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Julio Ramón Ribeyro (1929-1994) permaneceu inédito em Portugal até ao ano passado; A Palavra do Mudo é o seu segundo livro a chegar-nos, pela Ahab, que editou também Prosas Apátridas

Ficção

As tentações do fracasso

Colectânea de contos escritos com mão de mestre: melancólico e singular catálogo de náufragos da vida. José Riço Direitinho

A Palavra do Mudo

Julio Ramón Ribeyro

(Trad. Tiago Szabo)

Ahab

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O peruano Julio Ramón Ribeyro (1929-1994), que segundo palavras de Vargas Llosa é "um escritor magnífico, um dos melhores da América Latina", manteve-se inédito em Portugal até ao ano passado. Prosas Apátridas, que a Ahab editou em 2011, foi a estreia de Ramón Ribeyro no nosso país - uma impressionante colectânea de textos difíceis de catalogar nos habituais géneros literários, textos que não têm um território literário próprio, por isso "apátridas". Peruano, Ribeyro viveu em Paris desde o início dos anos 60, foi jornalista e mais tarde adido cultural junto da UNESCO; escreveu alguns romances (Crónica de San Gabriel tornou-se uma referência da literatura latino-americana), um diário íntimo intitulado La Tentación del Fracaso, e várias colectâneas de contos, género que manobrou e dominou como poucos.

A antologia A Palavra do Mudo (primeiro volume de dois) recentemente publicada - um bom exemplo do singular universo literário de Ribeyro, que oscila entre a ironia e um aparente pessimismo - compila 13 contos com base em sete colectâneas (a primeira datada de 1958 e a última de 1992). O título (que é o mesmo da colectânea, em castelhano, dos contos completos do autor) justifica-o Ramón Ribeyro numa carta ao seu editor, notando que nas suas histórias se ouve a voz daqueles que a vida privou da palavra, "os marginalizados, os esquecidos, os condenados a uma existência anónima". E, de facto, depois de ler estes contos agora traduzidos, é essa a sensação com que se fica: são histórias de gente da classe média empobrecida, os "remediados" de antigamente, os náufragos da vida, os excluídos da festa, aqueles para quem estar vivo pouco mais é do que um acto de solidão. A personagem do conto Uma aventura nocturna - história de um homem que numa madrugada tenta seduzir a dona de um café, mas que no fim acaba tão envergonhado "como se um cão lhes tivesse urinado em cima" - sintetiza esse universo, o dos que vivem mergulhados na solidão, na pobreza e na melancolia: "Aos quarenta anos, Arístides podia considerar-se, com toda a razão, um homem excluído do festim da vida. Não tinha mulher nem namorada, trabalhava na cave da conservatória do registo civil passando certidões e vivia num apartamento minúsculo na avenida Larco, cheio de roupa suja, móveis estropiados e fotografias de artistas coladas na parede (...). É que Arístides não era apenas a imagem moral do fracasso, mas o símbolo físico do abandono: andava mal vestido, com a barba por fazer e cheirava a comida ordinária, a pensão de quinta categoria" (p. 79).

Os restantes contos não se afastam deste ambiente e, curiosamente, as personagens principais são sempre homens que trazem a marca da solidão. Em Explicações a um agente de polícia, um indivíduo alcoolizado descreve os sonhos de uma noite em que se tornou milionário. Há um outro, em O professor substituto, a quem o destino oferece um lugar como professor da História, o seu sonho de vida; mas que devido à sua timidez e falta de auto-confiança se vê impossibilitado de entrar na escola. Em Espumante na cave um funcionário da reprografia do Ministério da Educação comemora num intervalo para almoço, no seu cubículo na cave - de onde pela janelinha se viam "sapatos, bainhas de calças, algum cão que parava diante da clarabóia, espreitando para o interior e alçando uma pata para urinar com dignidade" -, as bodas de prata do seu emprego, e convida então colegas e superiores para uma taça de champanhe, mas as manifestações de sabujice e de falsa amizade não demoram a surgir. Em Ridder e o pisa-papéis (talvez o conto mais estranho e o menos conseguido de toda a colectânea) um homem atira fora um pisa-papéis que é encontrado, do outro lado do mundo, pelo escritor que mais admira.

