Da Feira Popular aos negócios sociais: a reinvenção d’O Século

A fundação esteve perto de fechar depois do encerramento da Feira Popular – principal fonte de rendimento – e foi obrigada a reconstruir-se. A resposta veio de dentro da instituição: com todas as suas valências, conseguiu pôr de pé negócios de sucesso que garantem a continuidade da obra social.

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A Colónia Balnear Infantil “O Século”, baptizada com o mesmo nome do jornal que a fundou e financiou, abriu portas em 1927, no Estoril. Através dela, muitas crianças carenciadas viram o mar pela primeira vez e muitas outras tiveram férias inesquecíveis. Até que, em 2003, a Feira Popular, de onde retirava boa parte do seu orçamento, fechou as portas. Para sobreviver, teve de se reinventar. Primeiro o turismo, depois a alimentação e lavandaria, e brevemente os seguros. Tudo para continuar a “fazer as pessoas felizes”.

Para financiar as colónias, o então director do jornal O Século, João Pereira da Rosa, pediu autorização para instalar uma feira em Lisboa. Foi assim que nasceu, em 1943, a Feira Popular. Em 1961, esta sai da Palhavã para Entrecampos, onde permaneceu até encerrar em 2003. Até aí, as receitas provenientes das entradas na feira revertiam para “O Século” mesmo depois de a publicação que lhe deu origem ter desaparecido, em 1977.

Com o fim da Feira Popular, a Fundação “O Século”, criada em 1998 para prosseguir a obra social do jornal, teve de enfrentar novos desafios: como manter o apoio a crianças, jovens e idosos sem financiamento? Perante a ameaça do encerramento da organização e face a um acordo mal resolvido com a Câmara de Lisboa, os seus responsáveis procuraram dentro da estrutura meios alternativos para que pudesse subsistir. E encontraram, tanto nas suas estruturas físicas, como nas capacidades de todos os que ali trabalhavam.

Dar a volta
A Fundação começou assim a trilhar novos caminhos. “Procurámos a nossa própria sustentabilidade por outras vias, ainda que não estivéssemos sequer preparados ou organizados nesse sentido”, admite Emanuel Martins, presidente do Conselho de Administração da fundação.

“Não tendo dinheiro para investir em outros negócios exteriores, olhámos para aquilo que tínhamos, vimos quais eram as nossas capacidades de recriar, de criar, com as sinergias instaladas, novos negócios”, esclarece o presidente da instituição, considerando que “a solução teve o seu engenho”. Em 2013 nasceram três negócios sociais: a Lavandaria, o Turismo Social e a Cozinha, ainda que o serviço de take-away só tenha entrado em funcionamento em 2015.

Previsto para o fim deste mês de Fevereiro está um novo negócio: os Seguros do Século. A fundação tornar-se-á assim “numa empresa de angariação de seguros para que, no futuro, possa ser uma correctora”, esclarece Emanuel Martins. Pretendem especializar-se em áreas específicas de negócio, com destaque para os operadores da chamada “economia social”, como autarquias ou associações, “sem prejuízo de todos os outros tipos de seguros”, garante o responsável.

Esta nova vertente empreendedora da fundação teve o seu primeiro impulso com o turismo social, que aproveitou a localização privilegiada da fundação (o fácil acesso à praia de São Pedro do Estoril e a proximidade da linha de comboio). Uma das alas de camaratas da colónia de férias – inutilizada durante todo o ano, à excepção do Verão – foi dividida e daí resultaram 27 quartos. Até ao final de 2015, o Turismo do Século  recebeu 9874 pessoas, não só de Portugal mas também de países como a França, Alemanha, Brasil ou Rússia.

Já no serviço de lavandaria, ainda que também tenha havido uma reutilização dos recursos existentes, houve necessidade de se fazer um investimento em máquinas e em recursos humanos, quando tudo indicava que tivessem de reduzir. “Adequamos pessoas a novas funções, tentámos profissionalizar o máximo possível e criar novas dinâmicas”, refere Emanuel Martins.

Apesar de estar aberta ao público em geral, a Lavandaria do Século, que emprega cinco pessoas, trabalha sobretudo com 20 empresas, desde hotéis a restaurantes ou cafés. Por mês, os serviços de lavandaria e engomadoria estão responsáveis por cerca de 12 toneladas de roupa sendo que para além dos clientes, tratam também da roupa da própria estrutura. “No Verão chegam a ser 200 lençóis por dia só da fundação”, conta uma das funcionárias. 

Mas o grande sucesso, sobretudo para os cofres da instituição, vem da alimentação. Carla Teixeira, responsável pela área da restauração, diz que o serviço de take-away, inaugurado em Outubro de 2015, tem tido boa receptividade. “Quando chegar o Verão estamos à espera de ter mais movimento, porque este é um sítio de passagem a caminho da praia”, considera.

Enquanto mostra os pratos em exposição, diz que vendem “um pouco de tudo”: “sobremesas, bolos, pães, frango assado, sanduíches, empadas, sopas e todos os dias há um prato de carne e um de peixe”. Toda a comida é preparada na cozinha da Fundação e há uma ementa definida semanalmente, que é posteriormente divulgada nas redes sociais. Em média, são servidas 13450 refeições por mês, sendo que cerca de 4800 são distribuídas pelo serviço de apoio domiciliário e pela cantina social.

