Ajustes directos do município de Coimbra aproximam-se da “linha vermelha”

Em causa estão contratos adjudicados a empresas cujos sócios detêm outras empresas que tinham atingido o limite legal de contratos por ajuste directo.

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Uma dos contratos envolve o Convento de São Francisco Sérgio Azenha

A autarquia de Coimbra diz que cumpre a lei, a oposição condena e os empresários não comentam directamente. Entre o fim de Setembro e o início de Outubro, a Câmara Municipal de Coimbra celebrou dois contratos por ajuste directo: um de consultoria para o Convento de São Francisco e outro de serviços de comunicação e consultoria.

No entanto, os donos de cada empresa detêm outras empresas que tinham sido contratadas igualmente por ajuste directo em 2014 e 2015 para serviços semelhantes, tendo atingido o limite legalmente imposto para contratos deste tipo. A informação foi inicialmente publicada no site Notícias de Coimbra.

Em Julho o presidente da autarquia tinha dito ao PÚBLICO que a gestão do Convento voltaria a ser entregue a João Aidos por ajuste directo. Assim o fez, mas não através da J. Aidos – Consultoria e Gestão de Projectos, Limitada, da qual João Aidos é sócio gerente, tal como tinha sucedido em Maio de 2014 por 45,6 mil euros e em Julho de 2015 por 74,8 mil euros (valores aos quais acresce IVA).

Ambos os contratos tinham como objecto a coordenação e gestão do projecto do convento, tiveram a duração de um ano e a autarquia, conforme o limite legal estabelecido, ficou impedida de voltar a contratar esta empresa por ajuste directo até 2017.

Em Setembro de 2016, a CMC adjudicou por ajuste directo um contrato no valor de 74,8 mil euros à Metáforas e Vírgulas, uma sociedade unipessoal de João Aidos, que foi da lista com que Manuel Machado concorreu à presidência do município nas eleições autárquicas de 2013. O registo da empresa data de 5 de Agosto de 2016, menos de dois meses antes de ser assinado o primeiro contrato com uma entidade pública, a CMC. Contactado pelo PÚBLICO, João Aidos não quis comentar.

O objecto do contrato é a aquisição de consultoria cultural, artística e de programação municipal para o Convento de São Francisco. No documento publicado na base dos contratos públicos, o nome do adjudicatário está em branco, tal como não consta a assinatura do representante.

Já a 4 de Outubro deste ano, a Informacíon Capital Consulting, Lda. foi contratada pelo município com o mesmo procedimento para prestar “serviços de consultoria de comunicação”. A empresa, detida na totalidade por José Manuel Diogo, recebe da autarquia 40,480 mil euros pelo trabalho de um ano.

Nos dois anos anteriores, a empresa contratada para prestar “serviços de consultoria de comunicação” tinha sido a Valor de Fundo, Sistemas de Conhecimento Estratégico, Lda, detida em partes iguais por José Manuel Diogo e por Luís Viana, antigo director da Agência Lusa. A Valor de Fundo esteve envolvida na campanha eleitoral do PS na corrida à câmara em 2013 e recebeu 44 mil euros em 2014 e 40,480 mil euros em 2015, o que significa que só poderá voltar a ser contratada em 2017 por ajuste directo. O trabalho mais visível da empresa era a comunicação do Convento de São Francisco.

José Manuel Diogo refere apenas que a Informacíon Capital é contratada porque “as pessoas confiam no trabalho da empresa” que existe desde 2005.

O município não respondeu às questões enviadas pelo PÚBLICO, referindo apenas, através do gabinete de comunicação, que a “Câmara Municipal de Coimbra cumpre a lei em todos os contratos que celebra”.

Entre a legalidade e a “linha vermelha”

Um professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra especializado em contratos públicos que preferiu não ser identificado entende que, tanto o caso do contrato para a gestão do convento como o da comunicação, não sendo ilegais, aproximam-se de uma “linha vermelha”.

Ressalvando que, “no plano estritamente formal, não parece haver ilegalidade”, a criação da Metáforas e Vírgulas foi “claramente” um “expediente para contornar um regime jurídico que, de forma inequívoca, não permitiria um terceiro ajuste directo à mesma entidade”. O advogado entende que, “por ser tão evidentemente artificial”, esta é uma “situação perigosa” para a Câmara Municipal pois aproxima-se da “da linha vermelha da utilização de expedientes que podem ser interpretados como casos de fraude à lei”. O advogado aplica a mesma conclusão ao contrato celebrado com a Informacíon Capital.

O advogado João Amaral e Almeida não quer pronunciar-se especificamente sobre os contratos em questão, mas aceitou falar com o PÚBLICO sobre a interpretação do Código dos Contratos Públicos.

O advogado refere que “a voz corrente no meio jurídico” avalia a norma que estabelece os limites dos contratos por ajuste directo para bens e serviços como sendo “propícia a uma figura que se chama fraude à lei”. Ou seja, “alcançar um objectivo que a lei visa impedir por um meio que é legalmente admitido”. A entidade pública “convidaria outra empresa e com isso conseguiria ultrapassar o objectivo que a lei quer. É outra empresa, mas no fundo são as mesmas pessoas”, exemplifica.

No entanto, João Amaral e Almeida tem “as maiores dúvidas” que a figura da fraude à lei “exista realmente”, uma vez que a lei não proíbe a contratação de outra empresa com os mesmos sócios. O membro do grupo de trabalho que deu origem ao projecto do Código de Contratos Públicos em vigor, afirma que a figura da fraude à lei, apesar de considerada pela comunidade jurídica, não está plasmada no ordenamento jurídico português.

Quando se defende que se trata de uma fraude à lei, tem que se “demonstrar inequivocamente” que o objectivo foi contratar pessoas que não o podiam ser “por via do impedimento da primeira empresa”. “O que não é uma prova fácil de fazer”, conclui.

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