Tozé”, como é por lá conhecido, lamenta ter passado e representado o pior daquele bairro. Fez parte de um mundo a que chamou “a ponte para o antigo Casal Ventoso”. “Comprava-se lá, consumia-se aqui”, explica.

Tozé não poupa nos elogios à que é agora a sua casa e admite que comparar “o Intendente de 1978 e de 2017 é o mesmo que beber um copo de água e um litro de óleo”.

Nessa altura, os problemas subiam as ruas do bairro para se instalar em outras ruas. Na porta 6F, na Rua da Palma, tem morada uma antiga lavandaria, “com mais de 100 anos”, conta a responsável. Durante os 53 anos de presença na loja, são apenas três o número de vezes que se atreveu a visitar o bairro do Intendente, situado mesmo nas suas costas.

Em tempos, a insegurança morava à sua porta. “As pessoas tinham medo de vir para aqui e nós sofremos muito com isso”. Antigamente, tudo o que luzia “era roubado”. Debaixo dos andaimes que ocupavam a rua, consumia-se e vendia-se droga a qualquer altura do dia, sem receio dos olhos alheios. A chegada da 4ª esquadra da PSP à Rua da Palma veio acalmar o infortúnio destes comerciantes.

Hoje, a polícia guarda as portas e todos os que por cá passam parecem caminhar mais seguros. Que o diga João Ramalho, 67 anos, taxista, bom conhecedor da fama destas ruas. “Mudou tudo. Principalmente o Largo. Era um sítio com muita prostituição, muita droga. Eu não gostava de passar ali”. Nesta tarde, era de lá que vinha. A Rua dos Anjos faz parte do seu itinerário para passear o cão.

Filipa ainda olha para as artérias do novo Largo como pedaços de um Intendente esquecido. Para Marta, “a grande falha dos últimos anos foi a resposta social”. “A resolução do problema deveria ter começado quando começamos a falar do plano de desenvolvimento comunitário. Se isso tivesse acontecido, acho que não estaríamos com tantos problemas como estamos agora”.

Trabalhar no terreno, através do processo de entaipe dos prédios e casas abandonados do bairro, é, para a presidente da Junta de Freguesia de Arroios, a melhor forma de combater o problema. Contudo, sublinha que para que isso aconteça necessita da lei a seu lado e “só a Câmara pode forçar isso”.

Texto editado por Ana Fernandes     

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