Câmara fez jardim em terreno prometido pela EPUL à paróquia de Telheiras

Contrato-promessa de cedência data de 2003. Terreno pertencia à EPUL, empresa que considerava o contrato caducado. A meio das negociações que mantém com o patriarcado, a câmara fez um jardim no local.

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O novo jardim ficou pronto no Verão passado, mas esteve vedado muito tempo antes de abrir DR

A Câmara de Lisboa construiu um jardim num espaço que não lhe pertencia e que estava destinado à Paróquia de Telheiras desde 2003. As obras, efectuadas numa altura em que a parcela pertencia à EPUL, decorreram a meio do ano passado.

Simultaneamente, o Patriarcado de Lisboa e a câmara procuravam reunir as condições necessárias para que a paróquia ali erguesse uma igreja. Agora, com o jardim aberto ao público, a autarquia garante que — apesar de a EPUL ter sempre sustentado que os acordos com os responsáveis católicos tinha caducado há muito — cederá um terreno para a igreja. Ali ou noutro local a definir.

Data de 1993 o pedido do patriarcado para que fosse cedido à então Paróquia do Lumiar um terreno de cerca de 2100 m2, pertencente à Empresa Pública de Urbanização de Lisba (EPUL), situado junto à actual escola EB 1 de Telheiras, no cruzamento das ruas Hermano Neves e José Escada. O objectivo consistia na construção de uma nova igreja, numa altura em que a antiga — anexa Convento de Nossa Senhora da Porta do Céu —, a 400 metros dali, não dispunha das condições julgadas necessárias.

Dez anos depois, em Setembro de 2003, a EPUL celebrou um protocolo e um contrato-promessa de constituição de direito de superfície com os representantes da Igreja Católica por forma a viabilizar o pedido do patriarcado. Ambos os documentos tinham sido previamente aprovados pela câmara e estabeleciam que, além da cedência do trerreno pelo preço simbólico de cinco euros, a EPUL faria obras na igreja no valor de 497 mil euros.

Em contrapartida, a paróquia desocuparia as áreas do convento ocupadas pelos escuteiros, pelas salas da catequese e pelas casas mortuárias. O imóvel, que está classificado como monumento de interesse público, encontrava-se parcialmente arruinado e foi expropriado pela EPUL a um particular em 1983.

Nos termos do contrato-promessa, a paróquia tinha cinco anos para concluir os trabalhos e ter a igreja e os seus serviços sociais a funcionar, sob pena de extinção do direito de superfície. A menos que a EPUL autorizasse a prorrogação daquele prazo.

“Direito extinguiu-se”
Sucede que a escritura nunca foi feita e, portanto, a promessa nunca se concretizou, nem as obras foram iniciadas. Quanto ao resto, a paróquia desocupou o velho convento e a EPUL fez as obras prometidas.

Já em Março de 2012, a Paróquia de Telheiras, entretanto criada, escreve à EPUL e ao presidente da câmara, António Costa, pedindo a marcação da escritura. Segundo o contrato-promessa, ela deveria ter sido feita nos dois anos seguintes, até Setembro de 2005, mas esse prazo, ao contrário do da realização das obras, não era imperativo.

Pouco depois, Manuel Salgado, então vice-presidente da câmara com a tutela da EPUL — que tinha como único accionista o município —, pede à empresa uma informação sobre o caso para responder à paróquia. A resposta só chega no final de 2013, data em que a EPUL já está ser gerida por administradores liquidatários nomeados pela câmara. 

Nessa informação, os liquidatários consideram que o direito de superfície se “extinguiu automaticamente” por não ter sido respeitado o prazo de cinco anos para a execução da obra. Salientam que em 2005 e 2006 a EPUL pediu ao patriarcado, por escrito, os documentos necessários à marcação da escritura, acrescentando que nunca obteve resposta. Juridicamente, concluem, “não há qualquer instrumento jurídico válido” entre as partes.

Por isso, pedem autorização à câmara para tentar vender o terreno, o que “contribuiria para atenuar as necessidades de tesouraria da empresa”, então em falência técnica. Solicitam também informação sobre aquilo que poderá ser construído no local, em caso de venda. Manuel Salgado encaminha o assunto para os serviços de Urbanismo, para verificarem, à luz do Plano Director Municipal (PDM), a utilização que pode ser dada à parcela da EPUL. A resposta não surpreende: ali só podem ser construídos “equipamentos”, como a igreja, e qualquer outra finalidade, como pretendem os liquidatários, é uma “hipótese muito remota, pois implica alterar o PDM (...)”.

