Caminhos e interrogações de uma compositora visionária

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Em Ce désert est faux, espectáculo de homenagem a Constança Capdeville, António de Sousa Dias evoca alguns dos caminhos e interrogações de uma compositora visionária.

Constança Capdeville (1937-1992) foi uma figura singular da música portuguesa do século XX, deixou forte marca em todos os que a conheceram e com ela colaboraram. Compositora, pianista, percussionista e professora, é autora de uma obra de rara sensibilidade que espelha a sua reflexão estética sobre a relação entre a vida e as artes, desenvolvida através de uma pesquisa constante da dimensão sonora, corporal, gestual e literária da obra. A sua produção tem sido pouco visível, até porque muitas das criações cénico-musicais são difíceis de reconstituir, mas a sua vocação multidisciplinar não podia ser mais actual. No ano em que faria 75 anos e em que passam 20 desde o seu desaparecimento, o Festival Música Viva quis prestar-lhe uma homenagem, que toma forma no espectáculo do dia 23 (às 17h, no Centro Cultural de Belém) intitulado Ce Désert est faux. Segue-se o lançamento de mais um número da revista Glosas, dedicado à compositora, e uma conversa com o público.

O desafio foi lançado por Paula Azguime e Miguel Azguime, fundadores da Miso Music, ao compositor António de Sousa Dias, discípulo dilecto e colaborador de Capdeville. "Certas obras da Constança fazem todo o sentido em serem apresentadas em espectáculo. Ela tem peças que se podem ouvir num concerto tradicional mas parecia-me estranho que ao homenagear uma pessoa que tanto repensou o conceito de concerto se optasse apenas por uma espécie de procissão de peças", explica Sousa Dias. Pensou então num alinhamento que tivesse uma lógica de espectáculo, incluindo páginas da compositora e um excerto do filme Rosa de Areia, de António Reis e Margarida Cordeiro, onde ela também entra. "A forma como as obras vão ser apresentadas remetem para espectáculos criados pela própria Constança em aspectos como o movimento e a interacção em palco, ainda que com uma certa liberdade", refere Sousa Dias. "A condução do espectáculo desenrola-se da boca de cena para o ciclorama e caminha para um certo despojamento, que é também uma referência ao Don"t Juan, a sua anti-ópera." Durante esse percurso será possível ouvir obras como Di lontan fa specchio il mare (Joly Braga Santos, in Memoriam) (1989); Amen para uma Ausência (1986); Momento I (1974); Border Line (1988); Valse, Valsa, Vals; Keuschheits Waltz (1987); Um Quadrado em redor de Simbad (1988) e Vocem meam (1986).

A interpretação é da responsabilidade do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa (dirigido por João Paulo Santos), que toca algumas das obras que a compositora lhe dedicou, e de antigos membros do Colecviva, agrupamento dedicado ao teatro musical criado por Capdeville em 1985. É o caso de Luís Madureira (voz), Carlos Martins (saxofone), João Natividade (movimento), Pedro Wallenstein (contrabaixo), Nuno Vieira de Almeida (piano) e do próprio Sousa Dias, a quem cabe a direcção.

"O título Ce désert est faux não foi escolhido por acaso. Surgiu num espectáculo do Colecviva intitulado Para um Stabat Mater. Um dos andamentos chama-se Désert e entre parêntesis tem o subtítulo Ce désert est faux, uma frase de Paul Éluard e André Breton", diz Sousa Dias. "A expressão "este deserto é falso" parece-me adequada não só como referência à Constança e a dois autores que lhe são caros, mas também porque pode ser adaptada ao contexto actual." Considera Portugal "um país com grande riqueza patrimonial e artística" pelo que "é inadmissível quererem-nos fazer crer que é um deserto, que nada aqui acontece, que tudo pode ser desbaratado." A frase assume um sentido de posicionamento. "É a minha opinião pessoal, mas creio que a Constança não estaria em desacordo até porque a frase seguinte, "as sombras que escavo deixam transparecer as cores como tantos segredos absurdos", pode continuar a ler-se em função da nossa situação."

O trabalho desenvolvido por Capdeville ficou na sombra durante anos após a sua morte, embora com excepções pontuais e alguns estudos como o livro de Maria João Serrão Constança Capdeville: entre o teatro e a música (CESEM/Colibri, 2006), mas na opinião de Sousa Dias nota-se agora um novo interesse da parte dos mais jovens. "Sempre tive a percepção de que o que a Constança estava a fazer no seu tempo só teria um real impacto em Portugal ou só poderia ser plenamente assimilado pelas novas gerações que contactassem com outro tipo de postura face ao espectáculo, ao concerto e ao conceito de obra. Várias coisas que ela fazia, mesmo na situação de teatro-música, já se situavam numa área próxima da instalação e da multimédia". António de Sousa Dias, que tem escrito música para cinema - Natureza Morta-Visages d"une Dictature ou 48 da sua irmã Susana Sousa Dias - e se tem dedicado à composição electroacústica, bem como a projectos na área da criação musical e ambientes virtuais, diz que estamos perante outras formas, práticas e conceitos, onde já é segura a saída da sala de concertos. "Hoje com o auxílio da tecnologia alguém que queira fazer música não precisa de passar pelo instrumento, não precisa de saber música para a fazer e para a produzir. Isto configura toda uma nova situação que era já um pouco a água em que a Constança se movia."

Outra vertente marcante de Capdeville situa-se no campo pedagógico. "Ela pautava-se por um princípio de liberdade, que se afastava da maiêutica das relações com o mestre. Não deixava apenas que as perguntas emergissem para depois ser um mestre que vai guiando o discípulo. A sua postura é interessante até porque é descrita claramente em Le Maître ignorant de Jacques Rancière, na medida em que era um exercício de inteligência a inteligência e de liberdade a liberdade." Sousa Dias sublinha que era também "uma forma de desenvolver a capacidade para enfrentar o imprevisível." Por isso o seu encontro com a compositora foi tão marcante. "Ela dizia a sua função era partir as muletas para que a pessoa tivesse de se enfrentar a si própria e fazer o seu percurso. Nesse sentido a Constança ainda tem muitas cartas para dar."

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