Quase perdemos Detroit

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Em 40 anos, Detroit passou de terra da abundância a ícone da recessão americana. Quando a indústria automóvel extinguiu um milhão de empregos, a cidade não tinha nada para os substituir. Um terço da metrópole está abandonada, mas Detroit procura reinventar-se. Vai ser a próxima Berlim ou Pompeia? Para uma cidade que foi declarada morta, o pulso de Detroit continua forte. Reportagem originalmente publicada na revista Pública, de 22 de Janeiro de 2012

Vai-se a Detroit ver uma cidade morrer.

"Nós éramos mais ricos que Deus nos anos 20", diz Michael Hodges, repórter de cultura do jornal local Detroit News , enquanto vemos a cidade em movimento a bordo do seu carro. "Ninguém tinha visto tanto dinheiro num só lugar." Michael está a exagerar - quem disse que Deus tinha dinheiro? - mas quando o mundo era a preto e branco e em Technicolor, Detroit era o bilhete postal do sonho americano. A cidade de Henry Ford, Meca da indústria automóvel, continha a mão-de-obra operária mais bem paga dos Estados Unidos. O oásis da classe média. "Algures na década de 1910 nós pagávamos cinco dólares por dia nas linhas de montagem. A notícia chegou ao Iémen! Foi nessa altura que a nossa população árabe começou a vir", nota Michael. Dearborn, um subúrbio a oeste de Detroit, contém a maior comunidade árabe nos Estados Unidos.

Os arranha-céus em art déco na baixa da cidade, com os seus átrios insuperavelmente faustosos, são um testemunho desse período em que Detroit rivalizava com o cosmopolitismo de Nova Iorque. Mas não há muito tempo, árvores começaram a brotar do topo desses edifícios. É o que acontece quando uma cidade se esvazia: a natureza vem reclamar o seu domínio.

Jerry Herron, 62 anos, é um homem de uma inteligência espirituosa, o que pode ser confundido com ironia. Quer dizer, o que pensar de um homem que acabámos de conhecer e que vê as horas num relógio de bolso? E o laço. E o fato e colete a condizer, que parecem obra de alfaiate. Tudo isto seria banal em Nova Iorque, mas em Detroit? O Dr. Herron decidiu usar um laço quando concorreu a um lugar na universidade, julgando que isso faria com que fosse mais difícil esquecê-lo. E quando conseguiu o emprego, pensou: por quê ficar só pelo laço? O escritor Tom Wolfe não sabe, mas tem um irmão mais novo em Detroit. Ele vai ali ao barbeiro e já volta. 10 minutos.

Em Março de 2009, uma equipa da televisão chinesa veio a Detroit e convidou Herron, professor de estudos americanos na Wayne State University, a acompanhá-los pela cidade. "Eles queriam ver duas coisas em particular, a estação de comboios e a fábrica da Packard", lembra.

São as ruínas mais icónicas da cidade, que revistas, jornais, televisões e álbuns de fotografia (preço de capa: 50-125 dólares) nunca se cansam de reproduzir.

A Packard é uma antiga fábrica de automóveis de luxo que ocupa cerca de oito quarteirões num ermo da zona leste de Detroit. Encerrada em 1956, foi progressivamente pilhada e vandalizada. Graffiti tomaram conta da fachada como hera. Partes da sua estrutura foram demolidas e os destroços deixados no local. Pilhas de lixo. Como zona de guerra, seria credível.

Por sua vez, a Michigan Central Station é um edifício de 18 andares da autoria dos mesmos arquitectos da Grand Central Station em Nova Iorque. Construída em 1913, a estação encerrou em 1988.

O dilema da cidade é que não existe um cemitério para todas estas carcaças vazadas, ou um parque temático onde os seus habitantes poderiam contemplar o passado e a seguir deixá-lo para trás.

