A menina corria, corria, e a escritora escrevia, escrevia

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Hélia Correia Nasceu em 1949, em Lisboa, e cresceu em Mafra. Começou por escrever poesia, com O Separar das Águas, em 1981, e escreveu também teatro. Com Lillias Fraser, de 2001, ganhou o prémio Pen. O seu mais recente romance é Adoecer (2010), sobre Elizabeth Siddal (1829-1862), figura do grupo de artistas britânicos conhecidos como Pré-Rafaelitas. Vive entre Lisboa e os arredores de Sintra com o poeta e dramaturgo Jaime Rocha. O terramoto de Lisboa numa gravura de Georg Ludwig Hartwig, 1887 Bettmann/CORBIS

Atrás de Lillias Fraser, romance de 2001, voltamos ao século XVIII, fugimos por campos de sangue na Escócia, passamos por Lisboa, o mundo cai e reconstrói-se. No sexto artigo da série, visitamos a casa de Hélia Correia, onde as paredes falam e a inspiração não passa de moda

O chá é servido, acompanhado de queijadinhas de Sintra, biscoitos de espelta e bolachas escocesas, numa pequena sala. Da janela, vêem-se apenas folhas de árvores, que agora abanam com o vento de uma súbita tempestade de Agosto, e rapidamente se esquece que, um pouco mais à frente, fica a estrada, e que afinal Lisboa não está tão longe.

Nas nossas costas, os olhares de George Eliot, Jane Austen, as irmãs Emily, Charlotte e Anne Brontë, Virginia Woolf, com aquela inteligência e um certo desafio que ficaram para sempre nos retratos.

Foi nesta sala - a salinha inglesa - que Hélia Correia um dia viu uma menina de cabelos loiros, olhos também amarelos, muito magrinha por baixo de uma camisa de dormir. Precisava de ajuda. Corria.

"(...) Vemo-la fugir na sua fuga de criança, destinada a fazer-se sentir naqueles que devem estar, naquele momento, a perdoar-lhe. (...) O vento norte investe contra os troncos e atravessa a sua camisinha, fura-lhe a pele, como essa baioneta que vai abrir o estômago do pai. (...) Parece que aquele chão se fartou dela, de observar o medo humano uma manhã inteira, porque a empurra como se ondulasse, ferindo-a um pouco mais, mas devolvendo-a à estrada, em baixo. E pensa que a salvou." (págs. 8, 9)

Com aquela menina nos braços, Hélia Correia começou a escrever. Por vezes, escrever queria dizer esperar. E Hélia Correia jardinava com a menina e tomava conta dela enquanto tratava dos gatos. Vivia com ela e quando, muito tempo depois, terminou o livro - era noite e estava numa casa de família na aldeia - pensou com alguma tristeza que agora não tinha mais em quem pensar quando se deitava à noite.

No entanto, o fim do livro não queria dizer que a história da menina tivesse chegado ao fim ou que tivesse deixado de existir Lillias Fraser. Era esse o nome da menina: Fraser de apelido - apelido de clã escocês -, e de primeiro nome, Lillias, com três ll.

L de Lillias

Talvez Hélia e Lillias sejam sangue do mesmo sangue. Há, na família de Hélia Correia, um baú com uma gaita de foles. A mãe gostava de contar que um familiar aventureiro tinha viajado para a Escócia e raptado uma mulher. Isso explicava porque é que tantas mulheres na família, incluindo Hélia, eram altas e louras. A mãe de Hélia Correia, por mais que admirasse a cultura britânica, continuava a ser sentimental e quando na rádio começava a ouvir-se gaita de foles, Hélia sabia que teria de se retirar. A mãe ficaria a chorar e a lembrar-se da gaita de foles nas mãos do avô, à frente de grandes procissões a lançar aquele som tão poderoso que parecia respirar de outro lugar que não o pulmão de um homem.

Mas quando Hélia Correia foi à Escócia pela primeira vez não encontrou Lillias Fraser e nem sequer se encontrou a si própria. Esteve só um dia em Edimburgo e não se sentiu bem.

Voltou depois com o namorado (o poeta e dramaturgo Jaime Rocha) numa peregrinação intelectual, seguindo o itinerário de uma viagem feita pelos irmãos Dorothy e William Wordsworth, e o poeta Samuel Taylor Coleridge. Fizeram uma paragem em Culloden, local de uma terrível batalha que opôs os clãs apoiantes do príncipe Carlos Eduardo Stuart aos ingleses, em Abril de 1746.

"Passara muito tempo. E no entanto alguma coisa que rangia, um desespero, cortava o ar e cintilava à luz de Abril.

Refugiei-me na cafeteria do pequeno museu. Fiquei virada para a entrada principal. Então, vi-os chegar. (...)

Eram uns cinco ou seis mas, ao saírem para a claridade do meio-dia, faziam sombra como um temporal. Desembocavam sobre Culloden e, se em alguns momentos aqueles campos se recordaram da batalha, foi então.

Deixei que entre eles e eu se interpusesse uma distância de delicadeza e apressei-me depois no seu alcanço. O vento e o sol bateram-me na cara e eu defendi-me. Nunca mais os vi, e no entanto era impossível que eles tivessem, naqueles segundos, alcançado o horizonte." (págs. 17, 18)

Nesse dia não viu que nos campos de Culloden corria uma menina. Fugia pouco tempo antes de começar uma das mais violentas batalhas da história das ilhas britânicas, porque aquela menina tinha o poder de prever a morte e já tinha visto o sangue derramado.

