Alemães homenageiam os sete mortos da “Batalha de Aljezur”

No cemitério de Aljezur repete-se hoje - Dia da Memória na Alemanha - uma romagem carregada de simbolismo. Os germânicos perderam a guerra, mas agora convidam os ingleses, que os derrotaram, a juntarem-se ao coro que entoa cânticos de paz, rejeitando o “despotismo e tirania” do nazismo.

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A cerimónia decorrerá no cemitério Rui Gaudêncio
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Neto do comandante Cuco Rui Gaudêncio
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Uwe Zelinsky e Doris Rui Gaudêncio
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Presidente da Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur (ADPHAA), José Marreiros Rui Gaudêncio
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Os portugueses foram agraciados com medalhas nazis Rui Gaudêncio
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Sete corpos, carbonizados, deixados numa ravina da Costa Vicentina, foi o balanço de uma batalha aérea que ali aconteceu há 71 anos. A Ponta da Atalaia/Arrifana – um local onde, noutros tempos, os muçulmanos celebraram o culto num convento - foi o palco da luta, travada nos ares. No cemitério de Aljezur encontram-se os restos mortais da tripulação do bombardeiro alemão derrubado por um caça inglês e hoje, quando se assinala o Dia da Memória da Alemanha, a comunidade germânica residente no Algarve, à semelhança do que sucede há mais de duas dezenas de anos de forma discreta, ali se deslocará para prestar homenagem aos seus heróis, tombados na “Batalha de Aljezur”.

Agora, alemães e ingleses partilham o mesmo espaço da amizade, numa terra mais conhecida pela produção da batata-doce do que pela riqueza da sua história. “Faz a paz, não a guerra”: esta é a nova mensagem que o antigo piloto de helicópteros Uwe Zelinsky pretende deixar no ar, ao convidar a comunidade britânica para se associar às celebrações germânicas.

A história possível do que se passou na madrugada do dia 9 de Julho de 1943, na praia da Arrifana, vem publicada no livro Batalha de Aljezur, da autoria de José Augusto Rodrigues. O “filme” da batalha que ali se travou, envolvendo um caça inglês e um bombardeiro alemão, foi acompanhado ao vivo e em directo por Vitorino Cuco, o então comandante do posto da Guarda Fiscal da Arrifana. A notícia, por força da censura existente, investigou José Augusto Rodrigues, “passou quase despercebida nos jornais simpatizantes da causa germânica e foi praticamente ignorada nos noticiários dos jornais de tendência anglófila”. Nas muralhas do castelo da vila, relatam os populares, ouviram-se os ecos do rebentar das bombas quase ao mesmo tempo em que se sentiu o estrondo do Condor alemão ao despenhar-se contra uma ravina. A população, assustada, saiu à rua, mas não conseguiu chegar ao local.

Testemunha privilegiada da batalha, o guarda fiscal Vitorino Cuco impôs a “lei e a grei” e afastou os curiosos. O neto, Ernesto Silva, mostra hoje ao PÚBLICO a medalha e o diploma de reconhecimento pela ajuda no resgate dos cadáveres, assinado pelo punho de Adolf Hitler.

No sótão do antigo edifício da câmara municipal, no meio dos maços de papéis diversos, o presidente da Associação de Defesa do Património Histórico e Arqueológico de Aljezur (ADPHAA), José Marreiros, encontrou, há um ano, novos elementos sobre a “Batalha de Aljezur”na correspondência “secreta e confidencial”. A partir desses documentos, ao alcance dos ratos e outros bichos, detectou as provas que lhe faltavam para sublinhar uma tese já conhecida: “ A neutralidade que Portugal proclamava na II Guerra Mundial, não passou de uma fachada.”

Nos arquivos da ADPHAA, José Marreiros guarda a prova documental da “confidencialidade” com que o assunto foi tratado pelas autoridades portuguesas e alemãs. A importância geoestratégica do Algarve na guerra, defende José Augusto Rodrigues, suscitou o “interesse das duas partes beligerantes, apesar da declaração de neutralidade decretada pelo governo de Salazar”. Nessa altura, destaca o autor, o Algarve era “uma das regiões mais importantes, em termos estratégicos, tendo em consideração a proximidade de Gibraltar, possessão de elevada importância estratégica no controlo de acesso ao Mediterrâneo”.

Agora, a ADPHAA – a associação que tomou a seu cargo a recolha e tratamento da informação relacionada com o Património Histórico e Arqueológico de Aljezur — "pretende criar um Centro Interpretativo da II Guerra Mundial”, diz o estudioso da história local, acrescentando estar em contacto com “especialistas” portugueses e estrangeiros que o possam ajudar.

Já conta com a colaboração de Uwe Zelinsky, um exemplo de como, de entre os estrangeiros residentes, os germânicos são os que mais se tentam envolver na comunidade, sendo já os mais representativos ao nível social e político. Prova disso está no facto de, nas últimas eleições autárquicas, terem eleito um deputado alemão para a Assembleia Municipal de Aljezur. “Sim, procuram integrar-se”, confirma José Marreiros.