Apesar de com estes negócios terem conseguido transpor algumas dificuldades, Emanuel Martins declara que a fundação tem ainda “um défice estimado em 700 mil euros por ano”. Para resolver a lacuna orçamental, a fundação tenciona lançar, para além dos Seguros d’O Século, o cartão “Amigos d’O Século”, que oferecerá benefícios ou descontos em instituições parceiras mediante um pagamento mínimo anual.

A sobrevivência económica “é um assunto que com a Feira Popular não seria uma preocupação”, reconhece Emanuel Martins. “Mas fazer as pessoas mais felizes é o nosso desígnio e lutaremos até ao fim para que isto se mantenha”, garante.

Uma vasta obra social
Apesar das dificuldades, a Fundação tem conseguido lançar novos projectos sociais, como os Violinos d’O Século ou o Teatrinho d’O Século. Ainda este ano será feita a inauguração do Primeiro Ciclo, a juntar à creche já existente.

Actualmente, a instituição é responsável por 13 valências sociais: um ATL, uma colónia de férias, programas de educação e de inserção profissional ou programas de apoio à família, como um serviço de apoio domiciliário, a cantina social ou serviços de acolhimento para situações de emergência. Existem ainda lares de acolhimento (como a Casa do Mar e a Casa das Conchas) e apartamentos de autonomização (casas em que fazem a transição dos jovens da fundação para uma vida autónoma fora dela).

Dentro e fora da fundação, é dado apoio a 500 crianças, a que se juntam cerca de 800 beneficiários anuais das colónias de férias e de outras iniciativas. É ainda prestado apoio a famílias e idosos, desde serviços de alimentação a higiene.

Emanuel Martins garante que as pessoas que trabalham na fundação, cerca de 150, sentem vontade de continuar com o projecto. “Às tantas não se sabe quem é utente, quem é colaborador ou administrador. É uma família. E isso dá alento para procurar ir mais longe. E é isso que queremos fazer”, promete.

Acordos e desacordos com a câmara 
Foi em 2003 que a principal fonte de financiamento da Fundação, a Feira Popular, fechou as portas. Nessa altura, a Câmara de Lisboa calculou que os proveitos da feira que revertiam para a instituição ascendiam a 2,6 milhões de euros por ano. Foi então redigido um protocolo, através do qual a autarquia se propunha pagar esse valor anualmente “pela desocupação dos terrenos”. Emanuel Martins acrescenta que seriam pagos 2,5 milhões de euros por ano “até que fizessem uma nova feira”.

De acordo com um documento, o município de Lisboa, “enquanto cessionário a título precário do estabelecimento comercial Feira Popular”, reconhece a “imprescindibilidade de garantir os meios económicos necessários à continuidade da relevante obra social promovida pela fundação, bem como o seu incremento”.

No entanto, Emanuel Martins diz que a Câmara deixou de pagar o valor acordado, por volta de 2010, sem dar qualquer justificação para tal. “Tudo o que tivemos foi resposta de bastidores de que a câmara não tinha dinheiro”, afirma. E foi aqui que os problemas económicos se agravaram e a Fundação passou por uma fase tempestuosa.

“Estávamos talvez a dois meses de fechar portas. Não tínhamos já condições nenhumas para continuar”, diz. Mas eis que, em 2012, surge uma proposta da Câmara para revogação do protocolo assinado em 2003. “Na circunstância, aceitámos que a dívida da câmara, que já era de quase seis milhões, pudesse ser reduzida para um milhão”, a ser pago em quatro prestações de 250 mil euros.

Segundo fonte camarária, nesse documento de 2012 estava previsto que, além da rescisão dos “protocolos anteriores entre as duas entidades, por mútuo acordo”, seria ainda feita a “cedência de um direito de superfície de um terreno para exploração de uma bomba de gasolina”. Este posto de combustível está localizado na Praça José Queirós, em Moscavide.

“Aceitamos o acordo das bombas de combustível para não fechar a porta, foi uma situação limite”, explica Emanuel Martins, acrescentando que “o que recebem do posto é menos de um quinto do que recebiam da feira popular”.

Com um orçamento anual de quatro milhões de euros, o posto de combustível contribui com 500 mil euros. O restante financiamento é conseguido através dos protocolos com a Câmara de Cascais e com a Segurança Social - já que a Fundação tem, desde 1999, o estatuto de IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social) - e dos novos negócios sociais.

Uma nova feira, uma velha história
Porém, em Novembro de 2015, foi anunciada pela câmara a criação de uma nova feira popular sem que a fundação fosse contactada, algo que Emanuel Martins considera “surrealista”

“Protocolarmente, a Câmara está obrigada a perguntar-nos se estamos interessados em fazer a gestão da Feira Popular”, diz o responsável, “ainda que também pudéssemos responder que é um investimento de que não nos afiguramos capazes”.

O presidente d’O Século explica que o registo de propriedade foi conferido à fundação e que esta detém esse direito desde o início da Feira Popular. Um direito que quer ver respeitado, caso contrário avançará com uma acção judicial contra a câmara.

No entanto, Luís Carneiro, assessor de imprensa da Câmara de Lisboa, assegura que “no quadro do acordo aprovado em 2012”, a Fundação declara que “nada mais lhe é devido em virtude do referido protocolo e que não poderá invocar qualquer direito respeitante aos espaços ocupados pela antiga Feira Popular”. Questionados sobre a nova feira, a autarquia mais nada adiantou.

Texto editado por Ana Fernandes

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