Singularidades do caso português

Peões continuam em perda

Em Portugal já há experiências bem sucedidas de "acalmia de tráfego", mas elas estão em grande minoria. E a tradicional falta de civismo não explica tudo

Em Portugal já começa a haver experiências que visam pôr peões e veículos em pé de igualdade, mas quem assim pensa ainda está em minoria. Entre eles está João Sousa Marques, membro do Conselho Superior de Obras Públicas, um engenheiro e docente que tem estudado as relações entre a psicologia do comportamento e a engenharia civil. É autor de uma das primeiras experiências portuguesas deste novo tipo de vias urbanas. Foi ele que, em 1984, no seguimento de grandes cheias que ocorreram em Cascais, concebeu o troço da Marginal fronteiro ao Hotel Baía, transformando-a numa estrada empedrada que ao mesmo tempo é passeio. "Desde então não me lembro de ocorrer ali qualquer acidente mortal", diz.
É um conceito novo em Portugal. As experiências mais próximas daquilo a que se chama as "self-explaining roads" ("estradas auto-explicativas") poderão intuir-se na Rua das Portas de Santo Antão (pedonalizada), em Lisboa, na estrada que atravessa Cantanhede - que recebeu revestimentos e cores diferentes - ou na zona histórica, fechada e de piso incómodo, do centro de Évora.
"A ideia subjacente a estas teses, e que ainda está a ser testada, é a de que a estrada, ou a rua, deve denunciar os riscos possíveis aos utentes. Se a engenharia induzir - por exemplo, estreitando a via ou criando sinuosidades - uma noção de risco compatível com o que pode acontecer, deixam de ser necessários sinais de trânsito", refere este especialista em segurança rodoviária, autor do livro "Engenharia de Segurança em Áreas Urbanas - Recomendações e Boas Práticas" - o único conjunto de regras sobre este tema disponível em Portugal.
Para outro especialista, o professor do Instituto Superior Técnico Fernando Nunes da Silva, a experiência holandesa "pode ser aplicada entre nós". Com a democratização do acesso ao automóvel, o aumento da potência dos seus motores e da sua velocidade, procuraram-se técnicas para optimizar e tornar mais rápida a sua circulação - são os "relevés" nas curvas ou os sinais de trânsito.

Uma sinalização anárquica"Criou-se uma situação em que só se consegue regular um comportamento do automobilista compatível com a circulação de muita gente em ambientes urbanos, criando uma floresta de sinais. Mas esse efeito regulador só funciona quando é excepção à regra. O sinal de trânsito deve ser pontual, minoritário. Quando se torna a regra cria-se um mecanismo de alheamento", afirma.
"Hoje, propõe-se um novo desenho das vias interiores, tendo em conta a sua envolvente, criando-se obstáculos visuais em que o modo de circulação seja induzido pela própria infra-estrutura. É um modelo exequível de "traffic calming" ["acalmia de tráfego"] que deve começar nas zonas residenciais onde se concentrem actividades à margem da via de circulação", refere o especialista em transportes.
O mais conhecido - e atacado - instrumento de acalmia de tráfego usado em Portugal é a rotunda. "É um instrumento muito eficaz, se for bem feito e se for usado em locais não frequentados por peões", diz o especialista em transportes José Manuel Viegas.
No entanto, o Código de Estrada promulgado nos anos 80 do século XX, consignando a prioridade à direita em todas as circunstâncias, veio tornar mais perigosa a utilização das rotundas.

Rede viária por hierarquizarO caso português oferece bons argumentos contra o predomínio da sinalização repressiva. O leitor que conduza provavelmente já se deparou com sinalizações bastante diferentes para as mesmas situações na mesma estrada. Sabe porquê? Porque os sinais rodoviários mudam de distrito para distrito consoante os humores dos respectivos directores de estradas.
"Em Portugal, a sinalização é mais para ser interpretada do que para obedecer, porque está muitas vezes mal feita", comenta José Manuel Viegas.
"Os condutores captam apenas uma pequena parte da informação dos sinais, não a conseguem assimilar toda. Se substituirmos essa sinalização repressiva por estreitamentos da via, rugosidades do piso, diferentes texturas e cores do betume, por exemplo, conseguindo comportamentos mais calmos, estaremos a fazer melhor", acrescenta. "O condutor mede mal o risco de atropelamento. Mas se sentir que o carro não pode andar depressa, ele ajusta-se rapidamente a uma velocidade segura", refere.
A propósito, este especialista refere como se conseguiu reduzir o tráfego automóvel no Bairro do Arco do Cego, também em Lisboa. "O sistema de sentidos únicos tornou o bairro num labirinto que só quem lá mora sabe percorrer. Não há trânsito a atravessá-lo e hoje é possível às crianças brincar na rua."
Tanto Viegas como Sousa Marques sublinham uma falha grave no sistema de estradas português: a ausência de hierarquização da rede viária, que definiria as estradas prioritariamente para automóveis, as estradas para automóveis e peões e estradas prioritariamente para peões. Se tal acontecesse, cada via seria formatada consoante a sua função.
Um exemplo flagrante desta falta de organização viária é a Av. Central de Chelas, em Lisboa, desenhada como um troço de auto-estrada, mas absurdamente sujeita à velocidade de circulação urbana de 50 km/hora.
Na Suíça, por exemplo, há dez anos que foram estabelecidos três níveis de velocidade para as vias urbanas: 50 km/hora nas estradas principais, 30 km/hora para as secundárias e 10 km/hora para as que atravessam bairros.
Alguns dos técnicos ouvidos pelo PÚBLICO, mesmo quando favoráveis a este tipo de experiências de "acalmia de tráfego", advertem que elas "têm a ver com um nível de civismo muito diferente" do português.
"Não se afigura conveniente pensar-se que, se a sinalização deixasse de existir, os condutores passariam a ter mais cuidado. Pelo contrário. A estratégia não deverá passar por uma progressiva abolição ou diminuição de sinalização, mas sim por medidas que incentivem ao seu respeito, a par da intensificação da educação cívica e rodoviária", diz, por seu lado, o consultor rodoviário Sérgio Pessoa.

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