A arquitectura de portas abertas a quem não vê ou não ouve

Cerca de 60 pessoas cegas e surdas participaram no Roteiro para a Inclusão do Open House, evento dedicado à arquitectura que decorreu este fim-de-semana no Porto, em Gaia e Matosinhos.

Jaime Oliveira nunca mais tinha regressado ao Porto de Leixões desde que a vida lhe trocara as voltas e a cegueira, arribada aos 47 anos, o impedira, entre muitas outras coisas, de fazer mergulho em profundidade. E ali, no meio de um grupo de 60 pessoas, cegas e surdas, que visitavam, este sábado, o edifício do Terminal de Cruzeiros, este antigo vidraceiro não escondia a emoção, puxando do tacto, a arma que aprendeu a usar, para conhecer melhor a obra, ela própria tão cheia de vidro, do arquitecto Luís Pedro Silva, que os guiou no Roteiro para a Inclusão do Open House Porto.

Cerca de 20 mil pessoas terão passado, durante o fim-de-semana, pelos 60 edifícios do Porto, Gaia e Matosinhos incluídos na edição deste ano do Open House Porto. Iniciativa que, tal como já tinha acontecido em 2016, inclui um roteiro especial com passagem por alguns dos espaços mais icónicos, com grande adesão por parte de quem tem de usar outros sentidos para ver a arquitectura.

“Que cores tem o edifício?”, pergunta António Tavares, outro dos participantes neste grupo que, no terminal de cruzeiros, é guiado pelo próprio autor do projecto:  “O edifício é predominantemente branco, com muito vidro e com espaço para que entre muita luz”. responde Luís Pedro Silva a este homem que, desde a inauguração do edifício, em 2015, procurava uma oportunidade para o visitar.

E não lhe faltaram perguntas para o arquitecto responder. Algumas delas relacionadas com questões de mobilidade. “Os elevadores estão preparados para cegos?” - questiona. São cada vez mais os que estão, diz-nos. No entanto, “ainda há” os que não têm botões escritos em braille. Os do terminal têm, verifica, enquanto conhece finalmente o espaço, que descreve como sendo amplo, preparado para permitir uma “boa mobilidade” e com muita luz.

É “muito bonito”, concorda a esposa, Isabel Tavares, também cega, acrescentando que o que mais gostou “de ver” foi o lago logo à entrada. Ela tinha a dúvida se era mesmo água que lá estava. Na verdade o chão está apenas pintado de azul, cuja sombra lhe criou a ilusão.

Anunciação Velho também consegue percepcionar as sombras e inclusivamente diferenciar alguns tons. Não é “totalmente cega”, diz-nos. Enquanto subia a rampa que liga os diferentes patamares do edifício de forma circular conseguiu avistar uma “mancha azul” que se distinguiu da “claridade”. Há uma saída aberta para o terraço com vista privilegiada para o mar. Enquanto o grupo segue, Anunciação sai disparada para o terraço e inspira. “Queria sentir o mar”, sorri.

Recuar ao passado

Minutos depois, a Anunciação junta-se o resto do grupo do qual faz parte o companheiro, Jaime Oliveira. Perto do gradeamento que serve de parapeito, os dois sentem a brisa do mar virados para Atlântico. Não escondem a emoção do momento. Era dali, onde agora está construído o terminal, que Jaime saía de barco para fazer mergulho em profundidade, actividade que praticava com regularidade até aos 47 anos, altura em que perdeu a visão.

Até sábado, nunca mais lá tinha voltado. E não espanta, por isso, que se afirme “duplamente” emocionado. Aos oito anos começou a trabalhar na vidraria do pai. “Nasci no meio do vidro, com o qual trabalhei durante toda a minha vida até ficar cego”, recorda, assumindo ter recuado a esses tempos quando ouviu o arquitecto dizer que em todo o edifício o vidro tem, também, uma presença marcante. Naquele lugar, naquele dia, afirma ter recuado no tempo duas vezes.