É difícil escapar ao passado quando ele tem 18 andares de altura. "Aquilo nunca mais vai voltar a ser coisa alguma. E, portanto, limita-se a estar ali como um Parténon não-oficial", diz Jerry Herron sobre a estação de comboios. "O Parténon está no topo de uma colina, como um monumento ao prodígio cultural de uma civilização. Os gregos têm orgulho nele e apontam para o Parténon quando falam da glória que foi a Grécia. Não me parece que se possa apontar para a Michigan Central Station da mesma maneira porque não é uma ruína produzida por uma venerável cultura antiga; é uma ruína criada pelas mesmas pessoas que vivem aqui agora. E isso faz dela uma visão assustadora. Muitas vezes, o passado físico de Detroit é um grande fardo."

Mas voltando a Março de 2009, os jornalistas da televisão chinesa pediram a Jerry Heron que se deixasse filmar diante da fábrica da Packard e da Michigan Central Station. E a seguir perguntaram: "Professor Herron, não se importa de nos dizer o que é que um americano sente perante o colapso de toda esta grandeza e grandiosidade?"

Pouco urbanos

Detroit perdeu 25 por cento da sua população na última década, uma queda brutal só ultrapassada pelo caso único de Nova Orleães. Nenhum furacão atingiu Detroit. Alguém escreveu numa ruína da cidade: "Deus abandonou Detroit". Mas quem disse que Deus alguma vez esteve em Detroit? A tragédia de Detroit é uma criação humana. Para onde foi toda a gente? Para o subúrbio. Primeiro (décadas 60-70), porque a população branca não queria viver junto dos negros vindos do Sul rural e segregacionista. E depois porque o subúrbio prometia um estilo de vida mais atraente do que a cidade: casas maiores, com relvado e garagem.

"O que quer dizer que a cidade é apenas uma condição temporária", nota Jerry Hurron. Um meio - ganhar a vida - para atingir um fim - casa própria com vizinhos iguais a mim. "Isso é o que torna as cidades americanas muito diferentes das europeias. Paris, por exemplo: não me parece que os franceses alguma vez tenham ido para Paris pensando no que tinham de fazer para deixar Paris. Pelo contrário: quanto mais perto se está do centro da cidade, mais rica, mais cara e mais gratificante pode ser a vida. Na América, é quanto mais longe se está da cidade. E isto é uma das coisas mais absurdas sobre o nosso urbanismo. Nós não fomos urbanos até ao Censos de 1920. Essa é a primeira vez que a maioria dos americanos vive em cidades de dez mil ou mais habitantes. Em 1950, a cidade é a forma de vida dominante. Em 1970, os americanos tornaram-se a primeira população suburbana na história da nossa espécie à face deste planeta. E, portanto, uma pessoa pensa: nós, americanos, só estivemos interessados na cidade durante um período de 50 anos. Em 1970, as cidades já eram: já tínhamos o que queríamos. Esse simples facto denota um imenso desperdício: construímos estes lugares magníficos com arranha-céus e hotéis e casas e ruas e lojas e cinemas e museus - e depois, em pouco tempo, fomos embora."

Enquanto isso, nos anos 70, os fabricantes de automóveis começaram a deslocar a sua produção para o Sul dos Estados Unidos (onde os patrões não teriam de fazer tantas concessões aos sindicatos porque estes eram praticamente inexistentes), para o México, ou mais recentemente para a China. Ou uma fábrica podia fechar simplesmente por já não precisar de tanta mão-de-obra como antes, cortesia da automatização do trabalho.

"Durante muito tempo, as pessoas não quiseram admitir que o modelo económico que sustentou Detroit terminou por volta de 1970", diz John Gallagher, 62 anos, jornalista de economia do Detroit Free Press e autor de um livro recente sobre o futuro de Detroit (tese: Detroit é a nova Berlim). "A seguir à Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos são o único país que se mantém de pé, e por isso todas as nossas indústrias tinham monopólio em todo o mundo - automóvel, aço, borracha, químicos, tudo. E, naturalmente, a Alemanha acabou por recuperar, o Japão acabou por recuperar e todos estes países começaram a construir as suas próprias indústrias de automóveis e de aço e começaram a reclamar uma parte do mercado às companhias americanas. Para continuar a pagar os benefícios e salários que, por exemplo, a General Motors pagava em 1960, elas teriam de ter mantido o monopólio - 90 por cento ou mais do mercado. Hoje, as companhias americanas têm, no máximo, 50 por cento do mercado. Isso são milhões de veículos por ano que outros estão a vender."

