Enquanto o Porto espera pelo Batalha, o cinema vai mesmo no Trindade

Regresso da exibição diária à Baixa é mais um desafio à recuperação da vida cultural, e não só, numa cidade onde há duas décadas havia mais de uma dezena de cinemas em actividade – hoje há apenas quatro.

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O cinema regressou aos ecrãs do Trindade Paulo Pimenta
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Hall renovado do Trindade Paulo Pimenta
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Letras antigas do Cinema Trindade Hugo Santos
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Cinema Batalha Nelson Garrido
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Interior do Batalha Nelson Garrido
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Cinema Nun'Álvares Paulo Pimenta
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Os cinemas Cidade do Porto fecharam em 2010 Paulo Pimenta
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Alguns cinemas ainda mantêm as cadeiras da plateia Paulo Pimenta

O Cinema Trindade voltou esta semana a exibir cinema diariamente, após um interregno que vinha desde o ano 2000, quando as suas duas salas-estúdio construídas oito anos antes foram encerradas por falta de espectadores.

A aposta do programador e distribuidor Américo Santos e da Nitrato Filmes vem assim fazer regressar a programação cinematográfica regular à Baixa do Porto, algo que actualmente só acontecia no Estúdio 111, a pequena sala do centenário Teatro de Sá da Bandeira exclusivamente dedicada ao cinema pornográfico.

É caso para dizer: enquanto a cidade espera pelo prometido regresso do Batalha, o cinema vai agora (de novo) no Trindade, uma sala também centenária (abriu em 1913), mas que, com outras congéneres do centro urbano, tinha ficado pelo caminho com a crise que nas últimas décadas atingiu os cinemas de bairro e de rua, substituídos pelos multiplexes, que, no caso do Porto, cresceram como cogumelos na área metropolitana – onde actualmente há mais de seis dezenas de ecrãs.

“Queremos valorizar o Porto e a Baixa como lugar de estreia de filmes, sem ficar sempre à sombra de Lisboa”, diz ao PÚBLICO Américo Santos, ressalvando, no entanto, não pretender fazer “nenhum ataque à capital”.

E o Trindade reabriu mesmo uma porta na Rua do Almada, onde agora um novo lettering “Cinema Trindade”, inscrito sobre fundo preto-vermelho-amarelo, surge ao lado das velhas letras “Salão Jardim da Trindade” do início do século XX. Mantém também a entrada principal pela Rua de Ricardo Jorge, partilhada com o acesso ao bingo que nos últimos anos permitiu manter a casa aberta.

Depois de uma pré-abertura simbólica com a estreia portuense de Ornamento & Crime, de Rodrigo Areias, a 5 de Fevereiro, o Trindade inaugurou as sessões diárias nas suas duas salas com outra estreia na cidade, a produção brasileira Mãe Há Só Uma, de Anna Muylaert, ao lado de Toni Erdmann, de Maren Ade, repondo simultaneamente O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, Silêncio, de Martin Scorsese, e Boi Neon, de Gabriel Mascaro.

“Vamos apostar numa programação que fará o cruzamento entre estreias da produção internacional do cinema de autor e o acolhimento de ciclos, festivais e iniciativas de teor mais cineclubista”, anunciou Américo Santos. É assim que, em paralelo com o fluxo da produção actual, o Trindade irá lançar o ciclo Inéditos no Porto, numa selecção que inclui filmes de Walter Salles (Jia Zhang-Ke – Um Homem de Fenyang), Anita Rocha da Silva (Mate-me por Favor), João Monteiro (Nos Interstícios da Realidade – O Cinema de António de Macedo), Maíra Bühler e Matias Mariani (A Vida Privada dos Hipopótamos), Pablo Giorgelli (As Acácias), ou Últimas Conversas, documentário póstumo do brasileiro Eduardo Coutinho, que será apresentado pelo professor e realizador Jorge Campos.