Agora com 57 anos, Jaime Oliveira Vai explicando que o processo de adaptação passou por “voltar a aprender” a viver. “Renasci aos 47 anos”, insiste. Desenvolveu outros sentidos, como o do tacto. As paredes do edifício, forradas com hexágonos dispostos de forma a criar um relevo irregular, são tocadas por muitas mãos: “Tacteei muito peixe vivo no fundo do mar. Estas paredes lembram-me escamas”. Nesse processo de adaptação “aprende-se a ver de outra forma”.

Adquirem-se também outras capacidades. Depois de perder a visão, o antigo vidraceiro passou a fazer coisas que anteriormente era incapaz de concretizar. Já se aventurou no montanhismo e em desportos radicais. Chegou a estar “pendurado” a 900 metros do solo, algo que seria impensável quando tinha visão por ter medo de alturas. “Esta é uma das vantagens de ser cego”, ironiza.

Enquanto as visitas do Open House decorrem nas três cidades, em edifícios como os da Casa da Música, do Museu de Serralves, da Culturgest, no Porto, da Torre de Retransmissões do Monte da Virgem – Torre PT, em Gaia, ou do Farol de Leça, em Matosinhos, o grupo do Roteiro para a Inclusão, segue para a Casa da Arquitectura, ainda no mesmo concelho.

Lá, existe uma maqueta do edifício. Maria da Luz Ribeiro tacteia-a. É técnica de braille na ACAPO e defende a inclusão destas maquetas em vários edifícios para que seja possível a um cego percepcionar a volumetria e a dimensão do espaço. “Noutros países já é uma coisa comum”, diz. Este ano a organização do Open House incluiu-as nalguns edifícios do roteiro.

Em Gaia, já da parte da tarde, no Quartel da Serra do Pilar, Marcelino Ribeiro tira fotografias com o telemóvel. É um dos seus hobbies. Não consegue ver o que está a fotografar, mas consegue disparar quando o enquadramento está no ponto. Tem a ajuda da esposa que o vai guiando e de uma aplicação móvel que o ajuda a fazer uma triagem das fotografias que estão com melhor qualidade.

Um dos fotografados é o soldado Ricardo Pessol, que se voluntariou para fazer tradução gestual para os cerca de 25 surdos que marcaram presença. Aprendeu linguagem gestual na Escola Superior de Educação do Porto, onde se licenciou. No final da visita ajuda-nos a traduzir a conversa com José Natário, surdo-mudo, que pela primeira vez visita o quartel e diz ter pena de não haver mais iniciativas como esta.

No ano passado, na segunda edição do evento, a organização experimentou pela primeira vez este roteiro em dois edifícios – Palácio do Bolhão e Quartel da Serra do Pilar – e à imagem do que aconteceu este ano contou com o auxílio de tradutores de linguagem gestual e guias que se voluntariaram. Vinte pessoas inscreveram-se no roteiro em 2016.

Nesta edição, o Roteiro para a Inclusão, que resulta de uma parceria com a Provedoria da Câmara do Porto para os Cidadão com Deficiência, a ACAPO, a Hands to Discover e os Departamentos de Acção Social das três cidades envolvidas, alargou-se para cinco espaços e triplicou o número de inscritos. A coordenadora do Open House, Carla Barros, diz que a meta para o próximos anos é criar condições para que todos os edifícios possam ser visitados por pessoas cegas, surdas e com mobilidade reduzida.

Este ano, segundo a organização da iniciativa, este ano exclusivamente a cargo da Casa da Arquitectura, cerca de 20 mil pessoas terão visitado os espaços incluídos, menos 10 mil do que no ano passado. Dos edifícios com mais visitas destacam-se a Torre do monte da Virgem, em Gaia, e a Casa de Arquitectura e o Terminal de Cruzeiros, em Matosinhos, que abriu ao público em 2016. Este factor, que suscitou, no ano passado, uma corrida á obra desenhada por Luís Pedro Silva, explica, segundo a Casada Arquitectura, a  quebra esstimada no número de participantes.

O Open House, e o Roteiro para a Inclusão regressam, garantidamente, em 2018. A Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, que acompanhou a visita, tal como acontecera no ano passado, sublinhou que são as iniciativas como esta que fazem com que um evento “que dá a conhecer edifícios que por norma estão vedados ao público em geral” sejam “efectivamente abertos à participação de todos”.

 
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