Nessa viagem não se encontrou com Lillias Fraser, mas foi nessa viagem que encontrou um pouco de si.

"Estava lá para as Highlands, numa paisagem muito bravia, cheia de urze, muito desolado, pobre, quase sem árvores, só com uns carneiros", lembra Hélia Correia. O chá arrefeceu. O livro Recollections of a Tour Made in Scotland, de Dorothy Wordsworth, está pousado sobre o sofá. Diz: "Lembro-me exactamente do momento em que o senti e disse ao Jaime: "Isto é a minha terra.""

L de Lisboa

Quase no final do jantar, Hélia Correia disse:

- Tenho que ir para o século XVIII, que é um século sobre o qual não sei nada e que detesto.

- Então não vá - respondeu-lhe o historiador João Luís Lisboa, na altura director do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas.

- Tenho que ir, está lá a minha menina - explicou-lhe.

Talvez por causa daquele jantar com o historiador, pouco tempo depois decidiu ir para a Biblioteca Nacional. Disse que precisava de fazer pesquisa sobre a época do terramoto de Lisboa - afinal se Lillias Fraser se dirigia para Lisboa iria chegar pouco antes da terra tremer e Lisboa ficar desfigurada - e a primeira coisa que lhe trouxeram para consultar foi um índice das obras sobre a época pombalina. O índice era um livro tão grosso que Hélia Correia saiu sem consultar mais nada e a partir daí, confiou naquilo que já sabia - todos os relatos que tinha lido de estrangeiros que passaram por Portugal no século XVIII, e que ela tinha coleccionado ao longo dos anos.

Lillias viu o desastre de Lisboa antes de acontecer, claro, e novamente fugiu. Quando chegou a Mafra, Hélia Correia já tinha partido para norte. Tinha pegado no pesado computador portátil e ido para a Irlanda para ficar a escrever em casa de uma amiga poeta. Daí, partiu ainda para Inis Mór, a maior das ilhas Aran, e deixando o computador para trás, escreveu à mão, num caderninho verde:

"Lillias pensava simplesmente que uma casa tão grande como aquela abrigaria todos os fugitivos de Lisboa." (pág. 111).

Lillias entrava no Convento de Mafra quando as ratazanas subiam dos subterrâneos e Hélia Correia regressava à sua própria infância, quando as ratazanas corriam pelos sonhos nos dias em que brincava nos corredores de uma proporção assustadora do convento, onde gostava de espalhar borboletas para ver se aquela solidão tinha "alguma flor".

Muitos anos depois do terramoto, Lisboa ainda não tinha encontrado o equilíbrio, e Lillias seria salva por Blimunda, vinda do Memorial do Convento, de José Saramago.

L de Letra

A luz de Lillias iluminava mais pedaços da vida de Hélia Correia do que aquilo que a própria autora se dava conta. Não terá sido por acaso que escolheu para a capa uma fotografia de uma rapariguinha em camisa, despenteada, com olhos claros, muito luminosos. Hélia Correia não tinha conhecido aquela criança, mas conheceu mais tarde a mulher em que aquela criança se tornou. Não lhe pareceu uma mulher, mas uma fada. Hélia Correia tinha quatro anos e ao aprender as letras com ela, escrever tornava-se um processo mágico.

Talvez por isso, ainda hoje, Hélia Correia não vê a escrita como um esforço, muito menos como um trabalho.

"A palavra inspiração é ridicularizada, mas eu gosto da palavra inspiração: é uma palavra com vitalidade, gera trocas que fazem vida", diz. "Gosto de viver como se tudo falasse, e se esse todo fala tem conhecimentos e experiências que eu não tenho, vai para além de mim. Há grandes obras que são escritas com disciplina e vontade, mas eu não escrevo assim. Tenho que esperar que as palavras venham."

Na casa de Hélia Correia, do lado oposto à sala inglesa há um canto escocês. Aí, pôs uma reprodução de uma pintura em que o poeta escocês Robert Burns é visitado pela figura da inspiração. Vê-se também uma fotografia de campas em Culloden. É nesse cantinho que há-de estar algures a correspondência com uma bibliotecária de Edimburgo chamada Lillias Fraser, Lillias com três ll.

É possível que Lillias Fraser tenha passado a viver perto de Maria Teresa Horta que a fez anjo da guarda da Marquesa de Alorna, e escreveu o seu nome com dois ll, em As Luzes de Leonor (2011). Ou é possível que esteja debaixo da terra de uma aldeia fronteiriça porque depois de ter acabado de escrever o final do livro, em que Lillias se dirige com Blimunda para a fronteira com Espanha, Hélia Correia descobriu uma aldeia onde várias pessoas têm olhos amarelos e podiam ser descendentes de Lillias Fraser.

Mas o mais provável é que Lillias Fraser ainda viva no cantinho escocês de Hélia Correia, observando os gatos por perto no telhado e de vez em quando relendo a letra, pendurada na parede, de Amazing Grace: "Amazing Grace how sweet the sound /That saved a wretch like me./ I once was lost, but now I"m found".

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