Portanto: Detroit não entrou em crise ontem ou há três anos. Detroit está em declínio há 40 anos. "O Michigan [estado de que Detroit é a capital] tinha uma história de ciclos económicos, portanto quando a economia estava bem, vendíamos milhões e milhões de carros; se havia uma recessão, os trabalhadores eram mandados para casa durante dois meses, mas tudo voltava a ser como antes - e toda a gente esperava que voltasse a ser como antes. Mas ninguém percebeu que não se tratava de uma mudança cíclica, mas estrutural."

Detroit passou os últimos 40 anos em estado de negação até ser sacudida por uma série de choques em cadeia: o colapso do mercado imobiliário (milhões de americanos perderam as suas casas por deixarem de poder pagar a hipoteca), a falência da indústria automóvel e a descoberta de que a população da cidade tinha caído abaixo do milhão de habitantes (714 mil). "Finalmente acordámos", resume John Gallagher.

A bolha do Auto Show

Claro que é possível ir a Detroit e não ver Detroit. Milhares de jornalistas fazem isso todos os anos, em Janeiro, durante o Auto Show, a maior feira automóvel dos Estados Unidos, onde as marcas americanas, europeias e japonesas vêm exibir os seus novos modelos. É uma bolha: durante o dia, os jornalistas são transportados em autocarros dos seus hotéis para o centro de convenções; à noite, são transportados em autocarros para jantares num dos três casinos da cidade, cortesia das companhias de automóvel.

O Auto Show é a prova de que até a indústria automóvel tem o seu star-system - mas aqui o modelo de qualquer jovem industrial de gel no cabelo parece ser um herdeiro Agnelli ou, em todo o caso, um playboy com um belo guarda-roupa. Os jornalistas inspeccionam os carros até ao último parafuso ou aguardam a sua vez para entrevistar o patrão da Ford. Quem é aquele senhor? Não sabemos, mas sabemos que deve ser Alguém Realmente Importante pela forma como todos reagem à sua presença. "É o Allan Mulally", diz-nos o repórter de uma rádio local. "Estou à espera que ele termine o seu momento paparazzi para o entrevistar."

Visto do cima de umas escadas desta espécie de stand automóvel desproporcionado, o jornalismo é um formigueiro.

Mesmo a tempo do Auto Show, os jornais americanos acabam de publicar histórias sobre os sinais de retoma da indústria automóvel nos Estados Unidos: os americanos estão a comprar mais carros (2011 foi o melhor ano em termos de vendas desde a recessão de 2008:12,8 milhões de veículos) e estão a comprar mais carros americanos. A General Motors e a Chrysler, que há três anos entraram em falência, e a Ford, que hipotecou a empresa, tiveram um ano lucrativo.

O estado de espírito em Detroit é optimista. O governador do Michigan, o republicano Rick Snyder, ocupou o pódio do Auto Show para declarar: "Estamos abertos para fazer negócio aqui no Michigan. Passámos um mau bocado, tal como a indústria automóvel, mas estamos a voltar em força."

Bob King, presidente do sindicato dos trabalhadores da indústria automóvel, um democrata que se referiu a Obama oito vezes durante os 19 minutos da sua conferência de imprensa, proclamou: "O facto de a indústria automóvel ter dado a volta é a prova de que podemos fazer manufactura nos Estados Unidos. Durante muitos anos pensou-se que não, que era preciso externalizar a produção. Mas não é possível ter uma forte economia americana sem uma forte base industrial."

Pergunta de um jornalista canadiano: "Quando olha para a sua cidade-natal, que possivelmente vai entrar em insolvência em Abril... O mayor fala de 50% de desemprego efectivo, as ruas sem iluminação, os lotes abandonados... Isto é suficiente para trazer Detroit de volta?"

