Onde está a liberdade?

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Paolo Taviani, o mais novo dos irmãos, diz que o filme se pode resumir em torno de uma ideia simples: "a arte como invenção da liberdade" MIGUEL MANSO

César Deve Morrer veio trazer aos irmãos Taviani um novo, e inesperado, fôlego. É um filme peculiar: Shakespeare representado numa prisão, por presos condenados por crimes graves.

Os irmãos Paolo e Vittorio Taviani (nascidos em 1931 e 1929, respectivamente) têm uma obra iniciada nos anos 60, conduzida sempre a quatro mãos. Nas décadas de 70 e 80, com títulos como Padre Padrone ou A Noite de São Lourenço, viveram o momento mais alto em termos de reconhecimento crítico e público internacional, sendo presenças recorrentes nos palmarés dos grandes festivais. Quando esse tempo parecia passado, e os irmãos vinham alinhando títulos com pouco ou nenhum impacto ao longo das últimas décadas, César Deve Morrer veio trazer-lhes um novo, e porventura inesperado, fôlego, confirmado pelo Urso de Ouro no último Festival de Berlim. É um filme peculiar: Shakespeare representado numa prisão, por presos condenados por crimes graves. E é quase um ovo de Colombo, na maneira como a peça - Júlio César - cria tensões e reflexos entre o seu objecto e a condição e biografia dos seus actores. Enésima reinvenção do neo-realismo, num filme que, como Paolo Taviani, o mais novo dos irmãos, nos diz, se pode resumir em torno de uma ideia simples: "a arte como invenção da liberdade".

Para começar pelo princípio, uma pergunta sacramental: como é que deram com esta prisão onde se representa Shakespeare, e como é que perceberam que havia ali um filme para fazer?

Foi um amigo nosso que nos convenceu a ir à prisão de Rebibia, que é uma cadeia de máxima segurança perto de Roma. Queria que víssemos um grupo de presos a recitar passagens do Inferno de Dante. Há lá um homem notável, Fábio Cavalli, que tem impulsionado este tipo de actividades culturais, e sobretudo teatrais, entre a população prisional. O nosso primeiro contacto foi a propósito de Dante, mas sabíamos que no "repertório" havia também tragédias shakespeareanas. Júlio César, de certa maneira, foi uma escolha natural, porque é uma peça que lida com muitos temas que se relacionam directamente com a vida e a experiência daqueles presos. É importante realçar que não são santos nenhuns, estão ali por alguma razão. A maior parte tem ligações à Máfia, cometeu crimes de sangue, viveu histórias da máxima brutalidade e violência.

Não sendo uma experiência inédita, esta "devolução" de Shakespeare a um elenco de não-actores para uma representação popular, ainda que de uma população muito específica, talvez renove, ou reafirme, alguma coisa do poder daquelas palavras. Concorda?

Sobretudo, descobrimos que ouvir os presos a falarem com sotaque - há muitos que falam com sotaque napolitano, sobretudo os que vêm da Máfia - ou mesmo no dialecto da sua região de origem, não só não traía o texto como lhe trazia uma outra dimensão. Essa marca regional sublinhava e reforçava a apropriação do texto por parte deles, completava a sensação de que pelas palavras de Shakespeare havia ali uma dose muito grande de expressão pessoal.

Muitos terão vivido histórias semelhantes, pelo menos na coloração, à da narrativa de Júlio César. Traições, conspirações, assassínios... Ou a questão da "honra", que é fundamental nos códigos da Máfia... Teve a sensação de que, mais do que apenas "expressão pessoal", havia ali, da parte de alguns deles, uma forma de, chamemos-lhe, autobiografia?

Não, isso acho que não. Não confundiam a vida deles com a vida da peça, nem dissolviam a sua identidade na das personagens. Tivemos uma prova muito clara disso naquele momento, como uma sessão de casting, em que os presos se apresentam e se candidatam a um papel na peça. Tínhamos-lhe dito que não precisavam de dizer o nome nem de onde vinham, que podiam inventar tudo, dar outra identidade, outra origem. Pois bem: todos eles disseram o seu nome verdadeiro, todos eles deram os seus dados reais. Penso que não se tratava, mesmo na representação, de se tornarem em "outros", mas antes pelo contrário de afirmarem a sua individualidade. Estamos aqui, existimos, estamos vivos.

A questão da "liberdade", que também é um tema da peça, torna-se neste contexto algo de profundamente rico...

Ah, sim, e creio que em última análise é mesmo um tema fundamental do filme. Aquela última frase, dita por um dos presos depois da representação: "esta cela torna-se agora uma verdadeira prisão". Também é um confronto entre a realidade e a imaginação, e aliás foi por isso que escolhemos usar o preto e branco em conjunção com a cor. Através da imaginação, e da experiência da arte, passa-se ali a um certo grau de libertação espiritual. Que não tem, julgo, apenas que ver com a sua condição prisional, mas também com a própria história da sua vida. Como se a arte fosse uma descoberta tardia, que se tivesse vindo mais cedo, antes da prisão, talvez pudesse ter feito da vida um coisa diferente.

Uma "invenção da liberdade"?

Sim, creio que em parte, sim, é o tema do nosso filme.

Tirar Shakespeare dos palcos consagrados e atirá-lo para o "real" é como reconhecer-lhe atributos populares. Em Inglaterra, por todas as razões, sabemos que Shakespeare faz parte do léxico popular. Mas, em Itália, isto é assim?

Ah não, de maneira nenhuma. Não creio que Shakespeare seja conhecido para além dos meios cultivados, intelectuais. Se o nosso filme puder contribuir para uma redescoberta de Shakespeare ficaria contente. Por acaso, recentemente, um jornal italiano começou a distribuir como bónus uma série de representações de Shakespeare, por actores italianos. E o primeiro DVD dessa série foi precisamente o Júlio César, talvez por o nosso filme ter reavivado o interesse por essa peça em particular. Ficaríamos muito contentes se o filme tivesse este efeito.

O texto de Shakespeare têm inúmeras conotações políticas intemporais, e pode-se dizer que, para além de tudo o resto, entre o essencial dele está essa vibração política quase abstracta. Era importante para vocês manterem essa dimensão? Já referiu a "liberdade", que continua a ser, e talvez cada vez mais, uma questão política...

Sim, era importante, mas não de um modo expresso e muito menos à procura de metáforas da situação política italiana contemporânea. Em Itália, claro, houve gente para encontrar a metáfora óbvia: como Berlusconi ainda estava no poder e o filme se chamava César Deve Morrer, lemos algumas interpretações que defendiam que o que nós estávamos a dizer era que Berlusconi "devia morrer"... Mas evidentemente não era nada disso, esse tipo de leitura nunca nos passou pela cabeça, nunca nos interessou.

O vosso filme, assim como o de Ermanno Olmi, Il Villaggio di Cartone, também estreado no último ano, mostra que algo da tradição neo-realista ainda subsiste no cinema italiano.

Eu penso que o neo-realismo do cinema italiano foi uma das grandes contribuições da Itália para a arte em geral, durante o último século. E fez do cinema uma das máximas expressões da arte e da cultura italianas. Não penso que, como ideia, esteja a morrer. Há muitos jovens cineastas italianos muito válidos. Mas na prática é cada vez mais difícil concretizar as ideias. Em Itália é cada vez mais difícil haver dinheiro seja para o que for, muito menos para o cinema. Como aqui, em Portugal.

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