A presença de realizadores e actores a apresentar os filmes é, de resto, outra promessa de Américo Santos, que quer também apostar no trabalho com as escolas, para quem serão destinadas as sessões matinais. “Queremos funcionar a tempo inteiro, e para isso envolver as escolas e os professores, mas também as associações da cidade”, diz o programador, que assinou com a Empresa Cinema Trindade um contrato de arrendamento por oito anos. “É um risco calculado; fizemos as nossas contas, sabemos que vamos ter um período mais complicado quando nos aproximarmos do Verão, mas acreditamos no nosso projecto”, acrescenta.

Regresso à Baixa

O regresso do Trindade é saudado por Dario Oliveira, fundador da associação Porto/Post/Doc, um festival de cinema documental associado a uma programação regular no Passos Manuel, Há Filmes na Baixa. “Esta aposta demonstra uma grande coragem de investimento pessoal e uma genuína paixão pelo cinema”, diz o programador, realçando a importância do espectáculo cinematográfico para o reforço da movida no centro urbano.

“Já tínhamos os teatros, as salas de espectáculos, os bares e restaurantes a abrir freneticamente; chegou agora a hora de abrir um cinema no coração da Baixa, ideia de negócio com futuro, mas desta vez a pensar nos habitantes da cidade, não nos turistas”, realça Dario Oliveira, pondo a tónica na necessidade de fazer regressar ao centro habitantes locais, “pessoas que trabalham e gostam de viver todo o ano na cidade”, e para as quais é necessária uma nova política de habitação e de alugueres, fazendo com que morar na Baixa “não seja um luxo só para alguns”.

O Trindade integra o cartão Tripass, iniciativa da câmara que dá 25% de descontos a frequentadores desta casa e do Passos Manuel, mas também dos estúdios do Rivoli e do Campo Alegre.

A autarquia “acredita que é possível restaurar a dinâmica de públicos na cidade do Porto”, diz Guilherme Blanc, adjunto de Rui Moreira para a Cultura. Daí a associação daquelas salas na iniciativa Tripass, a que se acrescenta a programação de filmes noutros espaços da cidade, como o auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett acolhendo cinema aquando da Feira do Livro, ou o projecto Nove e Meia – Cineclube Nómada, comissariado por Regina Guimarães e Saguenail, que, no âmbito do Cultura em Expansão, desde 2014 tem vindo a levar cinema aos bairros e salas de associações de moradores.

“Os cinemas desapareceram no Porto, mas nunca desapareceu a cultura da cinefilia, que se tem vindo a renovar de forma entusiasmante”, diz Guilherme Blanc, lembrando a responsabilidade e a acção da autarquia neste domínio, nomeadamente com a decisão de alugar e recuperar o Batalha para ser a Casa do Cinema.

Este edifício, emblemático pela sua história enquanto cinema, mas também enquanto exemplo do modernismo arquitectónico, tem sido de facto um bom retrato do quadro da exibição cinematográfica na Baixa. Foi inaugurado na praça com o mesmo nome, primeiro como Salão High-Life – continuador do primeiro cinema de raiz existente na cidade –, depois como Batalha, simultaneamente cinema popular e templo de cinefilia (ecrã do Cineclube do Porto). Fechou no ano 2000 e foi depois “palco” de uma experiência falhada de programação pela associação de comerciantes do Porto. Em 2010, entrou em ruína.

Só uma sala no centro

Num levantamento feito pelo PÚBLICO no final da primeira década deste século (2008) sobre o parque de cinemas portuenses, havia só uma sala em actividade regular na Baixa (o já referido Estúdio 111), e, dentro da cidade, apenas três outros cinemas abertos (o multiplex Dolce Vita, actual NOS-Alameda, o Campo Alegre e os Cidade do Porto, entretanto também encerrados), oferecendo um total de 14 ecrãs.

