Projecto europeu quer fazer as pazes entre agricultores e charcos temporários
Parecem simples poças de água mas são muito mais do que isso. Os charcos temporários dão abrigo a espécies pré-históricas que resistem faça chuva ou faça sol. Em Odemira, luta-se para manter os que restam.
Serão pouco mais que uma centena os charcos temporários mediterrânicos que restam no sudoeste alentejano, sobretudo no concelho de Odemira. No início da década de 1990, eram 300. A agricultura intensiva tornou-se a principal ameaça para estes pequenos habitats, espalhados por charnecas, planaltos e bosques. Agora, os agricultores são parceiros de um projecto europeu que visa conservar os que restam.
“Queremos encontrar formas de compatibilizar a agricultura feita no concelho de Odemira com a manutenção destes habitats”, explica Rita Alcazar, coordenadora do LIFE Charcos. Este projecto de 1,9 milhões de euros, financiados em 75% pela Comissão Europeia, é coordenado pela Liga para a Protecção da Natureza (LPN) e tem na lista de parceiros a Associação de Beneficiários do Mira, que reúne os agricultores inseridos no perímetro de rega do rio Mira.
“Esperamos conseguir mostrar-lhes que há medidas simples que permitem conservar os charcos, com benefícios para a actividade agrícola”, diz a bióloga da LPN. O projecto, que arrancou em Julho de 2013, prevê várias sessões de esclarecimento para a população e particularmente para os proprietários de terrenos, e a primeira decorre nesta quinta-feira às 14h na sede da Associação de Beneficiários do Mira, em Odemira.
Os charcos temporários, que enchem no período das chuvas e secam no pino do Verão, são considerados pela União Europeia como um dos habitats prioritários para a conservação da natureza. O LIFE Charcos visa a preservação dos charcos existentes no Sítio de Interesse Comunitário da Costa Sudoeste da Rede Natura 2000 – que coincide, em parte, com o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) –, nas charnecas do concelho de Odemira e no planalto de Vila do Bispo, onde estão alguns dos principais núcleos a nível nacional.
O objectivo é inverter a tendência de declínio: entre 1991 e 2009, aquela zona perdeu 56% dos charcos temporários. Destes, 89,3% foram destruídos por actividades agrícolas como o cultivo intensivo e a drenagem dos solos, segundo um estudo realizado por Mário Ferreira e Pedro Beja, biólogos do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (Cibio). Muitos destes lagos naturais foram transformados em charcos permanentes, para irrigação. Outros deram lugar a estufas. E nem a criação do PNSACV impediu a sua destruição.
Mas que riquezas se escondem, afinal, nos charcos temporários? Nestas bolsas de água, cujo tamanho pode variar entre poucas dezenas de metros quadrados a um hectare, vivem crustáceos que existem desde o tempo dos dinossauros e podem dar pistas sobre como sobreviver a extremos climáticos. “A biodiversidade existente nestes lagos encerra mecanismos de sobrevivência que podem ser aproveitados pela medicina e pela biotecnologia”, observa Rita Alcazar.
Uma das espécies dependentes dos charcos é o Triops vicentinus, também chamado de camarão-girino, que apurou ao longo de milhões de anos estratégias e técnicas de reprodução para sobreviver à falta de água. Este crustáceo endémico do sudeste alentejano, considerado um dos animais mais antigos do mundo ainda vivos, cresce até sete centímetros (sem contar com a cauda), tem 70 pares de patas e três olhos. Os seus ovos podem permanecer no solo seco dos charcos durante anos, eclodindo apenas quando caem as primeiras chuvas.
Além desta espécie há outras, desde insectos a plantas, aves, mamíferos, répteis e anfíbios, que vivem e morrem ao ritmo das estações do ano. A lista é extensa: inclui o sapo-de-unha-negra, o sapo-corredor, o tritão-de-ventre-laranja, o cágado-de-carapaça-estriada e o rato de cabrera, entre muitos outros. Em comum têm uma característica: todas dependem dos charcos temporários para sobreviver. Para os anfíbios, este é mesmo o único habitat de água doce onde se encontram quase todas as espécies que ocorrem no sudoeste alentejano.
O LIFE Charcos tem também como parceiros a Câmara de Odemira, as universidades de Évora e do Algarve e o Centro de Ciências do Mar. Até ao final de 2017, os biólogos vão cartografar todos os charcos e a biodiversidade associada, estabelecer normas de gestão para a conservação destes habitats, mostrar como podem ser recuperados e até criar um banco de sementes para salvaguardar a referência genética da flora.