Se SMN de 1974 tivesse sido sempre actualizado à taxa de inflação, já seria de 508€

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NFACTOS/FERNANDO VELUDO»

Foi um estudo que traduzia padrões de consumo de 1969 que fundamentou o salário mínimo nacional em 1974. Investigadores vão calcular um novo "rendimento adequado"

Em 1969, o Governo de Marcelo Caetano fez um estudo que enumerava os bens e serviços a que um trabalhador não qualificado deveria aceder para obter um "mínimo social compatível com a dignidade humana". E qual o rendimento necessário para o conseguir fazer. Pensava-se já que era preciso definir um salário mínimo nacional (SMN). Chegou-se então a um montante que viria a servir de fundamentação à definição do 1.º salário mínimo - mas que só seria aprovado em 1974, depois da Revolução, e que seria fixado em 3300 escudos. Hoje, "o que se entende por SMN é, em grande medida, uma actualização, usando a evolução dos preços, desse trabalho feito em 1969", diz José António Pereirinha, presidente da direcção do Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG). Ora "os padrões de consumo de 1969 não têm nada que ver com os de 2012".

Aliás, diz Pereirinha, se tivesse sido simplesmente actualizado pela variação dos preços, o SMN de 1974 teria chegado em 2010 aos 508 euros mensais. Só que em 2010, o valor do SMN era, na verdade, de 475 euros ilíquidos. E hoje é de 485. O investigador apresentou ontem os seus cálculos, em Lisboa, num congresso no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.

Em 2006, Governo e parceiros sociais assinaram um acordo que previa que até 2011 se atingissem os 500 euros de SMN. Isto por se considerar que o que estava em vigor era "demasiado baixo". Não chegou a acontecer. Mas qual é, afinal, o valor mínimo necessário para viver com dignidade em Portugal? Serão os 421 euros mensais que em 2010 definiam tecnicamente a linha de rendimento abaixo da qual se entra nas estatísticas do pobres? O valor do SMN (431 euros líquidos) em vigor desde 2011? Os 207 euros de pensão social? Ou qualquer semelhança entre isto e as necessidades básicas das pessoas é pura ficção? Investigadores da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa estão a ouvir famílias de norte a sul do país. Objectivo: quantificar qual é o "rendimento adequado a um nível de vida digno". José Pereirinha é o investigador principal desse projecto.

Trata-se, em grande medida, de replicar algo que já foi feito. Só que a última vez que se fez algo parecido foi há 30 anos. Os investigadores esperam que o valor que vierem a apurar para o "rendimento adequado" possa ser utilizado como referência para os governos na hora de estes definirem as pensões mínimas, o salário mínimo ou o montante das prestações de combate à pobreza. Ou na hora de avaliar quantas pessoas são, de facto, pobres. Isto num momento em que muitos defendem que é preciso aprender a ser mais pobre.

"Reconheço que este estudo surge numa altura um bocadinho perigosa, porque as pessoas tendem a dizer "Pois, estamos em crise", e têm mais dificuldade em afirmar o que é que consideram um rendimento adequado. Mas o mínimo adequado, para viver condignamente, é o mínimo adequado. Não baixa por estarmos em crise."

O contínuo e o chefe

Para além do estudo de 1969, outros houve. Antes e depois. Em 1952, por exemplo, as Companhias Reunidas do Gás e Electricidade encomendaram um trabalho para perceber qual era o "nível de vida razoável". Até que ponto os seus empregados o teriam? O montante a que chegou, para diferentes categorias profissionais (porque se considerava que o mínimo varia conforme as categorias sociais), incluía em todos os casos alimentação, habitação, distracções e férias, vestuário e cuidados de higiene. Um chefe de secção precisaria de quase seis mil escudos para uma família de quatro pessoas - o correspondente, em 2010, a 2426 euros, tendo em conta a variação dos preços ao longo de 50 anos. Um contínuo, com família idêntica, não mais de 2201 escudos - 1304 euros em 2010.

A última vez que se tentou aferir quais eram e quanto custavam as necessidades básicas dos portugueses foi nos anos 1980 - naquele que foi considerado o primeiro grande estudo sobre pobreza no país. Na altura, o objectivo da equipa de Alfredo Bruto da Costa, que Pereirinha também integrava, era, precisamente, procurar saber qual o valor que deveria definir a linha de pobreza - quem não tivesse rendimentos desse montante deveria ser considerado pobre.

