A cultura em S. Brás de Alportel, pela mão dos estrangeiros, tem mais adeptos do que o futebol

A comunidade de estrangeiros residentes já representa cerca de 15% da população do concelho. Um grupo de “Amigos” transformou o Museu num polo cultural à escala regional – uma janela aberta para o mundo

Fotogaleria
São Brás de Alportel passou a ter um grupo de jazz, outro de teatro e um coral Virgílio Rodrigues/F32
Concerto de jazz  com Beto Kalulu
Fotogaleria
Concerto de jazz com Beto Kalulu Teresa Nesler
Fotogaleria
Concerto do grupo coral dos Amigos do Museu Cliff Newton
Inauguração da exposição de artes plásticas do projecto de colaboração com as escolas do concelho - Festa das Artes
Fotogaleria
Inauguração da exposição de artes plásticas do projecto de colaboração com as escolas do concelho - Festa das Artes Cliff Newton
Fotogaleria
Museu no Museu do Trajo em São Brás de Alportel Teresa Nesler

As meninas, de cabelos brancos, sorridentes, aguardam a entrada da professora. “Bom dia, meninas”, anuncia Conceição Teles, no início de mais uma aula de português. Hanny, holandesa, dá uma olhadela ao caderno, revendo a matéria dada. Em São Brás de Alportel, situado à beira-serra do Caldeirão, cerca de 15% da população é composta por estrangeiros, a maioria ingleses reformados. A necessidade da criação de um “ponto de encontro” gerou uma nova dinâmica cultural numa terra adormecida

A revolução das mentalidades deu-se há 18 anos, quando foi criado o grupo dos “Amigos do Museu” do Trajo, pertencente à Santa Casa da Misericórdia. A associação, composta maioritariamente por ingleses reformados, já chega aos 800 – um número superior à União Desportiva e Recreativa Sambrasense, que se fica pelos 600 sócios com as quotas em dia, e tem no futebol a sua principal actividade. “Fenomenal”, assim adjectiva o presidente da câmara, Vítor Guerreiro, PS, o trabalho desenvolvido pelos novos residentes. Ao contrário do que geralmente acontece com os dirigentes desportivos, diz, é “muito fácil satisfazer as reivindicações dos estrangeiros pois pedem muito pouco pelo tanto que fazem pela cultura”.

Linda Cooper chegou ao Algarve há cinco anos para comprar casa para o filho, funcionário das Nações Unidas. “Nunca imaginei que vinha para ficar, vim só para conhecer os Amigos do Museu e ver se havia qualquer coisa em que pudesse ser útil”. Actualmente, funciona como uma espécie de public relations da instituição, sendo ainda responsável pela organização dos concertos de música clássica. No próximo dia 23, por exemplo, actua o belga Dirk Vanhuyse (violoncelista da Orquestra Sinfónica Real de Sevilha) e Mária Esther Guzmán (guitarra clássica), interpretando Vivaldi e Shubert. O valor do cachet, adverte, não divulga. “Muito especial”, diz, sublinhando que há razões afectivas que servem de moeda de troca. Dirk também tem casa em plena serra de São Brás de Alportel, local onde se refugia nos intervalos dos concertos que dá pelo mundo, actuando como solista. “Vem e traz um amigo também”, parece ser este o espírito que preside ao grupo dos “Amigos do Museu” - muitos deles quadros superiores e artistas que escolheram o Algarve para viver mas que não querem passar o dia todo à beira da piscina a apanhar sol. Assim, nasceu um grupo de jazz, outro de teatro e criaram um coral, com intérpretes de diferentes nacionalidades. 

Cada sócio paga 18 euros por ano, 50 euros se quiser ser “membro especial” – o que lhe confere o direito, entre outras regalias, a sentar-se na fila da frente quando há concertos. Os restantes lugares não são marcados. As sessões culturais, por regra, esgotam a sala de espectáculos, com capacidade para cem pessoas. Conceição Teles, voluntária, desloca-se de Faro a São Brás de Alportel, a cerca de 15 quilómetros de distância, para ensinar português a estrangeiros. “Sinto que somos uma família”, comenta.

