Antes chegava-se a Paris, hoje chega-se a Sintra

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Olhamos para um edifício milhares de vezes, distraidamente, e não pensamos como, um século antes, os nossos bisavós olhavam para ele de uma forma totalmente diferente. Não há como olhar hoje para a Estação do Rossio, na Baixa de Lisboa, e pensar que está ali a nossa ligação ao mundo. Porque, de facto, não está. Daqui parte-se para Sintra.

Mas no final do século XIX era desta Estação Central — o nome continua lá, desenhado sobre a porta principal — que, a partir de 1891, partia o célebre Sud-Express, que levava os passageiros até à Gare de Orsay (nos anos 30 podia-se mesmo ir de Paris até ao Estoril).

“Tornou-se moda ir a Paris. A gente ‘chic’ e até os pelintras ajanotados emigravam uma vez cada ano”, conta um texto assinado por Rocha Martins e publicado na Gazeta dos Caminhos-de-Ferro já nos anos 30, recordando como décadas antes tinha sido uma excitação para os lisboetas ganhar, num local tão central como o Rossio, “aquela estação magnífica e seus comboios luxuosos e velozes”.

Estamos, portanto, em Lisboa 2015. São dez da manhã e um grupo grande de pessoas reúne-se junto ao Teatro Nacional D. Maria II para, a convite do Fórum Cidadania Lisboa, e com visita guiada, a pretexto do Ano Europeu do Património Industrial e Técnico, conhecer melhor a Estação Central. Jorge Custódio, especialista em arqueologia industrial, convida-nos a olhar para a estação, do outro lado da rua, e também para o Hotel Avenida Palace, ao lado, e recorda como os dois são, na realidade, um conjunto — e, apesar dos estilos diferentes, da autoria do mesmo arquitecto, José Luís Monteiro.

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Se a fachada da estação parece vir de um século muito mais longínquo, o seu interior é totalmente século XIX e um exemplo da arquitectura do ferro em voga nesse tempo

A estação foi inaugurada em 1890. A construção foi rápida, em apenas quatro anos o largo conhecido como Camões, que ali existia, desapareceu. Anteriormente, segundo o relato de Rocha Martins, havia no local “o prédio do duque de Cadaval a um lado, para trás o pátio da caçada do Duque, a cerca da Misericórdia, o pátio do Penalva, e, junto do palácio ducal, uma casa de D. Francisco de Assis de Almeida com oito janelas de frente como a do outro grande fidalgo”. E por detrás, “onde ia romper-se o túnel” eram os Recreios Withoyne, local muito popular na cidade, com os seus espectáculos de circo.

Mas Lisboa tinha pressa em modernizar-se e tudo isto desapareceu para dar lugar à estação, com a sua fachada de estilo neomanuelino, em cima o medalhão com a efígie do rei D. Luís I, e em baixo, ao centro, uma estátua na qual muitos tentaram ver D. Sebastião, mas que, tudo indica, representa apenas a figura de um jovem pajem. Se observarmos as grandes janelas centrais, adivinhamos no interior uma sala imponente (desta vez não houve autorização para a visitar) — era a Sala do Rei, onde o monarca esperava a chegada do comboio, ou onde recebia as individualidades que viajavam até Lisboa.

Para quem estiver atento, apesar das muitas modificações que sofreram, os edifícios continuam a tentar contar-nos a sua história. Jorge Custódio convida-nos a atravessar a avenida e a olhar a fachada lateral do Hotel Avenida Palace, inaugurado quatro anos depois da estação, e que servia de apoio aos viajantes trazidos pelos comboios. Era aí a porta principal do hotel, virada para a avenida. Hoje, entre as colunas, instalou-se um “Espaço Emprego”, e já ninguém entra para o hotel por aqui. Olhando para a fachada, vemos duas estátuas, que Jorge Custódio identifica como Vulcano e, possivelmente, Atena, a data de 1892, um misterioso relógio sem ponteiros, dois imponentes leões alados, e um brasão com um conjunto de letras entrelaçadas: Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses.

Entramos para o hall do Avenida Palace — que inicialmente se chamou Hotel Terminus — pela porta do lado oposto, virada para a lateral da estação, e no interior, por entre os reposteiros vermelhos e as decorações douradas, e sob o impressionante tecto de vitral, reencontramos várias vezes os mesmos leões alados e letras entrelaçadas, prova dessa relação próxima que no século XIX havia entre o hotel e a estação (a célebre porta que ligava os dois, e que se diz ter sido utilizada por espiões instalados no hotel durante a II Guerra Mundial, está actualmente fechada).

E se a fachada da estação parece vir de um século muito mais longínquo, o seu interior é totalmente século XIX e um exemplo da arquitectura do ferro em voga nesse tempo — e, sublinha Jorge Custódio, ainda muito próxima do que era originalmente. Ao fundo surge o túnel que muito impressionou os lisboetas quando foi construído. São 2613 metros, o mesmo comprimento da Ponte 25 de Abril.

E não há melhor forma de terminar este texto do que citando novamente Rocha Martins na Gazeta dos Caminhos-de-Ferro: “Bem merece um novo artigo este túnel que talvez um dia não seja utilizado. Quando a Companhia dos Caminhos de Ferro construir a sua nova estação, que nos dizem ser em Entrecampos, o túnel das nossas travessias não passará de uma recordação. E quantos, ao evocarem-no, não verão os deslumbramentos de Paris, aonde chegaram tendo aquela treva por início de viagem à cidade da luz!”

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