Há nos protagonistas de Ribeyro uma óbvia impossibilidade de reconciliação com o mundo, que, e ao que consta, também existia no próprio autor. O texto que abre a colectânea, Só para fumadores, o mais longo de todos - um elogio do tabaco a fazer lembrar Fumo Sagrado (Quetzal, 2009), do cubano Guillermo Cabrera Infante -, desvia-se da linha dos restantes contos: assume o seu evidente carácter autobiográfico. A voz do narrador é neste texto um eco da do autor, e este serve-se daquele para, entre baforadas de fumo, reflectir sobre a sua partida para a Europa, Paris, o jornalismo, as relações afectivas, e o cancro do pulmão.

A Palavra do Mudo, com a sua escrita escorreita e clássica, é um delicioso e melancólico catálogo de náufragos.

Ensaio

A aventura de transformação do mundo

O pensamento actualíssimo de Ernesto de Sousa sobre a arte numa edição brasileira com alguns inéditos. Nuno Crespo

Oralidade, futuro da arte? e outros textos, 1953-87

Ernesto de Sousa

Escrituras

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São muitos os temas que atravessam a produção artística, crítica, ensaística e intervencionista de Ernesto de Sousa (1921-1988) e esta nova edição brasileira tem o mérito de reunir os textos, alguns deles publicados pela primeira vez em livro, que dão conta da variedade e da polimorfia do vocabulário e da visão do autor. Descobre-se nesta edição que o programa estético de Ernesto de Sousa, que se proclamou "o mais moderno dos portugueses", era sobretudo a ambição de uma maior liberdade para a arte e para os artistas, retirando a experiência estética da prisão do estilo, do formalismo, do cânone. E é em função desta exigência de uma maior liberdade - por vezes revolucionária - para pensar, fazer e ver arte que deve ser lida e vista toda a sua obra.

A premissa, como tão bem a apresenta José Miranda Justo no brilhante texto introdutório deste volume, é a de que "a arte é uma inteligência das coisas", e é esta inteligência que Ernesto de Sousa desenvolve. Em muitas ocasiões, os seus textos parecem ser comentários desenvolvidos no contexto da sua actividade de crítico de arte, mas uma leitura mais profunda revela um pensamento próprio que importa explorar.

Num dos textos centrais desta antologia, provavelmente o mais citado e comentado de todos, Oralidade, futuro da arte?, Ernesto de Sousa parte da averiguação da possibilidade de haver um sentido conjunto para a arte moderna (p. 26). A resposta que encontra revela não só o que foi o modernismo, mas também o seu entendimento do futuro da arte: "Não é fácil tentar uma apreciação geral da modernidade em arte - para em seguida abordar os temas de uma perspectiva de futuro. Em primeiro lugar, porque aquilo que podemos entender por arte moderna é uma realidade necessariamente múltipla e contraditória" (p. 24). Multiplicidade e contradição que não abalam as conquistas da arte, mas fazem dela o terreno próprio da transformação do mundo. Que a arte deve poder transformar o mundo é, aliás, o fio subterrâneo que alimenta e percorre toda a sua obra: "Numa época em que, segundo uma fórmula célebre, se trata de "suprimir a filosofia, realizando-a", ou ainda, em que "já não tem sentido interpretar o mundo se não transformando-o", a obra de arte deveria trazer em si própria essa capacidade directa de transformação" (p. 27). Não se trata de salvar o mundo, a vida e os homens, mas de dar a ver a realidade e agir nela. Trata-se de uma revolução estética e não de uma ideologia política. Os seus inspiradores são Joseph Beuys, o Fluxus, Tristan Tzara, e a sua ambição é fazer da arte um grito humano: "Foi necessário assistir a toda esta agonia (aparente) da arte, para lhe compreendermos o carácter e as virtudes exclusivas. Agora a obra de arte tem que voltar a ser o verbo original, ou o grito - como diria Raul Brandão - responsável e comprometida com a sua própria aventura inauguradora do mundo. Concretamente, a obra de arte terá de voltar a ser a palavra que rompe o silêncio entre mim e outrem. Isto significa, efectivamente, uma volta à oralidade, que a civilização das bibliotecas e da imagem-rainha longamente rompeu" (p. 35).

