A minha vizinha vende manjericos

Todos os anos, a Praça da República recebe os toldos brancos, amarelos e vermelhos das cinco vendedoras de manjericos e alho-porro.

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Há muitas razões para se escrever sobre a Praça da República. Pode-se falar dela por causa das palmeiras altas, das muitas estátuas que a povoam, do Quartel de Santo Ovídio, construído por ordem de D. Maria I e que se ergue num dos seus lados. Mas não é sobre isso que quero falar. Eu quero escrever sobre a minha vizinha, a dona M..

A dona M. não é uma vizinha próxima, daquelas a quem recorremos num momento de aflição. Essa seria a Teresa, que até já pôs o meu esquentador a funcionar recorrendo a um secador de cabelo. Adiante. A dona M. é uma senhora rechonchuda, que eu me habituei a ver, no seu andar bamboleante, a passear o cão pela trela. É uma daquelas vizinhas a quem dizemos “bom dia” ou “boa tarde”, mas sobre a qual não sabemos mais nada. Excepto, neste caso, que tem um cão.

Há poucos anos, contudo, estava eu a folhear os jornais, quando me deparei com o rosto da dona M. num deles. A fotografia da mulher de cabelos curtos ilustrava uma reportagem sobre o S. João. A dona M., descobri na altura, vendia manjericos na Praça da República.

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Não faço ideia se, no resto do ano, a dona M. vende pipocas ou castanhas noutro lado qualquer. Nunca lhe perguntei, nem me deparei com qualquer fotografia dela nos jornais ligada a esses negócios sazonais, mas, há poucas semanas, a actividade sanjoanina da minha vizinha voltou a cruzar-se comigo.

Estava a acompanhar a reunião pública da Câmara do Porto quando reparei na dona M., sentada entre aqueles que aguardam pela hora de expor os seus pedidos e dúvidas ao executivo. Quando chegou a sua vez de falar, a dona M. iniciou um lamento tímido, sobre o medo que tinha de perder o lugar onde vendia manjericos há 20 anos. É que o município mudara as regras de atribuição de lugares, queixou-se, e ela não se imaginava a ser impedida de ocupar o seu bocado de passeio, na Praça da República, rodeada dos vasos enfeitados com manjericos de vários tamanhos.

A dona M. também me viu e acho que não chegou a acreditar verdadeiramente em mim quando, dias depois, me perguntou se eu sabia se o caso dela fora resolvido e eu lhe disse que não trabalhava na câmara. Depois disso, quando me via, a dona M. perguntava-me sempre: “Então? Já lá foi alguma colega levantar o mesmo problema?” ou “Sabe se já decidiram alguma coisa?”

Até que, um dia, a dona M. passou por mim, sempre com o seu cão pela trela, enquanto eu conversava com uma amiga. Ensaiou uns passos para seguir caminho mas voltou atrás, o rosto a abrir-se num sorriso. Pois que ficava na Praça da República, disse-me. Ela e as colegas que a costumavam acompanhar. Estava tudo resolvido. Na segunda-feira seguinte, dizia-me, já teria a banca montada, para iniciar a venda.

Os toldos brancos, amarelos e vermelhos das cinco vendedoras de manjericos e alho-porro ocupam parte de um dos lados da Praça da República. Há uma (não a dona M.) que tem um rádio a tocar uma música roufenha e alta.

Em todas as bancas há manjericos verdinhos, de diferentes tamanhos, enfeitados com as pequenas bandeiras coloridas com uma das tradicionais quadras de S. João. Na banca da dona M. os preços oscilavam, no dia em que a visitei, entre os três e os 15 euros. “Estão todos com desconto”, dizia ela, sorridente, no fio de voz que é a voz dela.

Há quem venda mais caro e há quem venda mais barato. Ali e noutros pontos da cidade. Perto da dona M. vejo outro rosto conhecido, a mãe de uma colega de escola que morava na minha antiga rua. Eu já sabia que ela vendia manjericos, mas não ali, na Praça da República. Ali nunca a tinha visto. Além dos manjericos tem alhos-porros, com as suas cabeças arroxeadas à espera de repousarem nas cabeças de quem passa.

É já amanhã. Amanhã é noite de S. João. A noite em que não se dorme no Porto. Em que bairros e ruas esquecem a vida dentro de portas e enchem os passeios e pátios de fogareiros e cheiro a pimento e sardinha assada. Em que as tijelas de barro cheias de caldo verde podem queimar os dedos se não se tiver cuidado. Em que os bombeiros não descansam porque há sempre o risco de os balões que iluminam a noite caírem onde não devem, provocando algum fogo. Deve ser também um dos últimos dias em que a dona M. e as suas companheiras montam as suas bancas na Praça da República. Depois, vão-se embora e não sei o que fazem o resto do ano. Excepto, no caso da dona M., passear o cão, enquanto espera que volte a ser tempo de manjericos. E de ocupar o seu lugar na praça.     

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