Mira Douro

Foto

Às vezes é preciso sair da cidade para a apreciar como ela merece. No caso do Porto, não é preciso ir muito longe. Basta deixar-se levar pelo metro, Ponte de Luís I adiante, até à primeira paragem do lado de Vila Nova de Gaia, no Jardim do Morro, e depois voltar para trás. Encostar-se ao muro baixo do jardim e apreciar a paisagem, antes de regressar, a pé, pelo tabuleiro superior da ponte a que os portuenses preferem chamar D. Luís. Devia ser proibido visitar o Porto e não o ver de onde ele é, no conjunto, mais bonito, do lado de Gaia.

Do jardim vê-se a curva perfeita do Douro, quase em cotovelo, e a forma como o rio parece deslizar, serpenteando entre o casario em direcção à Ponte da Arrábida. Os barcos rabelos, parados na margem de Gaia, têm as velas enfunadas, com o nome dos vinhos que há séculos contribuem para a fama da cidade: Ferreira, Graham’s, Cockburns, Dow’s, Barros, Taylor, Warre’s, Sandeman, Offley… No outro extremo da Luís I, a cascata do centro histórico portuense desce até à marginal da Ribeira que, antes das 10h, ainda está muito vazia de gente.

Dali, as torres da Sé parecem ser o ponto mais alto da cidade. A Torre dos Clérigos é só uma pontinha de pedra rendilhada a espreitar entre outras fachadas e a abóboda esverdeada do Pavilhão Rosa Mota, a destacar-se do arvoredo, nunca se pareceu tanto com um OVNI. Isto é ver o Porto, antes de entrar no tabuleiro superior da ponte metálica projectada pelo belga Théophile Seyrig, no século XIX. Mas, para saborear a paisagem, é preciso atravessar a Luís I e ver como ela se vai modificando, como pedaços do Douro desaparecem enquanto outros se agigantam e como as outras pontes da cidade entram em cena, numa amálgama de ferro e cimento difícil de deslaçar.

Foto

Anda-se um bocadinho e os nomes que há pouco só se viam nas velas dos rabelos aparecem agora reproduzidos nos armazéns do vinho do Porto que se espalham pelo centro histórico de Gaia. Estão pintados nas paredes, nos telhados longos e alaranjados ou pendurados em anúncios a três dimensões. O tabuleiro trepida mansamente, como se a ponte não soubesse estar quieta, e o metro passa devagar, sem atrapalhar os turistas que quase não dão dois passos sem tirar mais uma fotografia.

Quando o rio, na direcção da Foz, faz a curva e se começa a esconder, aparecem do outro lado (e é preciso verificar se não vem aí alguma composição do metro e atravessar para o outro lado) as restantes pontes da cidade: a Infante D. Henrique, a Maria Pia e a do Freixo.

Deste lado, as escarpas das duas margens são mais despovoadas, mais abandonadas, mais verdes. Mas é também aqui que está o pedaço da muralha fernandina que ainda há dias percorremos e que estão inscritos na pedra, como uma cicatriz bem definida, os carris do funicular, que liga a parte alta e a marginal.

Mudamos, de novo, de parapeito, à medida que nos aproximamos do fim da travessia e lá estão a fachada do Palácio da Bolsa, a pedra antiga da Igreja de S. Francisco e, aqui mais perto, o elevador da Lada. À nossa frente, as traseiras da Rua de D. Hugo mostram fachadas de escombros e outras recuperadas, sob as quais corre um verdadeiro tapete verde e lilás de plantas invasoras. Há ruínas de habitações a espreitar entre a vegetação e o ruído de um martelo leva-nos até um edifício que está a ganhar um telhado novo, ali ao lado do matagal.

Mais uns passos e deixamos a Luís I, construída entre 1881 e 1888, para substituir a antiga ponte pênsil, incapaz de arcar com o aumento de gente e mercadorias que cruzavam as duas margens. O tabuleiro superior foi inaugurado já em 1886, dois anos antes do inferior e, a 1 de Novembro, um dia depois da inauguração, entrou em vigor o pagamento de portagens exigido a todos os que queriam fazer a travessia. Cinco réis por pessoa era o custo da época, mas os animais e as carruagens também estavam sujeitos a pagamento.

Em 1905, chegaram os carris do eléctrico, e continuava a pagar-se portagem. De facto, seria preciso esperar pelo arranque do ano de 1944 para que o pagamento fosse abolido. Hoje, há de novo um transporte colectivo a atravessar a Luís I (o metro, desde 2005), mas atravessá-la a pé é de graça. A ponte não é só uma passagem para a outra margem. É também um miradouro de 385 metros, em que o cenário vai mudando gentilmente, a cada passo que se dá.     

Sugerir correcção
Comentar