Este ímpeto revolucionário não é sinónimo da produção de manifestos ou programas políticos e estéticos, mas tem na redescoberta do silêncio a sua melhor e mais forte expressão: "Falamos na redescoberta do silêncio original e do seu rompimento como o verdadeiro motor da expressão. Aquilo a que se tem chamado a arte moderna tem sido sobretudo o esclarecimento dos mecanismos da expressão. Esse esclarecimento atinge um clímax quando compreendemos a identidade profunda dos gestos e das palavras: a palavra é um gesto e a sua significação um mundo. Restará agora meditar sobre o silêncio. O que é o silêncio original? É o silêncio que há entre mim e outrem" (p. 34).

E é neste espaço entre um e o outro que se pode desenvolver toda a arte, toda a poesia, todo o sentido. Uma meditação sobre o silêncio que surge como uma espécie de regresso à origem, ao primordial, à força primeira. Esta preferência pelo primitivo expressa em Ernesto de Sousa não um gosto etnográfico ou popular, mas a sua exigência de realismo em arte: "O realismo primitivo não tem nada de fabuloso ou de quimérico. É um mundo de evidências, reveladoras do homem a si próprio, da existência objectiva da natureza; e de uma misteriosa necessidade de comunhão do humano com o natural. Os mitos e os ritos das sociedades agrárias constituem uma pre(s)ciência destas descobertas fundamentais", escreve em Conhecimento da arte moderna e popular (p. 58). Defender a arte popular é defender uma forma de fazer arte que está mais próxima da vida e, sobretudo, uma arte mais expressiva que está sempre a começar: "Uma das principais características de todo e qualquer artista popular é este sentimento de um começo absoluto, de uma imediata e total produção de si próprio nas coisas externas (...). A arte popular é mais expressiva do que formal, o seu ímpeto significante sobreleva a harmonia significativa dos seus diferentes elementos (o formalismo é-lhes completamente alheio). É regional e particularizante, e a sua beleza é característica e não canónica" (p. 60).

Para lá da evidente actualidade destas observações, o que ocupou Ernesto de Sousa foi o contínuo sublinhar da urgência da revolução estética, a qual mostrou sempre não ser uma revolução das artes, mas uma transformação do homem, como frisa em "Estou convencido de que não há se não uma revolução total": "Temos de transformar o mundo (...). Para transformar o mundo, precisávamos de nos transformar a nós. Temos de fazer estas duas coisas, imperfeitamente, mas com um objectivo limpo" (p. 113).

O diabo em pé

Portugal já teve o seu Pussy Riot: odiava a fornicação entre Estado e Igreja e pagou por isso. Rui Catalão

Religião, República, Educação

Tomás da Fonseca

Antígona

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"É tempo de lançar o gorro ao ar, de falar alto e dizer tudo". Era uma vez um país chamado Portugal onde a relação entre Estado e Igreja era tão pornográfica (ou mais ainda) como aquela a que por estes tempos assistimos em outras terras. E também Portugal teve o seu Pussy Riot: chamavam-lhe "o diabo em pé". Tomás da Fonseca (Mortágua, 1877-Lisboa, 1968) integrou uma linhagem de escritores que, ao longo da história da cultura portuguesa, conseguiu aliar a coragem física à coragem intelectual. Antes, durante e depois da Primeira República, como deputado, polemista ou dissidente político, atrás das grades ou à frente delas, assumiu uma causa: a defesa de um Estado laico, expurgado da influência da Igreja, quer sobre a vida pública, quer sobre a educação. Defendeu também o lugar das mulheres na sociedade em coisas tão simples como escolas mistas e em que as professoras pudessem dar aulas a rapazes, ou em assuntos mais complicados como a pedofilia na Igreja - um tabu que tornou público em 1912, numa sessão da câmara dos deputados (p. 83). Acima de tudo, era alguém que acreditava no poder da crítica, da oposição, do contraditório como instrumento de dinâmica civilizacional.