No cemitério, os cânticos da cerimónia – dirigida pelo pastor Andreas Lemmel, da Igreja Evangélica Luterana – estão a cargo do Coro Internacional de Aljezur, dirigido pela maestrina espanhola Carme Mampe Juncadella. A cerimónia é pública, mas as feridas da guerra – a julgar pela habitual pouca participação popular (não mais de duas dezenas de participantes) – ainda não sararam. Uwe Zelinsky tem-se esforçado, nos últimos 16 anos, por aproximar os povos das várias nações, abrindo esta cerimónia aos portugueses e este ano também aos britânicos, sublinha o alemão.

Porcos a grunhir e galinhas a cacarejar

Na ausência do antigo guarda/comandante do posto da Guarda Fiscal, falecido, é o neto, Ernesto Silva, quem conta ao PÚBLICO como viveu o acontecimento, quando tinha cinco anos: “Comecei a ouvir os porcos a grunhir e as galinhas a cacareja , fiquei cheio de medo.” As lembranças, em diferido, só contadas de memória. A imagem que guarda desse tempo, ficou-lhe guardada no coração, quando a mãe e tia o procuraram para o proteger do perigo que se sentia.

“Agarraram no menino [Ernesto] e levaram-no para um sítio que lhes pareceu seguro.” Os aviões lançavam-se em voos de ataque e contra-ataque, entre o mar e a terra, num fogo cruzado. O avô Cuco, a partir do posto da Ponta da Atalaia (hoje em ruínas), terá visto todas aquelas acrobacias, com as bombas a trovejarem em seu redor. “Não imagino o que terá sentido”, diz o neto, que se reformou como secretário da Câmara Municipal de Aljezur mas continua a trabalhar como mediador de seguros e artesão de peças em barro.

“Desde guardar porcos a notário público [função que acumulava com a de secretário autárquico], já fiz de tudo um pouco”, diz. A versatilidade, reconhece, terá herdado do avô, que era alfaiate e fez-se guarda à força das circunstâncias. “Estava mobilizado para ir para Timor, e alguém lhe disse que, para se safar da guerra, o melhor que teria a fazer seria concorrer à Guarda Fiscal.” Mas fez mais do que lhe sugeriram: comprou um terreno junto à praia, oferecendo uma parcela ao Estado para construir o posto da Guarda Fiscal. A seguir foi nomeado comandante. “Mal sabia ler e escrever – nem tinha a quarta classe.”

Uma vez terminada a batalha, foi “naturalmente a primeira autoridade a tomar conta da ocorrência e impediu que a população de aproximasse do local”. As bombas por detonar, justifica o neto, poderiam pôr em perigo a vida dos civis. Passados cinco meses, as forças políticas e diplomáticas pedem que “sem alardes nem publicidade” seja marcada uma cerimónia na câmara para agraciar, com a Ordem da Águia Imperial Nazi, as quatro personalidades da terra envolvidas na operação de resgate dos corpos dos alemães. O comandante Vitorino Cuco, José Viriato-França, comandante da Legião Portuguesa em Aljezur, Amândio da Luz Paulino, administrador do concelho, e o próprio presidente da câmara, Albano de Oliveira, foram os agraciados.

O piloto cantor

Uwe Zelinsky, reformado do serviço militar, vive há 16 anos no Vale da Telha, a cerca de dois quilómetros do local onde os seus sete conterrâneos morreram em combate. Na passada quarta-feira deslocou-se ao cemitério de Aljezur para fazer os últimos arranjos nas campas das sete vítimas da batalha. O que se pretende celebrar, diz o comunicado distribuído à comunidade dos estrangeiros residentes, é a “memória de todos os mortos das duas guerras [mundiais] no século passado, os sacrifícios de tirania, despotismo e imperialismo”.

Além dos representantes do corpo diplomático da embaixada alemã, em Lisboa, foram convidados os representantes do município e da comunidade britânica. “Somos amigos, não queremos a guerra”, diz Doris Wroblewski, companheira de Zelinsky. Não será por acaso que deu à moradia onde vivem o nome: “Casa da Paz.”

Doris, antiga professora de História, juntou ao seu interesse pela cultura dos povos o gosto pela medicina alternativa. A habitação, construída de taipa (barro), com lareira – que só albergará o primeiro fogo do Outono “no dia 21, quando muda a lua” –, foi concebida para estar de acordo com as regras do Feng Shui que concebe os espaços em harmonia com a natureza e o bem-estar das pessoas.

Em seu redor, toda a flora da Costa Vicentina assume um significado quase religioso. Por coincidência, a menos de dois quilómetros da “Casa da Paz” – perto do local onde se deu a queda do bombardeiro –, existiu o Ribat da Arrifana (séc. XII), um convento-fortaleza consagrado à oração e vigilância da costa.

Zelinsky, depois de ter feito carreira militar como piloto de helicópteros, dedicou os últimos anos de actividade a trabalhar como perito em acidentes de aviação. Reformou-se em 1993. “Foi antes da guerra do Kosovo”, enfatiza, deixando implícito que a suas batalhas actuais passam por aproximar a comunidade de estrangeiros residentes no concelho da batata-doce.

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