A memória é sempre uma escolha

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Jorge Salavisa fotografado na sua casa, onde cada vez mais valoriza o silêncio MIGUEL MANSO

Jorge Salavisa não quer chamar-lhe autobiografia. Dançar a Vida, que chega na segunda-feira às livrarias, é um relato revelador e parcial, como quase tudo o que é escrito em cima da pele.

Era a segunda vez que se propunha a fazê-lo. Houve, por isso, gestos repetidos. Dispôs em cima da mesa as cartas dirigidas às duas irmãs, documentos do banco, a apólice do seguro, cartões pessoais, cheques assinados e o testamento com indicações precisas acerca do que fazer depois. Depois da morte. "Tudo planeado como uma produção de teatro", escreve. O cenário tinha sido cuidadosamente preparado: a banheira tinha água quente, a intensidade das luzes da casa de banho fora reduzida para que as velas que espalhara tornassem tudo mais difuso, e havia dois copos de whisky com comprimidos. "Entro na banheira, bebo o whisky e olho para a lâmina que, desajeitadamente, pedi ao meu barbeiro semanas antes. Que pulso devo golpear primeiro? Hesito, e opto pelo esquerdo. Como é meu hábito, quero fazer tudo como deve ser. Desta vez não posso mesmo falhar." Em seguida o direito. O último pensamento, antes de adormecer, é para uma beleza que hoje lhe parece absurda: "Já posso estender-me numa água que, muito rapidamente, começa a tingir-se de tons avermelhados e lindíssimos."

Jorge Salavisa descreve o episódio em detalhe. Escondeu-o como escondeu a doença e conta-o agora no prólogo de Dançar a Vida, o livro de memórias que chega às livrarias na próxima segunda-feira e que lança oficialmente no S. Luiz, o "seu" teatro, no dia 7. O tempo de espera desta e de outras revelações foi o "tempo justo". O que escreveu é produto de uma memória selectiva que só lembra o que quer lembrar enquanto ele só conta o que quer contar. "Se não tivesse escrito este prólogo, o livro não existiria", dirá mais tarde. Depois dele, tudo parece verdadeiro.

Contra o tédio

Recebe-nos sereno e sorridente. Na estante do hall de entrada da sua casa luminosa, com vista de rio, está arrumada a antiguidade clássica e nela cabem filósofos e generais, poetas e imperadores. Aristófanes, César, Homero, Virgílio, Ovídio, Péricles, Cipião, Agripina e Eurípides lado a lado, incapazes de medir forças com um dos seus maiores fascínios, Alexandre, o Grande (356-323), brilhante aluno de Aristóteles, temido general macedónio e uma das figuras mais apaixonantes do mundo grego. As biografias sobre ele sucedem-se, das mais romanceadas e menos interessantes, como a de Massimo Manfredi, às mais rigorosas e inspiradoras, como a de Mary Renault, passando pela de Roger Peyrefitte, a mais comprometida.

"Alexandre, o Grande, é uma espécie de paradigma da coragem e da beleza, da miscigenação de culturas que sempre me interessou", diz Salavisa. "Depois há o lado da lenda e do folclore que fala da boémia, do cabelo perfeito e do seu cheiro especial, agradável. São muitos detalhes num corpo só." Não são os feitos militares nem o ideal político e cultural da Hélade que o prendem à figura, é tudo o resto. Na história, como na vida, interessam-lhe mais as pessoas do que os projectos. "Hoje olho para trás e vejo que fiz coisas boas e más, como toda a gente. Sei que alguns, poucos eu espero, me acham um vaidoso, um egocêntrico, mas muitas vezes pensei mais nos outros do que em mim e acabei por ficar triste e magoado. Isso acontece sempre que as pessoas que importam me falham."

As 300 páginas de Dançar a Vida (D. Quixote) são escritas na primeira pessoa e, como convém a um livro de memórias, em cima da pele. Lê-las é ter a sensação de que nos sentámos no sofá da sua casa a conversar e que pudemos fazer as perguntas que quisemos, mesmo que Jorge Salavisa, o homem que reconhecemos como director do Ballet Gulbenkian, da Companhia Nacional de Bailado (CNB) ou do Teatro Municipal São Luiz, guarde algumas das respostas para si. Escreveu o livro no ano passado, depois de se demitir da presidência do Opart, o organismo que geria o Teatro Nacional de São Carlos e a CNB. Hoje, aos 72 anos, olha para esse período conturbado, de confronto mais ou menos velado com o sistema e a tutela, com maior distanciamento, e admite que estas memórias foram um escape contra o tédio de alguém que, trabalhando desde os 20 anos, com uma carreira muito intensa primeiro como bailarino e depois como mestre de bailado, professor e director de companhias e teatros, se viu confrontado com o facto de não ter nada para fazer.

