Jean Georgelin caiu ao mar mas um navio português salvou-o. Quase 60 anos depois, veio agradecer

Um pescador francês, hoje com mais de 70 anos, foi salvo ao largo da ilha da Terra Nova, na costa leste do Canadá, pelos tripulantes do navio português Águas Santas. A vontade de vir a Portugal para agradecer cumpriu-se esta semana, após dois anos de busca pelos marinheiros que o resgataram.

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O navio-hospital Gil Eannes foi o ponto de reencontro entre Jean Georgelin, pescador do navio francês Colonel Pleven, e três membros da tripulação do Águas Santas para evocar aquele episódio de Março de 1959, nas águas frias do Golfo de S. Lourenço, junto à Terra Nova, em que se viu resgatado por uma tripulação que fez valer o princípio da salvaguarda da vida humana.

“Queria agradecer primeiro ao capitão do Águas Santas, Manuel Lourenço Catarino, porque, sem ele, os dois marinheiros não teriam partido do seu dóri para me salvar”, começou Jean, emocionado, perante uma sala repleta, quer de antigos pescadores franceses, oriundos de Saint Malo, cidade costeira na Bretanha (oeste de França), quer de portugueses de Viana do Castelo e de outras zonas, já depois de ter contado num breve filme a história que quase lhe custou a vida aos 16 anos.

Jean Georgelin era, no final da década de 50, um dos tripulantes do Colonel Pleven, arrastão que navegava os mares desde 1947 e que se encontrava na primeira das duas campanhas de pesca de 1959. O antigo pescador recordou que os navios procuravam o bacalhau nas “orlas” das zonas de gelo, tendo frequentemente de as contornar. Nesse dia de Março, o Colonel Pleven passou junto ao navio espanhol Santa Rita quando tentava circundar um desses blocos gelados. Jean Georgelin estava na proa, quando uma “onda de três, quatro metros de bombordo” levou os “aparelhos de pesca” das duas embarcações a ficarem presos um no outro, até os cabos do Colonel Pleven rebentarem.

“Fui catapultado pelo aparelho borda fora”, recordou o então pescador de 16 anos, que viu depois, agarrado a um bloco de gelo, o seu navio ficar à “deriva”, em virtude da “corrente forte” do golfo. Jean Georgelin manteve-se à tona até ver uma “silhueta negra” na sua direcção e reconhecer um navio português a abrandar e a “lançar o dóri na água”.

Esse dóri, tripulado por dois homens de S. Jacinto (Aveiro) – Abílio Brandão, já falecido, e Manuel Bola, hoje com mais de 80 anos -, resgatou o náufrago e levou-o de volta ao seu navio, onde a primeira memória que guarda, depois de ter acordado, é a do capitão a dizer que havia “trabalho no convés”.

Depois de quase 60 anos longe daqueles que o salvaram, com uma vida que o levou a tornar-se empresário, o pescador de Saint Maló cumpriu um desejo adiado por quase seis décadas ao visitar Manuel Bola em S. Jacinto, na quinta-feira, um dia depois de se ter reunido com outros três marinheiros lusos: Alfredo Vasconcelos Presa, de Vila Praia de Âncora, José Jacques, de Alvor (Portimão) e José Alberto, que viajou da Ericeira a Viana com mais de 20 pessoas e preserva ainda a memória do salvamento.

“A gente estava a trabalhar, quando vimos alguém a pedir socorro. Foi de repente. O capitão disse para arrear o bote, e foram os dois rapazes que andavam sempre nos botes socorrê-lo, naquela água gelada”, disse.

Reencontro concluiu busca de dois anos

O “sonho” do pescador resgatado começou a tornar-se realidade através da Mémoire et Patrimoine des Terres-Neuvas, associação fundada em 2004 para preservar o legado dos pescadores de Saint Malo que partiam para a Terra Nova. O presidente, Yacinthe Chapron, marcou presença em Viana do Castelo, e reconheceu que o sucesso da busca pelos pescadores lusos resultou dos esforços de Jean Pierre Andrieux, coleccionador de fotografias da pesca do bacalhau, que reside em St. John’s, na Terra Nova, e de Aurora Rego, historiadora de Caminha, que publicou o livro “Viagens à Terra Nova”.

“Fui à lista da tripulação de 1959, que tinha 68 homens, através do Museu de Ílhavo, que tem lá os dados todos. Dessa tripulação, consegui descobrir alguns”, explicou a historiadora ao PÚBLICO. Depois de recolhida a lista, Aurora Rego contactou todas as juntas de freguesia de residência dos marinheiros e descobriu que alguns deles já tinham morrido, outros emigrado e outros impedidos de participarem no reencontro por “motivos de saúde”.

Autarcas enaltecem história marítima comum

“A pesca dos portugueses e dos franceses na Terra Nova remonta ao século XVI”, afirmou o representante da comuna de Saint Malo, Jacques Bernard, frisando que tanto a cidade da Bretanha, como Viana do Castelo retiraram, por muito tempo, a “maior parte da riqueza do mar”, nomeadamente da “pesca do bacalhau na Terra Nova”.

O presidente da Câmara de Viana e também da Fundação Gil Eannes, José Maria Costa, pediu uma “cooperação mais forte” entre as duas cidades e recordou João Álvares Fagundes, o explorador de Viana do Castelo do século XVI, que reconheceu as linhas costeiras de territórios que hoje são as províncias canadianas da Nova Escócia e de Terra Nova e Labrador.

As várias lembranças trocadas entre portugueses e franceses incluíram um quadro doado pela associação de Saint Maló à Fundação Gil Eannes, que realça o dóri, o agente principal no salvamento de Jean Georgelin, entre todos os navios presentes num episódio em que a vida prevaleceu.

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