O Porto e os discos

antónio mafra
Título: O Melhor dos Melhores
Editora: Movieplay, compilação de 1994

Nenhum outro artista vivo se poderá orgulhar de ter acumulado um tão vasto património de canções cheias de personagens e lugares castiços relacionados com a cidade do Porto

O Conjunto António Mafra é um daqueles casos que desafiam as catalogações. Na verdade, um grupo como este, que trocou as voltas às convenções para inventar jocosamente uma espécie de folclore tripeiro, não é facilmente encerrável numa categoria. Mesmo a questão básica de saber se a sua música respeita os critérios do bom gosto pode dar azo a alguma controvérsia. À primeira vista, perante o ambiente brejeiro e os estribilhos fáceis a piscarem o olho, muitos poderiam ser tentados a relegá-la para o submundo do "pimba"; a uma visão mais atenta, porém, a argúcia de alguns arranjos e o modo tantas vezes subtil como o humor e a crítica de costumes emergem em cada verso alcandora os seus porta-vozes ao estatuto de autores de uma música popular urbana que não pode deixar de ser levada a sério. Sobretudo nenhum outro artista vivo se poderá orgulhar de ter acumulado um tão vasto património de canções cheias de personagens e lugares castiços relacionados com a cidade do Porto. Quando o Conjunto António Mafra se formou, no já distante ano de 1958, o termo "pimba" ainda não fora crismado e o que dele haveria em embrião sabia rir de si próprio e não tinha ainda a obsessão do lucro. Estava longe de ser a indústria que é hoje e mantinha intactas as suas ligações originárias à boémia e à vida de bairro.
A própria génese da banda é disso exemplo: segundo rezam os anais, o acorde inaugural terá acontecido numa noite de São João, em plena toca preferida daqueles sete indefectíveis foliões, mesmo junto à Torre dos Clérigos (onde mais poderia ser?), e cujo nome era, por si só, um programa: o Cantinho da Rambóia. "Ai, cachopa, se queres ser bonita/arrebita, arrebita, arrebita" - foi com este refrão, que não haverá hoje portuense que não conheça, que o conjunto alcançou o seu primeiro grande êxito. Sempre sob a condução de António Mafra (desde a primeira hora compositor e letrista) na guitarra portuguesa e Manuel Barros na voz principal, o grupo, numa textura sonora a que se juntavam duas violas, ferrinhos, reco-reco e bombo, foi construindo uma carreira prolífica bem expressa na profusão de EP que foram saindo, sobretudo na década de 60. Esses, que são objectos hoje em dia de colecção e que só se poderão encontrar numa daquelas lojas que vendem discos vintage.
A edição em 1994 desta colectânea em CD, integrada na colecção O Melhor dos Melhores, permitiu trazer às novas gerações o reportório do conjunto. O alinhamento de 18 temas, invariavelmente alicerçados em ritmos populares como o vira, a chula e o corridinho, pode ser resumido a duas palavras-chave: brejeirice e rapioquice. Rima e é verdade. Desde o incorrigível namoradeiro de Ora vejam lá (que tem uma rapariga para cada dia da semana, e que, depois de andar no sábado com "a Olga", ao domingo está "de folga") até à sátira de costumes em Menina não saia só (a "gola alta" e o "joelho tapado" deram lugar à "saia curta" e à moda teddy-boy...), passando pelas delícias do São Martinho em Abre a pipa, ó Beatriz ("ele tem para nos dar/nozes, castanhas e vinho") e O vinho da Clarinha (que animava "toda a malta" e punha o pessoal a "cantar em voz alta"), sem esquecer os animais a protagonizarem eles próprios a malandrice (seja o Papagaio da Rita, que fica "à escuta na janela/só para ouvir os rapazes que lá vão falar com ela", ou o Pato da pena preta, que há muito "arrasta a asa/à pata da pena branca"), os motivos para sorrir, dançar e festejar são inúmeros.
Com a morte de António Mafra, em 1977, o grupo acusou o embate e foi-se lentamente eclipsando, até que, em meados da década de 80, um convite para tocar no concurso 1, 2, 3, da RTP, foi o balão de oxigénio de que a banda precisava. Nos últimos 15 anos, o grupo, mesmo que despojado de alguns elementos da formação original, tornou-se uma presença incontornável nas festas de São João. Sempre que o povo se aglomera em obediência a tradições ancestrais, a música do Conjunto António Mafra é muitas vezes a melhor receita para animar as hostes. E eles não se fazem rogados, ignorando o peso da idade, quais Rolling Stones da festança...

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