De repente, já não tinha nas mãos o destino de dezenas de pessoas, já não recebia mais de 50 emails por dia e a sua agenda já não exigia uma organização ao milímetro. Podia ir almoçar à praia a um dia de semana sem remorsos e a leitura deixara de ser um prazer marginal. O que é que faltava? "Conseguir lidar com um tempo que era sobretudo para mim. Já me tinha esquecido do que era isso." Agora que as suas memórias estão prestes a chegar às livrarias e se sente "nu", como se este registo fosse uma biografia não-autorizada em vez do resultado de uma decisão pessoal, Salavisa já não receia ter tempo a mais. "Estou a aprender a estar sozinho. Leio muito. Tenho ginásio três vezes por semana e fumo dez cigarros por dia, mais uma cigarrilha. Esta solidão não foi uma escolha, foi um processo de vida. Neste exercício de memória para o livro e o documentário, pensei em todas relações lindíssimas que tive - todas alegres, menos a última - e cheguei à conclusão de que não me arrependo de nada."

Dançar a Vida é lançado agora, meses depois do documentário que Marco Martins fez para a RTP sobre os seus 50 anos de carreira, Keep Going. Foi nesse processo de "revisão da vida" que Salavisa descobriu ter em casa, a que era dos pais, mais material do que supunha - recortes de jornais, postais, cartas, programas de sala e algumas fotografias, quase tudo guardado pela mãe, Aline, a quem escrevia com muita frequência. Com mais alguma investigação, acabou por fazer um relato detalhado, com muitas referências a pessoas, datas e lugares. O que ficou escrito, garante, é para ele o mais importante.

A família

E o mais importante começa pela história da família - âncora essencial para Salavisa -, pelos anos que passou em África com os pais e as irmãs (Manecas, a quem dedica o livro, e Peti); pelos tempos de Lisboa com os tios Abílio e Maria José, que lhe incutiram o gosto pela ópera e pelo teatro; pelas aulas com Anna Mascolo, que começou por fazer às escondidas. "Nos anos 60, e numa família como a minha, que dava muita importância às aparências, ser bailarino não era profissão que se tivesse", recorda. "Felizmente os meus pais, sempre generosos, apoiaram-me." Pagaram-lhe viagens a Paris e Londres para estudar, mesmo quando os negócios corriam pior.

Foi em França, nos anos 60, que começou uma carreira internacional que o deixou 15 anos fora do país, muitas vezes em digressões pelo mundo. Primeiro a base foi Paris, com a companhia do Marquês de Cuevas, universo novo e exigente, numa cidade onde cafés como Les Deux Magots e o Flore se tornaram lugares de paragem obrigatória para Salavisa. "Era mágico estar ali a imaginar que naquelas cadeiras se tinham sentado antes a Gertrude Stein e o Picasso, o Nijinsky e o Sartre, a Duras e o Beckett", diz. Nesses tempos era como um operário da dança, trabalhando muito para combater a preguiça que lhe era natural e a falta de experiência. No livro refere muitas vezes as bailarinas-estrela com quem dançou, mas é de Floris, de quem se aproximou na primeira digressão a Cannes, que fala com mais carinho: "Entre os bailarinos havia um jovem Adónis, louro, jovial e muito extrovertido. Possuidor de óptima técnica, viria a ser meu companheiro, irmão, em suma, um dos melhores amigos de sempre. Chamava-se Floris Alexander."

Foi nessa viagem que tomou conhecimento dos massacres da UPA no norte de Angola e da decisão da mãe de permanecer no Uíge, ao lado do pai. É sempre com um "amor imenso" que evoca esta mulher que diz ser o grande pilar da sua vida. "A minha mãe era absolutamente extraordinária, uma força da natureza. A Manecas também é um bocado assim. Tomava as rédeas de tudo, divertia e comovia toda a gente com a sua excentricidade deliciosa. Se hoje sou um excêntrico - sei que sou e às vezes até perco o sono com isso - é porque saio à minha mãe."

É em Paris que Salavisa conhece e trabalha com o coreógrafo Roland Petit, a bailarina Zizi Jeanmaire (musa e mulher de Roland), e Rudolf Nureyev, a quem tece duras críticas. Não se esquece do dia em que o famoso bailarino teve a ousadia de lhe devolver, suja, a roupa de ensaio que lhe emprestara, nem das vezes em que foi arrogante em palco ou num restaurante. De Paris, Salavisa foi para Londres, onde aterrou em Junho de 1963, e sentiu a mudança de cidade quase como um castigo. Os "verde anos" de Paris tinham sido uma descoberta permanente, uma festa, e a capital inglesa pareceu-lhe demasiado cinzenta, embora os anos seguintes no London Festival Ballet, onde dançou até 1972, tenham provado que a cidade podia ser generosa para um jovem bailarino português. Foi enquanto membro da companhia que teve um importante papel na ópera Fausto, de Gounod, e que conheceu Benjamin Britten, numa tarde de Inverno em Veneza, quando o compositor estava no palácio da marquesa do Cadaval.

