Câmara quer eliminar os recantos de Lisboa que amedrontam as mulheres

A Câmara de Lisboa pretende que "cada uma das pequenas decisões" dos seus técnicos e decisores contribua para que os espaços públicos da cidade sejam mais seguros para as mulheres. O debate com os cidadãos trouxe as primeiras ideias sobre o que pode mudar para uma cidade melhor.

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Pequenas mudanças, como a localização das paragens de autocarro em locais mais movimentados ou mais iluminação, podem fazer a diferença para que as mulheres se sintam mais seguras Fabio Augusto

Uma paragem de autocarro isolada e mal iluminada pode levar uma mulher sozinha a pensar duas vezes se fica ali à espera ou continua a caminhar até à próxima paragem. Evitar um túnel para atravessar a linha do comboio à noite pode duplicar o percurso que qualquer um faz para chegar a casa. E andar num autocarro cheio pode ser uma experiência cheia de armadilhas – em particular para o sexo feminino. Para tentar minimizar o problema, a Câmara de Lisboa está a estudar soluções que garantam que "a ocasião não faz o ladrão".

A insegurança toca a todos, mas a equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal (PAP) de Lisboa considera que as mulheres são as que sofrem mais consequências do medo de estar nos espaços públicos. Por isso, a câmara abriu o debate aos cidadãos: “A rua respeita as mulheres?”

“Quando falamos da segurança das mulheres no espaço público, temos de reconhecer quatro coisas: que é um problema, que este problema é importante, que é um problema que tem solução e que as soluções estão ao nosso alcance”, afirmou Pedro Homem de Gouveia, coordenador da equipa do PAP de Lisboa, na abertura da conferência para debater a segurança no espaço público e nos transportes, na manhã desta quarta-feira.

O cartaz da conferência, com a imagem de uma pessoa vestida de Mulher Maravilha numa paragem de autocarro, deu o ponto de partida: ainda é preciso ter “supercoragem” para estar sozinha numa paragem à noite, comentou o coordenador do PAP.

Pedro Homem de Gouveia refere que é preciso começar por “vencer a culpabilização da vítima”. Isto já foi feito, por exemplo, na prevenção de atropelamentos, em que a distracção dos peões e condutores tem costas largas. Contudo, identificados alguns “factores estruturais na base de grande parte dos atropelamentos”, foi possível à câmara gerir os espaços para reduzir as situações em que os acidentes costumam ter lugar.

O mesmo pressuposto é aplicado à segurança das mulheres: “Se dissermos às potenciais vítimas para evitarem usar minissaia ou um decote, estamos a limitar os seus direitos.” O papel da autarquia, considera o coordenador do PAP, é “reduzir o risco nos outros factores”, nomeadamente intervindo nos espaços públicos de forma a que haja menos oportunidades para que as agressões tenham lugar. “Se é a ocasião que faz o ladrão, vamos reduzir as ocasiões.”

Como isso é possível? Por exemplo, colocando as paragens de autocarro mais próximas de cafés ou nas zonas mais movimentadas de determinadas ruas. Ou posicionando postes de iluminação mais perto das paragens – ou por toda a rua. “Se a rua está escura e apenas a paragem iluminada, como é que a mulher se vai sentir?”, salienta a arquitecta Paula Miranda, do projecto Trabalhar para os 99%.

Na conferência nos Paços do Concelho, Paula Miranda explicou que é preciso “planear a cidade com uma perspectiva de género”. Dar atenção aos problemas comuns para as mulheres permite identificar mais facilmente os problemas de todos – perceber, por exemplo, que a acessibilidade não se traduz apenas em rampas para cadeiras de rodas ou bancos mais largos. Também os cidadãos sem diferenças funcionais precisam deste tipo de acessos: pessoas com carrinhos de bebés, pais com crianças de colo, cidadãos idosos.

A pergunta também foi feita aos cidadãos, activistas e profissionais que assistiram à conferência nos Paços do Concelho: numa cidade ideal, livre de insegurança, “o que é que as faria sentirem-se seguras?”

Mais campanhas de sensibilização e mais vigilância foram propostas comuns aos vários grupos de trabalho, mas surgiram igualmente ideias para aplicações móveis de partilha de experiências, botões de pânico nas paragens, melhor sinalização dos espaços de ciclovia e espaços melhorados de ligação entre transportes intermodais.

Perspectiva de género em todas as decisões

A equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal quer que as questões de género estejam presentes nas “inúmeras decisões tomadas todos os dias pelos projectos da câmara”. Para isso, até ao final do ano, a autarquia vai elaborar um conjunto de “orientações concretas para técnicos e decisores”, de forma a que “cada uma dessas pequenas decisões contribua para melhorar as condições para as mulheres”, afirmou Pedro Homem de Gouveia. E acrescenta que serão envolvidas todas as entidades relevantes, como a Carris, a EMEL, a PSP, a Polícia Municipal ou os departamentos das juntas de freguesia.

Nos próximos meses, a autarquia vai levar a cabo um conjunto de acções para recolher contributos, desde exemplos recolhidos noutras cidades a um levantamento de dados sobre as percepções de segurança – e insegurança – das mulheres nas ruas e transportes públicos.  

As primeiras informações já começaram a ser coligidas: o Observatório Nacional de Violência e Género, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, realizou em 2016 o primeiro inquérito municipal sobre a violência de género em Lisboa. Os resultados finais serão apresentados no próximo mês, mas as conclusões preliminares expostas pelo investigador Manuel Lisboa trazem algumas pistas para reflexão.

Se, por um lado, “os homens estão menos preocupados com a segurança quando saem à rua”, os dados mostram que as mulheres sentem-se muito menos seguras. Essa percepção leva as mulheres a saírem menos, principalmente à noite, e este medo de sair à rua é ainda maior entre as mulheres que são vítimas de violência. O resultado: há menos mulheres a sair de casa para actividades de lazer, seja para eventos culturais ou para frequentar bares e discotecas. Apenas 22,8%  o faz com frequência, quando entre os homens a proporção sobe para 33,7%.

Adriana Souza, investigadora da Universidade de Brasília e do ISCTE, caracteriza estas limitações e inseguranças como uma “proibição silenciosa”. No âmbito do seu doutoramento em Transportes, a pesquisadora brasileira está a começar a comparar a realidade das mulheres que se deslocam a pé em Brasília, cidade que já estudou, com a de Lisboa. No Brasil, o problema do assédio na rua tem levado a várias formas de mobilização das mulheres, como a campanha Chega de Fiu-Fiu, criada pelo colectivo Think Olga.

João Afonso, vereador dos Direitos Sociais da CML, reconhece “o incómodo, o medo e o receio que as mulheres têm de andar no espaço público”. E refere que a importância de “juntar estas duas áreas de trabalho” – a mobilidade e a violência de género – para pensar “a vida tal como ela é”, sem segmentações que separem “realidades conjuntas”.

“As pessoas sentem que isto condiciona a sua vida, que lhes provoca problemas, mas nem sempre têm noção de que é uma questão de género”, descreve ao PÚBLICO. A solução, mais uma vez, passa por tornar mais seguros os espaços por onde as mulheres passam diariamente. E todos os cidadãos – homens e mulheres – ganham com isso.

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