Foz do Dão, a aldeia que desapareceu há 30 anos volta à superfície

Exposição em Santa Comba Dão trabalha memórias dos antigos habitantes da aldeia que ficou submersa na sequência da construção da barragem da Aguieira.

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“Daqui até lá abaixo era tudo amanhado”, diz Amadeu Marques, de 77 anos, para explicar que a superfície de água que temos à frente eram campos de cultivo. O “aqui” é um pequeno istmo na albufeira da Aguieira e o “lá abaixo” é hoje o fundo do rio Mondego. Augusto Carlos Matos, Amadeu Marques, Álvaro da Conceição e Augusto Marques conheceram-se na Foz do Dão. Dizem-se “nascidos e criados” na aldeia que ficou submersa pelas águas do rio há mais de três décadas, na sequência da construção da Barragem da Aguieira.

As memórias destes homens e de outros antigos moradores servem de base à exposição fotográfica Foz do Dão — A Aldeia Submersa, organizada por Sandra Henriques, e que está aberta ao público até amanhã no Largo do Município de Santa Comba Dão. Sandra Henriques é de Penacova, o concelho ao lado de Santa Comba, e agora com 28 anos lembra-se de os pais lhe falarem da aldeia submersa quando era mais jovem. “Como era criança achava que as pessoas viviam debaixo de água; causava-me confusão, e nunca mais me esqueci da história.”

A aldeia, que ficava num ponto em que se encontravam os concelhos de Penacova, Santa Comba Dão e Mortágua, e na confluência do rio Dão com o Mondego, desapareceu sob as águas no início da década de 1980, mas a população abandonou-a ao longo dos anos anteriores. As ruínas de um jazigo do cemitério novo, que ficava num plano mais elevado, são os únicos vestígios visíveis, e isto apenas porque, em ano de seca, o nível da albufeira está baixo. Normalmente, explicam as testemunhas de Sandra Henriques, apenas se vê uma pequena ilha com vegetação, que correspondia ao topo da encosta onde estava instalada a Foz do Dão.

O projecto teve início em 2013, com a realização de entrevistas, recolha de fotos, de documentos e de notícias de jornais. Entrevistas essas cujos excertos servem de legendas às fotografias expostas. Aborda a perda de identidade, dos vizinhos, o desaparecimento do local e a forma como se pode extrapolar este caso para escalas maiores, como os conflitos armados ou catástrofes naturais.

“Interessa-me saber o que acontece às pessoas quando perdem esse lugar.” Em 2016 ganhou uma bolsa de jovens criadores do Centro Nacional de Cultura e do Instituto Português do Desporto e Juventude, ex aequo com outros dois concorrentes, no valor de 750 euros. A exposição, que é uma co-produção do projecto Catrapum Catrapeia com o município de Santa Comba, é o “primeiro produto” do projecto relativo à aldeia, explica Sandra. As próximas etapas passam por fazer uma monografia, por avaliar como se pode incluir a aldeia na rota da Estrada Nacional 2 (EN2, que passava por lá) e por avançar com um projecto pedagógico que envolva as escolas da região.

A outra Ponte Salazar

O encontro com os quatro antigos moradores da Foz do Dão é marcado para o restaurante A Lampreia, na berma do IP3, não muito longe da antiga aldeia. Foi ali que Álvaro da Conceição, hoje com 83 anos, fez a primeira casa depois de sair da aldeia e, mais tarde, começou a servir refeições. Na parede está uma das fotografias que se pode ver na exposição: a Ponte Salazar, por onde passava a EN2, em que uma multidão aparenta aguardar a chegada de quatro viaturas.

Ao contrário da homónima lisboeta, o nome da ponte da Foz do Dão sobreviveu à revolução de 1974, até ficar submersa pela albufeira da Aguieira. Começa então a discussão sobre a data em que terá sido tirada a fotografia, se na década de 1930, se na de 1950. “Cheguei a passar gente de barco para o outro lado quando a ponte já estava submersa e ainda viviam lá pessoas”, isto ainda nos anos 1970, recorda Álvaro. Augusto Carlos Marques acrescenta que a ensecadeira usada para a construção da barragem levou a que a água tenha subido mais rapidamente do que o esperado.

À população foram oferecidos lotes numa rua de Óvoa, na mesma freguesia. Poucos terão ido para lá. Álvaro da Conceição conta-os pelos nomes para certificar que não são muitos, cerca de dez. Os processos de expropriação não trazem saudade, como é visível pela resposta de Álvaro à questão. “Nem fale nisso. Eles deram o que quiseram”, diz, referindo-se à EDP, que explora a barragem. Augusto Carlos Matos diz que ficou a perder com a indemnização de 210 contos que recebeu por um terreno e duas casas. Saiu da aldeia em 1975, depois emigrou.

Os moradores da aldeia dispersaram. Uns foram para os concelhos vizinhos, outros para Lisboa, outros para o estrangeiro. As casas da Foz do Dão foram demolidas antes de as águas lá chegarem. Ainda durante a indefinição sobre o local da barragem, não foram feitas obras públicas na aldeia. Os moradores organizaram-se então na Associação de Melhoramentos e Progressos da Foz do Dão, cuja filial no Brasil reuniu 40 mil escudos para construir uma escola nova, que foi inaugurada entre 1946 e 1947, recorda Augusto Marques.

Do restaurante ao local onde existiu a aldeia é preciso atravessar caminhos de terra batida e de difícil acesso, flanqueados por vegetação que quase os engole. Ainda se podem observar secções da antiga EN2 que já só dão acesso às águas. Pelo caminho, os quatro moradores vão apontando para marcos que já não estão lá — para o pinheiro-manso no topo do monte, para o sobreiro velho à beira da nacional —, como se estivessem a olhar para a paisagem antes da construção da barragem.

Amadeu Marques observa as águas e trauteia uma antiga lengalenga sobre a terra. “Era a sala de visitas do concelho. Valha-me Deus.” Mais à frente, o irmão, Augusto Marques, lembra que na entrada do cemitério estava uma placa com a frase “aqui te espero”. “Mas a gente já não vem aqui parar”, comenta Augusto Carlos Matos.

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