Depois de estimar, com a colaboração do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, o custo de uma dieta alimentar considerada adequada, considerou-se que para uma família de dois adultos e duas crianças, por exemplo, o montante de 25 mil escudos/mês era a "despesa mínima" necessária nos centros urbanos; e que nas zonas rurais esse valor descia para 18.200 escudos. Resultado: em 1980/81, 35% dos portugueses eram pobres, à luz destes critérios. Em 2010, se estes montantes fossem actualizados, estaríamos a falar de 1237 euros por família, e um agregado que tivesse menos do que esse valor por mês seria considerado pobre.

Para Pereirinha, a forma como oficialmente "a linha de pobreza está a ser traçada é puramente estatística e não serve as necessidades das pessoas". Em 2010, por exemplo, a linha de pobreza monetária calculada de acordo com os critérios do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Eurostat era de 421 euros mensais. Mas para chegar a esse valor ninguém foi saber se chega para comer, pagar casa, medicamentos, ou vestuário. Basicamente, essa linha de pobreza é traçada desta forma: calcula-se a mediana do rendimento do país e diz-se que está abaixo do limiar de pobreza quem tem menos de 60% desse valor. É assim que se afirma que, há dois anos, 18% dos portugueses eram pobres (ver textos nestas páginas).

O valor do "rendimento adequado", a que Pereirinha conta chegar com o projecto de investigação em curso, terá, acredita, grande relevância para a medição da pobreza - o economista não sabe se revelará que, afinal, há mais pobres do que se pensava, mas admite que sim. Aliás, este estudo surge, em primeira instância, como resposta a uma resolução da Assembleia da República, de 2008, que recomendava ao Governo que definisse um novo limiar de pobreza.

Os mimos e a dignidade

Como está a equipa a trabalhar? Com a participação da população e de peritos. "A primeira ronda de trabalho já foi feita: constituímos grupos de discussão com população de três concelhos do país (Vila Franca de Xira, Vila Nova de Gaia e Beja). Foram nove grupos de trabalho e colocámos a todos as mesmas questões. O que é que se entende como o mínimo que dê dignidade ao ser humano? Quais os itens que devem ser satisfeitos para que esse mínimo seja alcançado? Em cada concelho há um grupo de idosos, um grupo de pessoas em idade activa sem filhos e um grupo de pessoas em idade activa com filhos. As conclusões a que já chegámos é que o mínimo é mais do que o mínimo de subsistência, as pessoas sentem que o adequado deve conter aspectos como vida cultural, segurança... A fase seguinte será listar mesmo os bens: bolacha Maria, cem gramas; 1kg de bife de 15 em 15 dias; quantas vezes é que se muda de sapatos por ano..."

Mais grupos serão constituídos e o grau de pormenor pedido será cada vez maior. Pretende-se que haja gente de diferentes classes sociais e níveis de escolaridade. Tudo isso vai ser quantificado e valorizado aos preços correntes. Um grupo de peritos vai analisando os resultados.

"Por exemplo, quando as pessoas disserem "A dieta alimentar deve ser assim", vamos pedir a peritos em nutrição que opinem. E pode haver algumas correcções. O estudo feito em 1969 também partiu de grupos, de mesas-redondas, só que em vez de ser com a população eram técnicos e peritos que discutiam se a pessoa há-de ter um par de sapatos ou dois."

No fim, o "rendimento adequado" para os diferentes tipos de família será apresentado ao público. "Não significa que o Governo não possa dizer que as condições económicas do país não permitem que seja esse o valor" do SMN, por exemplo." Mas é diferente saber que é esse valor a que se deve aspirar, diz.

Pereirinha não esconde o entusiasmo de um trabalho no qual participa ainda a Rede Europeia Antipobreza de Portugal e que tem como consultores a economista Manuela Silva, co-autora do estudo coordenado por Bruto da Costa, em 1985, Eduarda Ribeiro, co-autora do estudo de 1969, e uma equipa da Universidade de Loughborough, no Reino Unido. "Numa das reuniões, uma pessoa dizia que na dieta alimentar das crianças não devia entrar o Bolicao. Mas alguém respondeu: "Mas eu gosto de dar, de vez em quando, um Bolicao ao meu filho. É um miminho." A questão é: um miminho é uma necessidade? Sim, é uma necessidade, não é um luxo, não é supérfluo. É viver com dignidade."

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