Vânia Mendonça, funcionária contratada pelos “Amigos do Museu” para coordenar o vasto programa de actividades, acrescenta: “Juntam-se aqui pessoas vindas de toda a região, este é o ponto de encontro da comunidade de estrangeiros residentes”. Além de aulas de artes plásticas e performativas, concertos e conferências, também há lugar para o ioga e tai chi e aprende-se a dançar zumba. “Hoje está um lindo dia”, dita a professora, com o cuidado de falar pausadamente, intercalando palavras em português com o inglês. “Não é fácil aprender uma segunda língua a partir de determinada idade ”, justifica a professora, também reformada da profissão mas não do prazer de continuar a ensinar e aprender. “Ando a receber aulas de alemão”, acrescenta.

Comprar ovos, só com o dicionário
Linda Cooper fala um português correcto. Quando conheceu Portugal, há mais de duas décadas, “ia à mercearia comprar ovos com o dicionário na mão”. Se o dono do estabelecimento lhe perguntava se queria grandes ou pequenos, ficava sem saber o que responder: “Começavam todos a olhar para mim”. Os supermercados ainda não se tinham popularizado. Aos poucos integrou-se de forma natural, com a vantagem de a aculturação se ter dado muito por influência de ter casado com um português. Do ponto de vista profissional, trabalhou na British Airways e como relações públicas do parlamento inglês. A montagem da exposição sobre o centenário da criação da vila, que deverá ser inaugurada em Junho, é uma das tarefas a que deitou mão, ajudando o director do Museu, Emanuel Sancho.

À saída das aulas de ioga, Maria João, casada com um alemão [vive em Tavira], dirige-se a Vânia Mendonça: “Tenho uma ideia para propor”. A jovem, formada na área do património cultural, esboça um sorriso. “Um café filosófico”, sugere. Poderá ser mais a juntar a um já vasto calendário de actividades: Todos os terceiros domingos de cada mês há concertos de jazz, e o fado tem lugar ao quarto domingo. O ensino da língua portuguesa acontece à segunda e quinta-feira, a par dos ateliers de pintura e cerâmica que funcionam todos os dias.

Na aula de português, Bernardete, Heather, Joana e Hanny procuram completar a frase de arranque da aula. “Hoje está um lindo dia, temos sol e céu azul”. A professora exclama: clever girls! Não há erros, e as alunas mostraram que tinham aprendido a matéria dada nas lições anteriores. A seguir, discutem qual o melhor restaurante para irem almoçar. Ao pátio – um espaço aberto e convidativo ao lazer - chegam visitantes interessados em conhecer o museu que conta uma parte da história do Algarve a partir da evolução do trajo. Mas irão descobrir muito mais que isso.

Estrangeiros queixam-se da falta de médicos
O poder autárquico recebe elogios dos “Amigos do Museu”, mas Linda Cooper critica o Serviço Nacional de Saúde. “O pior que cá temos é a falta de médicos, é muito difícil conseguir vaga no Centro de Saúde”, lamenta. Os meandros da burocracia é outro quebra-cabeças que diz não entender. "Papel e mais papel, só burocracia”, queixa-se.

Como reflexo da nova vaga de imigração, nas escolas do concelho há alunos de 18 nacionalidades. Por conseguinte, com o objectivo de facilitar a vida de quem chega a uma terra com poucas ou nenhumas referências, a câmara criou o Centro de Apoio à Integração dos Imigrantes e a figura do Provedor do Residente Estrangeiro.

O êxodo do litoral para a serra começou há cerca de duas décadas, com os ingleses a procurarem o Algarve que ficou esquecido pelos grandes operadores turísticos. Os alemães e os holandeses seguiram o exemplo dos britânicos, e agora o que está a agitar o negócio do imobiliário são os franceses. As imobiliárias, seguindo as tendências do mercado, já não se limitam a promover imóveis, publicitam também o ensino de português para franceses. “Ainda há sítios lindos”, conclui Linda Cooper, tendo a serra do Caldeirão como pano de fundo.

Sugerir correcção
Comentar