Abandono e uma visão

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As cidades têm destas coisas: decidimos escrever sobre uma praça por onde passamos todos os dias, porque nos intriga que um espaço tão aberto persista em manter-se à margem do que o rodeia, e descobrimos que, afinal, ali mesmo, a igreja que marca um dos lados da praça foi palco de alegadas visões religiosas.

Passo a explicar. Todos os dias atravesso a Praça da Trindade. É uma praça encaixada entre a igreja com o mesmo nome e as traseiras da câmara municipal. Tem uma fonte com chafariz ao centro, construído com peças levadas para ali de um outro chafariz, no Largo de S. Domingo, e que, nestes dias de Primavera, está rodeado por uma animada coroa de florinhas brancas. Tem algumas árvores, mas só de um lado, tem calçada portuguesa e bancos de jardim.

A praça, bem no centro da cidade, a dois passos da Avenida dos Aliados, parece ter tudo para estar bem integrada no espaço que a rodeia, mas, estranhamente, nunca perde um certo ar de abandono, de espaço esconso, como se fosse, de facto, não uma praça aberta mas um recanto invisível da cidade. É como se sussurrasse constantemente aos nossos ouvidos “atravessa-me” em vez de “permanece”.

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Antes de ser Trindade, a praça era conhecida como Largo do Laranjal

Os únicos que parecem indiferentes a esse apelo silencioso são alguns homens maltratados, que carregam embalagens de vinho em sacos de plástico. Eles, sim, vão ficando por ali, ocupando os bancos, com olhares distraídos de vinho ou conversando quando o grupo se alarga. A Praça da Trindade parece não se ter dado bem com a sua mudança na geografia da cidade. Antes de ser Trindade, era conhecida como Largo do Laranjal e sem o edifício da câmara ou sequer a avenida, já que nenhum dos dois fora ainda construído, era o destino final da Rua do Laranjal, entretanto desaparecida, para que o centro nevrálgico da cidade pudesse mudar e a Avenida dos Aliados pudesse nascer. A praça parecia expandir-se para lá dos seus limites, em vez de esbarrar nas traseiras de um edifício imponente, como hoje acontece.

Depois, a praça deixou de ser um objectivo, para passar a ser um espaço entalado entre dois edifícios, o tal local por onde se passa mas onde quase ninguém fica. E quem não fica não tem tempo para apreciar com alguma atenção a igreja projectada por Carlos Amarante (e alterada por José Francisco Guimarães), cuja construção começou em 1803. A igreja abriria ao culto a 5 de Junho de 1841, apesar de a fachada só ser concluída cinco anos depois e de a torre não ficar pronta até 1848.

Construída aos poucos, por desígnio da Ordem Terceira da Santíssima Trindade, a igreja haveria de esperar ainda por um novo século para ser palco da que será, eventualmente, a sua história mais misteriosa. Em 1935, uma leiteira de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira, de nome Guilhermina Pereira Pedrosa, disse ter tido uma visão de Nossa Senhora, num lugar designado por Monte da Azenha. O povo, já habituado a que Portugal fosse terreno fértil para visões marianas, depois das aparições de Fátima, em 1917, apressou-se a fazer uma capela no local. E, apesar de a diocese do Porto ter proibido, logo no ano seguinte, qualquer procissão ou celebração religiosa, e ordenado a demolição da capela e do cruzeiro, chamando às visões de Guilhermina “a imaginada invocação da Senhora da Azenha”, a verdade é que peregrinações e capela continuaram no mesmo local. O que é que isto tem que ver com a Praça da Trindade? Bom, é que, segundo se conta, Guilhermina foi ao Porto e na igreja da Trindade teve também uma visão. E nada simples por sinal, já que terá visto a Santíssima Trindade e anjos cantando o Tantum Ergo Sacramentum. A diocese não deve ter achado graça, mas a história, seja qual for o seu grau de veracidade, chegou até hoje. E aconteceu (terá acontecido?) ali mesmo, na praça que atravessamos todos os dias, sem prestar demasiada atenção ao que a rodeia. Já lhe apetece ficar um pouco mais na Praça da Trindade?     

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