Bob King: " What brings Detroit back is jobs ."

"A realidade é que o Michigan perdeu um milhão de empregos na última década. Portanto, quando vemos histórias sobre a contratação de mil pessoas, claro que isso são boas notícias mas é preciso relacionar isso com o facto de termos perdido tantos postos de trabalho", nota Tom Goddeeris, arquitecto e director de uma organização comunitária com programas de revitalização urbana no noroeste de Detroit.

Detroit e indústria automóvel sempre foram sinónimas. A indústria está bem, depois de ter sido salva por um empréstimo de emergência da Administração Obama. Mas a cidade? Existe ressentimento em relação à indústria automóvel por não estar a fazer mais por Detroit?

Oh, não, repetiram todos os Detroiters a quem perguntámos - toda a gente deseja o sucesso dos Big Three (os "Três Grandes", como a Ford, GM e Chrysler são conhecidas). Mas Detroit percebeu finalmente que estava do lado errado da história ao deixar que uma única indústria dominasse a economia da cidade.

"O que está a acontecer agora é que a escala da recessão que atingiu o país e Detroit mudou o pensamento das pessoas em relação à forma como vamos sair dela", diz Tom Goddeeris. "Percebemos que não podemos ficar sentados e esperar que a indústria automóvel recupere e empregue aquele milhão de pessoas de volta. Já ninguém pensa assim. Para mim, essa é a maior mudança que ocorreu nos últimos cinco anos: estamos a livrar-nos de algumas das coisas a que estávamos agarrados."

A Padaria Avalon, no centro de Detroit, pode não parecer grande coisa de fora, mas uma vez lá dentro há pain aux noix , pão de sementes, focaccia , café expresso, um portátil Mac aberto numa mesa, um iPad noutra - a Avalon está em Detroit, mas podia estar em Brooklyn. Não é um café a fazer-se passar por uma padaria, é uma padaria: os tabuleiros industriais dominam o espaço, a massa é trabalhada, cortada e pesada à mão, à vista de toda a gente. Há um pequeno balcão do lado esquerdo e três, talvez quatro, mesas. Toda a gente em Detroit conhece a Avalon. Toda a gente sabe que é mais do que uma padaria.

Duas mulheres, Ann Perrault e Jackie Victor, abriram a Avalon há 16 anos. Ann vem buscar-nos à padaria e leva-nos para o escritório e armazém, num prédio ao lado. A conversa vai incluir Jackie, que não está presente, mas fala através do iPhone que Ann colocou sobre a mesa. "A cidade tinha um milhão de habitantes e nenhuma padaria que pudesse merecer essa designação", diz Jackie. Não é que ela e Ann tivessem qualquer experiência comercial ou alguma vez na vida tivessem feito pão. Nos anos 90, Detroit fez uma tentativa para atrair empresas de larga escala para a cidade. O Renaissance Center, um enorme complexo de torres construído sobre o rio, não produziu o renascimento que o seu nome prometia. Ann e Jackie faziam parte de um grupo de activistas liderado por duas figuras lendárias locais, James e Grace Boggs, que nunca acreditaram que essa era a solução para a cidade. A Avalon nasce de um impulso político - servir a comunidade - mais do que de um impulso comercial, dizem. "Já nos anos 80, o James costumava dizer: "Não esperem pelo homem - o que ele chamava o homem - para vos dar um emprego. Criem o vosso próprio negócio. Façam o vosso próprio pão. Arranjem os vossos próprios sapatos."", recorda Jackie, 46. "Isso agora parece óbvio porque a economia não oferece os postos de trabalho que oferecia então. Mas naquela altura acho que as pessoas ainda estavam convencidas de que tudo o que precisavam era de arranjar um emprego numa empresa e o resto acabaria por acontecer."

Ann, 52, intervém: "Noutras cidades, os imigrantes que chegam tipicamente começam pequenos negócios. Penso que isso é particularmente verdade em cidades que não se apoiam - ou que não têm uma mentalidade empresarial."