Nesta recolha de textos e discursos produzidos entre 1905 e 1962, Tomás da Fonseca exprime todo o seu entusiasmo pela libertação e a educação do povo. E, com não menos paixão, o ódio aos jesuítas e à Igreja em geral, sem deixar de ser um crente e conhecedor do pensamento religioso. Para perceber o escritor há que conhecer primeiro o homem, e Religião, República, Educação arranca com um prefácio muito bem documentado do organizador do livro, Luís Filipe Torgal, que contextualiza o autor naquele período bastante complexo da vida política e social portuguesa, a que se segue um comovente texto autobiográfico, Bíblia do povo. Evangelho dum seminarista. Tomás da Fonseca foi um dos mais públicos detractores das visões de Fátima (tema que explorou nas suas cartas ao Cardeal Cerejeira, em Na cova dos leões, também editado pela Antígona), mas o seu inimigo principal era a ignorância, "mãe de todas as misérias e o número dos tolos é infinito, como afirma o Eclesiastes". A sua defesa dos iconoclastas que assaltavam igrejas para destruir as imagens de santos, em A providência em cacos, pode ser deplorável para a preservação do património, mas é uma jóia de paródia retórica em que mostra como se destroçam as teses taumaturgas usando os mesmos argumentos de quem acredita em milagres: "E foi a estes cacos, a estas ripas e a estes farrapos que nós tantos anos rezámos e pedimos, que tantas vezes festejámos com sacrifício de tempo e dinheiro, que em tantas festas transportámos aos ombros, pedindo que nos levassem as maleitas e nos mandassem chuva! Foi diante desses monos, sem pés e sem cabeça, feitos a enxó ou a cinzel, que nossos pais se rojaram, prometendo o que tinham (...) para morrerem pobres e doentes, cheios de medo e de remorsos."

O panfletário é menos interessante do que o polemista, e na série de diálogos entre o Manuel e o João (o professor e o lavrador), Tomás da Fonseca usa de pedagogia. Isso não o impede de escrever tiradas deliciosas. A propósito de um leilão de altares: "O Senhor do Passos, que tão venerado era pela alta-roda, e tão milagroso se mostrava, deixou-se arrematar por 2$50 réis."

É uma prosa enxuta, colorida e viril, de uma modernidade que anuncia o modernismo. O estilo de Tomás da Fonseca é um património de clareza e desassombramento, que legou ao uso do português. O discurso que fez no Senado em 1917 contra as congregações religiosas pode ter sido um manifesto de "sectarismo impenitente, desprovido de bom senso", como acusou o deputado Carvalho Mourão, mas a pilhéria com que relata a concorrência entre publicações religiosas é um hino à plasticidade, ao encanto da língua: "O Mensageiro [do Coração de Jesus] viu, desde logo, a sua existência ameaçada, o seu passado glorioso desfeito por quem agora vinha excedê-lo com maior cópia de graças distribuídas, porque viu toda a sua existência em todos os lugares e a todas as horas, a grosso e a retalho, a pronto pagamento e até mesmo a crédito, coisa que jamais acontecera em casos desta natureza, porque a Igreja é cautelosa. E então viu-se o seguinte: em vez de três ou quatro milagres que costumavam ser distribuídos mensalmente aos leitores do Mensageiro, começaram a aparecer 10, 15, 20 e 30. Esses milagres não vinham com indicações precisas e nomes claros, mas que diabo, eram milagres."

Tomás da Fonseca era um iconoclasta, mas Raul Rego fez dele um belo retrato: "Alto, entroncado, as barbas abraâmicas ao vento, as abas do casaco soltas, havia quem fizesse figas como se ali fosse o diabo em pé; mas muitos o olhavam com a admiração enternecida de quem vê um homem entre os pigmeus, um homem livre numa sociedade que não é capaz de se desprender das ideias obedienciais que a manietam e amesquinham".

Não sei se os Sermões da Montanha ou Como se fará a revolução têm hoje a mesma urgência, mas, pela forma como o povo é invocado, momentos há em que dir-se-ia tratar-se de uma escrita do sagrado, por alguém que acreditou no poder messiânico da palavra: "Querem-te deformado, querem-te submisso, para que tu não possas e não saibas erguer a enxada contra eles, sempre que vão bater à tua porta, hoje para levar o pão da tua mesa, amanhã o sossego do teu lar, depois a inocência de tuas filhas e por fim, e sempre, a única razão de ser da tua vida - a esperança de seres livre. E assim tu, que julgavas ser alguém, não és afinal coisa alguma, visto que nem mesmo de ti és. (...) Sem saberes ler, sem teres direitos, sem teres terra, sem teres nada; tu, assim, nem Homem és. E não sendo tu Homem, ó exilado, ó mártir, como hás-de ser Povo (...)? Porque o Povo, para o ser, há-de ser soberano, e tu és apenas a cabeça vazia de um torturado e de um vencido, o cordeiro faminto que agoniza entre um rebanho submisso e fustigado. Povo chamamos nós àquele que manda, jamais ao que é mandado" (p. 155).

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