Mais tarde repetiria o destaque em Hoffmann, com o Scottish Ballet, e Othello, coreografia de Peter Darrel em que Salavisa foi o "sinistro Iago" ao serviço do New London Ballet, companhia em que passou a trabalhar com a prima ballerina Margot Fonteyn, 20 anos mais velha, a partir de 1966. "O "meu" Iago assentava-me como uma luva", escreve. "Sempre sonhara ser um actor sem palavras." Dame Margot viria a ser uma das suas grandes referências.

Um corpo estranho

Quando voltou a Portugal ficou para trás o New London Ballet, onde era mestre de bailado, cumprindo o projecto antigo de deixar de dançar aos 35 anos. Aterrou no Grupo Gulbenkian de Bailado (futuro Ballet Gulbenkian) em 1976, quando Milko Sparemblek, em clima pós-revolucionário, acabava de ser saneado e o ambiente da companhia era péssimo. José Blanco, o administrador, traçou-lhe um quadro assustador da companhia que viria a dirigir, com um elenco desmotivado e a precisar de renovação, cenário idêntico ao que viria a encontrar mais tarde na CNB. "Era um ninho de intriguistas e tinha alguns bailarinos muito maus", recorda. "Mas Graça Barroso era fabulosa."

Nos anos seguintes, Salavisa renovou bailarinos e reportório, teve Vasco Wellenkamp como coreógrafo residente em grande actividade e levou a companhia a digressões nacionais e internacionais, criando um importante Estúdio Coreográfico onde se revelaram nomes como Vera Mantero e Olga Roriz. "Era importante pôr a Vera, a Olga e o Paulo [Ribeiro] a mostrar que sabiam fazer coisas, mas cheguei a receber cartas da administração a dizer que estava a exagerar e que o que estava a mostrar não era dança", acrescenta, lembrando que em 1992 a Gulbenkian equacionava já acabar com o Ballet, o que viria a acontecer em 2005. "Era muito difícil renovar mais com um auditório de 1300 lugares, que exigia coisas para um público mais tradicionalista."

Salavisa deixou a Gulbenkian em 1996 para pegar na CNB, dando início àquele que foi, para muitos, o melhor período da companhia, com coreógrafos como o norte-americano William Forsythe e a belga Anne Teresa de Keersmaeker no reportório, sem deixar de apostar em valores nacionais. "Hoje os bailarinos da companhia são bons e a Luísa Taveira é a pessoa ideal para a dirigir. Espero que a secretaria de Estado [da Cultura] não a deixe cair."

Com a chegada ao São Luiz, em 2001, Salavisa cumpre o seu desejo de pôr fim à sua dedicação exclusiva à dança por volta dos 60 anos. Ter um teatro era um sonho antigo. "Sem falsas modéstias, acho que abri o São Luiz à cidade e fiz dele um lugar onde as pessoas gostavam de estar a ouvir música, a ver teatro, stand-up e, claro, a assistir a espectáculos de dança." Foi no palco deste teatro que a coreógrafa alemã Pina Bausch, sua amiga, dançou pela última vez o impressionante Café Müller.

Quando trocou o S. Luiz pelo Opart, Salavisa mudou-se para o São Carlos. "Ficou tanta coisa por fazer..." Teria gostado de dirigir aquele teatro? "Não, não tenho capacidade para programar um teatro de ópera, não sei o suficiente." A consciência dos limites é uma constante no seu percurso. É por causa desta lucidez que nunca arriscou a coreografia: "Simplesmente não tenho talento. São poucos o que o têm."

É duro nas críticas e generoso nos elogios, mas só quando são merecidos. E isso é verdade para a sua vida profissional e para a privada. É nessa esfera que se concentra agora. Reconhece que está curioso em relação ao que se vai dizer sobre o livro porque nele revela "segredos sérios": a homossexualidade, as tentativas de suicídio, o cancro na glande que temia impedi-lo de ter uma vida sexual activa, e uma "relação difícil que se degradou até ao impensável".

Foi depois de operações sucessivas e da passagem pelo Instituto Português de Oncologia que começou a recuperar. "Houve um menino que me impressionou muito", diz. Viu-o passar e sentiu-se "piegas". "Ele ainda não tinha vivido nada e eu tinha sido muito feliz... Aquele cancro era atroz mas não era o fim."

A morte, garante, não o assusta. "O que me aterroriza é a dor que senti muitas vezes ao longo de todo o processo. Assusta-me olhar para o meu corpo e não o reconhecer, saber que não o posso controlar. Para um bailarino, um corpo que não obedece é terrível. É um estranho."

Amanhã Salavisa não tem horas para acordar nem reuniões agendadas. Tem releituras para fazer. Orlando é um dos primeiro livros da lista.

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