Duas décadas antes, aquando do nascimento do PÚBLICO (Março de 1990), a situação era bastante diferente: havia na mesma dezena e meia de ecrãs, mas estavam distribuídos por outros tantos cinemas (só o Lumière e o Batalha é que tinham duas salas, e o Trindade estava em renovação), e cinco deles situavam-se no centro urbano (o Sá da Bandeira, o Passos Manuel e o São João, além dos atrás referidos).

Nessa altura, fora do Porto, apenas Matosinhos oferecia cinema (Chaplin e York).

Este quadro contrastava já com o que acontecia no início da década de 1980, quando a cidade tinha 21 cinemas em cartaz.

No decurso das últimas três décadas, a situação alterou-se radicalmente. É verdade que actualmente os espectadores têm à disposição seis dezenas de ecrãs nos vários multiplexes que rodeiam o Porto. Mas a cidade, e especialmente a Baixa, ficaram desertos neste domínio, reflexo do próprio êxodo dos habitantes para os concelhos limítrofes.

Pelo caminho, desapareceram de vez salas como o Lumière (transformado em garagem), os Central Shopping (escritórios), o Terço (demolido), o Águia d’Ouro (hotel), o Olímpio (bingo), o Raione (discoteca), o Júlio Dinis (salão de baile), o Vale Formoso (durante anos templo da Igreja Universal do Reino de Deus). Outros permanecem fechados e aproximam-se da ruína, como o Estúdio Foco, os Stop e o Pedro Cem, os dois últimos agora propriedade da NOS, e que fonte da empresa assegura não haver intenção de retomar a actividade de cinema.

É verdade que alguns sofreram intervenções de restauro e actualização recomendáveis para outros fins culturais – o Coliseu, o São João, o Rivoli, o Carlos Alberto –, mas outros permanecem fechados, e alguns parecem esperar ainda que algum empresário volte a apostar no seu regresso ao cartaz. O exemplo mais notório é o Nun’Álvares, na Boavista, que depois de uma experiência falhada de reactivação entre 2009-11, continua a manter a face de um cinema à espera de melhores dias – ainda aí se podem ver cartazes dos últimos filmes exibidos, como José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, ou Shirin, de Abbas Kiarostami…

António Oliveira, o proprietário, confirma que o Nun’Álvares mantém a plateia e o ecrã, e que gostava de o voltar a ver abrir como cinema. “Não sei é se a altura é a melhor, e se voltará a haver condições para isso”, confessa, mas não parecendo desistir.

A forma como os espectadores responderem ao desafio da reabertura do Trindade pode determinar o destino de outras salas. “Acredito que os cinemas de bairro, ou cinemas de rua, são a melhor forma de ver cinema, mas para isso ser uma realidade com futuro e plenamente integrada na vida cultural duma cidade, a Baixa terá de voltar a ser habitada pelas pessoas”, diz Dario Oliveira.

Números

4 cinemas (12 ecrãs) estão hoje em actividade diária dentro da cidade, mas oito dos ecrãs são no shopping Alameda Shop e Spot; os outros sendo no Trindade (2), no Estúdio 111 e no Estúdio Campo Alegre.

21 – no início da década de 1980, havia 21 cinemas em funcionamento no Porto: eram todos salas individuais, à excepção dos dois ecrãs dos Lumière e do Batalha e Sala Bébé.

15 – em 1990, havia 15 ecrãs. Nessa altura, no Grande Porto só funcionavam dois cinemas, em Matosinhos: Chaplin e York.

2 – em 2008, havia apenas duas salas em actividade dentro do perímetro da cidade: o Estúdio Campo Alegre e o Estúdio 111 (este exclusivamente com cinema pornográfico).

63 ecrãs estão hoje instalados nos seis centros comerciais do Grande Porto: ArrábidaShopping (20), GaiaShopping (9), NorteShopping (9), MarShopping (8), MaiaShopping (5) e Parque Nascente (12).

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