Andrade, a família que fotografa Tavira desde 1900 (pelo menos)

A casa de fotografia mais antiga de Tavira vai abrir um espaço de exposição onde será possível recuar aos bailes no orfeão, à pesca artesanal do atum ou à despedida dos militares para as grandes guerras do século.

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A oficina de Fausto Fonseca, nos anos 50 DR/Família Andrade
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Apolinário C. Andrade (filho), na Foto Andrade, em 1946 DR/Família Andrade
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O ciclista tavirense Jorge Corvo, cuja vitória na Volta a Portugal de 1959 foi retirada DR/Família Andrade
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Os salineiros dos anos 50, na "neve de Tavira" DR/Família Andrade
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Nos anos 50 despertaram algumas bolsas colectivas, como a Cooperativa dos Produtores de Leite de Tavira DR/Família Andrade
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A recolha da rede, no final dos anos 30, quando a actividade piscatória era um forte da região DR/Família Andrade
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No início da década de 60, o Ginásio de Tavira começou a promover a prática do atletismo DR/Família Andrade
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Tavirenses vendem flores para auxiliar os militares portugueses na I Guerra Mundial DR/Família Andrade
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No início da década de 60, o Ginásio de Tavira começou a promover a prática do atletismo DR/Família Andrade
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A primeira imagem que permitiu localizar a actividade fotográfica dos Andrade, de 24 de maio de 1900 DR/Família Andrade

Era preciso fotografar os pescadores, porque a cédula profissional passava, naquele mês, a ser obrigatória. Damasceno chamou o irmão, Apolinário, então instalado em Vila Real de Santo António, para o ajudar na tarefa. Corria o ano de 1912, em Tavira, e o estúdio de fotografia dos Andrade já não era um aprendiz – do espólio da família faz parte um negativo de 24 de maio de 1900, o primeiro que permite situar a história.

Com o digital, o século XXI chegou para que os Andrade, já na quarta geração de fotógrafos, começasse a organizar milhares de clichês (negativos) e fotografias. Nos últimos dez anos, Maria Alcide digitalizou mais de 20 000 imagens e “ainda é só uma parte do dedo mindinho”, conta o irmão, Luís, actualmente à frente da loja Fotografia Algarve. Assim se refaz a história dos Andrade, de Tavira e de um país onde “grande parte da população, sobretudo das serras, só era fotografada quando ia para a tropa”, recorda o algarvio de 74 anos, neto dos irmãos que fundaram o estúdio e pai dos fotógrafos que o manterão de pé, Miguel e Victor. Os perto de 120 anos de memória estão agora em livro (Tavira e os Andrades foi apresentado a 12 de Agosto) e em breve serão expostos num novo núcleo museológico da cidade, a Casa de Fotografia Andrade (a data da inauguração está por apurar, presa a questões burocráticas).

Nesse espaço da Rua da Liberdade, será possível recuar até ampliadores, câmaras fotográficas, guilhotinas, caixas de arquivo, negativos em vidro e cenários de estúdio utilizados desde o início do século XX. Mas também – e talvez principalmente – vão lá estar os militares que deram vida a Tavira – “chegaram a haver aqui mais de 1000, nos anos 50 e 60, e as pessoas arrendavam-lhes os quartos, como fazem hoje com os turistas”, como conta Luís –; o salto de ginastas, sobre barreiras de seis homens, para colchões de 15 centímetros; as despedidas dos militares com destino à África colonial; ou aquele dia de 1954 em que a neve chegou ao sotavento algarvio. “Mais do que pessoas, fotografámos as coisas da vida quotidiana”, nota Luís Andrade.

Se nos primórdios da fotografia apenas a classe média-alta (clérigos incluídos) tinha o privilégio de posar à frente da câmara, foram chegando as necessidades do registo em imagem como documento e prova. Desde a avioneta vinda de Espanha que se despenhou nas salinas tavirenses nos anos da Guerra Civil aos rostos marcados pelo sol dos pescadores do Mediterrâneo, o advento da câmara escura fez parecer com que, naquela zona do Algarve, se vivia mais do que antes.

“Indivíduo de serviço”

Ter uma casa para mostrar a fotografia em vez de passar horas a revelá-la no laboratório é talvez a forma de salvar o analógico na era em que o “modo automático” prevalece. “A nossa actividade na loja é a mesma do que no mundo inteiro. 80% das casas fotográficas fecharam”, realça Luís Andrade. “Foi também a pensar nos filhos que quis fazer isto”, explica, com uma nota de amargura por acreditar que o digital roubou “a pureza da arte fotográfica” e lhe retirou um dos factores essenciais: o tempo.

Quando Luís de Melo e Horta, amigo de Luís e autor dos textos em Tavira e os Andrades, escreve que em 1954 começava a era dos projectores e “a fotografia de passe já não se sujeitava à marcação nem à dependência de o sol estar ou não encoberto”, era disso que se tratava. Tal como quando Luís Andrade conta que, “antes, quando se estava a apontar para um monumento, por exemplo, as pessoas paravam em frente; queriam fazer parte da fotografia”.

Foi pela ideia de documentário, “quer da parte das igrejas quer de pessoas que tinham em casa objectos valiosíssimos”, que Luís se deixou levar pela magia do processo, desde o clique à emulsão. “Quando era estudante de liceu, esteve em Tavira um senhor que era arquitecto, fotografando tudo o que havia de interesse. E eu comecei a interessar-me por estas coisas, pelo que era captar e guardar.”

Nos anos 1960, quando foi destacado para Angola, assumiu a função de repórter durante a guerra colonial. “Em Luanda, chefiei o laboratório fotográfico do quartel-general”, recorda. Em Tavira, antes e após o 25 de Abril – depois de já ter queimado alguns negativos, com receio da PIDE –, era o “indivíduo de serviço”. “Poucos tinham máquina fotográfica. Quando eu aparecia era ‘oh, Andrade! Anda cá!’ E eu fotografava a juventude”, conta Luís.

A juventude, fotografada quer por ele, quer pelo pai ou pelo avô, é o principal corpo de contraste com o presente neste álbum de 120 anos de história. “Das coisas más e boas que vieram com o 25 de Abril, uma foi esta: acabaram com as escolas de pescadores, que eram o lugar onde os mais jovens iam aprender um dos principais ofícios aqui da região. Hoje, a pesca está totalmente em declínio”, compara Luís Andrade, enquanto atravessa os anos 1950. Ao lado, estão as oficinas de sapateiros e marceneiros, as bancas de calçado “pronto para ser vendido na Feira de Outubro”, as noites de baile no orfeão, as cheias em Cabanas. Fora de campo, ficam os miúdos encantados com o aparelho que gravava imagens, os cigarros de Apolinário gastos a retocar clichês. “Todas essas coisas”, consente Luís, “é na mente que ficam guardadas”. A fotografia ajuda a não esquecer.

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