O vereador concorda e manda comunicar à EPUL em Fevereiro de 2014, duas semanas depois de o pároco de Telheiras escrever novamente a António Costa a pedir a entrega do terreno. Logo a seguir os liquidatários da empresa insistem junto de Manuel Salgado, escrevendo que, apesar de este ter retirado aquela parcela da lista de bens da empresa a alienar, “o protocolo [de 2003] já não produz quaisquer efeitos”. 

Apesar disso, os serviços da câmara, por indicação do vereador, reúnem-se com a paróquia e com o patriarcado no final de Abril. Numa informação sobre o conteúdo do encontro, o director municipal de Gestão do Património, António Furtado, escreve que os representantes da igreja não aceitam a posição da empresa, “alegando a existência de sucessivos contactos (não escritos)” entre eles e os responsáveis da EPUL para marcar a escritura. 

No entanto, Furtado afirma que “inexiste” a obrigação legal de cedência da parcela. “Atenta esta realidade foi comunicada a posição do município suportada nos factos com evidência documental, sem prejuízo de nova reunião, agora com a comissão liquidatária da EPUL presente.”

Assunto ainda não está resolvido
Nos processos camarários não volta a haver referência a estes contactos e em Julho de 2015 a assembleia municipal aprova o relatório de liquidação da EPUL e a reversão para o município de todo o seu património. No caso da parcela pretendida pela paróquia, essa reversão concretizou-se, no registo predial, a 15 de Setembro de 2015.

Logo no mês seguinte, sem que haja novos despachos nos processos respectivos, a Direcção Municipal de Gestão do Património (DMGP) começa a preparar os documentos para a constituição do direito de superfície a favor da paróquia. É então que é pedida uma visita da fiscalização camarária ao local para que seja elaborada a respectiva planta, a fim de integrar o processo da escritura.

No relatório elaborado, os fiscais constataram aquilo que muitos moradores de Telheiras já tinham constatado há vários meses: a própria câmara tinham lá construído um jardim. Caminhos, bancos, mesas, sete talhões vedados para hortas, abastecimento de água, uma arrecadação de madeira para as alfaias, tudo estava pronto para abrir. 

Em todo o caso, a DMGP avaliou a parcela em cerca de um milhão de euros e calculou em 1199 euros o valor da renda mensal a pagar pela paróquia para ali poder construir a igreja. A reacção das autoridades religiosas, que contavam pagar um total de apenas cinco euros, conforme a promessa de 2003, não é conhecida.

O PÚBLICO tentou ouvir os responsáveis do patriarcado e da paróquia, mas ambas as entidades se recusaram nos últimos dois meses a prestar qualquer esclarecimento. A câmara, por seu lado, respondeu, por escrito, afirmando que “independentemente das vicissitudes jurídicas do processo e da existência ou não de caducidade do contrato-promessa (...) celebrado entre a EPUL e o patriarcado, é intenção do município (...) vir a constituir um direito de superfície a favor da Fábrica da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Porta do Céu, deste ou de outro terreno, exactamente nos mesmos termos em que estava previsto no contrato de 2003”.

Quanto à construção do jardim naquele local, o Departamento de Comunicação da autarquia adianta que se trata de “uma ocupação que poderá persistir em benefício da população até que seja iniciada a construção do templo pelo superficiário [a paróquia], assim valorizando o espaço em causa”.

O PÚBLICO perguntou posteriormente à câmara quanto é que custou o jardim e porque é que ele ali foi construído quando estava a ser preparada a sua entrega à paróquia. 

Quanto à primeira pergunta não obteve resposta. Quanto à segunda, a autarquia diz que tomou conta de parte dos terrenos da EPUL logo que foi decidido extinguir a empresa, em Maio de 2013, “uma vez que tinha de ser garantida a sua manutenção indepentemente da titularidade dos mesmos”. 

A câmara recusa a ideia de falta de comunicação entre os seus serviços e diz que a decisão de intervir no local foi tomada “sem prejuízo de estarem a decorrer conversações com o patriarcado sobre o mesmo”. Essas conversações, conclui, “até à data ainda não se concretizaram sendo essencial que, entretanto, o terreno se apresente em boas condições”.

O jardim abriu no final do ano passado. As hortas serão, segundo a câmara, atribuídas a associações e escolas do bairro.

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