Durante anos acreditou-se que bastaria chegar a Detroit e que os empregos iriam aparecer do nada porque era o berço da mão-de-obra não-qualificada mais bem paga do país.

"O rendimento familiar em Michigan equivalia a 120 por cento da média nacional", diz John Gallagher. "Há tempos entrevistei uma família que estava a passar por dificuldades económicas. Mas eles vinham de uma família em que, nos anos 60, o pai era canalizador mas toda a gente ganhava bons salários porque toda a economia irradiava da indústria automóvel. A mãe era uma dona de casa que nunca teve de trabalhar. Os seis filhos do casal frequentaram escolas católicas, o que custa mais dinheiro do que uma escola pública, e a família vivia numa casa à beira do lago. E tudo isto só com o salário do pai. Agora é impossível. As pessoas não querem admitir que esse tipo de vida não volta mais."

Ann e Jackie abriram a Avalon num no centro da cidade, num bairro que era um deserto comercial e um notório gueto, com sinais visíveis de pobreza e abandono, problemas de droga. Também era o único lugar em Detroit com serviços de assistência para sem-abrigo, o que significa que havia muitos sem-abrigo nas ruas. Mas Ann e Jackie também sabiam que, demograficamente, era um bom lugar: tinha quatro hospitais, um museu (o Detroit Institute of Arts) e a Wayne State University. Não era por isso que estavam nervosas; mas o princípio de que só usariam produtos biológicos - "Ok, hoje toda a gente faz isso, mas há 16 anos era uma novidade, especialmente em Detroit", diz Jackie - iria obrigá-las a vender um pão mais caro do que o convencional. "O que é que as pessoas vão dizer?" "Bem, o primeiro comentário que tivemos assim que abrimos as nossas portas foi: "Obrigada por abrirem um lugar onde posso gastar o meu dinheiro". As pessoas disseram-nos isso vezes sem conta. O bairro estava tão mal-servido. Existia uma percepção errada de que Detroit não era um lugar para abrir um negócio. Nós não sentíamos isso e acontece que tínhamos razão", resume Jackie.

A Avalon já não é uma ilha. O bairro à volta ainda está em transição - terrenos vagos, comércio intermitente, zonas deprimidas - mas mudou muito (a começar pelo nome: o infame Cass Corridor foi rebaptizado de Midtown). Hoje, a zona oferece lojas de crepes, um restaurante vegetariano, um hotel de charme, uma sala de cinema independente, cafés, um bar de vinhos e, num futuro próximo, um supermercado Whole Foods - uma presença com profundas ressonâncias culturais, já que esta cadeia costuma fixar-se em zonas urbanas com uma população jovem, de bom nível económico e altamente qualificada.

A presença de um Whole Foods é mais importante "em termos simbólicos do que outra coisa", admite Sue Mosey, a mulher que todos apontam como a grande responsável pela transformação de um bairro onde toda a gente quer morar. "É muito difícil para Detroit atrair as cadeias nacionais. Em Midtown temos o único Starbucks da cidade. Havia outros, mas fecharam. Voltei ontem de Nova Iorque, onde estive cinco dias: uma pessoa tropeça em Starbucks, três em cada quarteirão!"

Os três maiores empregadores do bairro - dois hospitais e a universidade - têm investido na sua revitalização, através da compra e reabilitação de espaços residenciais e comerciais. Na última década, estas instituições investiram dois mil milhões de dólares nesta área. E, desde o ano passado, oferecem empréstimos a fundo perdido aos seus empregados que queiram comprar ou arrendar casa em Midtown. A ideia é repovoar o centro de Detroit com jovens profissionais qualificados. O programa tem sido um enorme sucesso.

"Para um prédio com 30 unidades, já temos umas 60 pessoas em lista de espera. Temos uma taxa de ocupação de 95 por cento em toda a nossa área residencial aqui", diz Sue Mosey, directora do programa. "Temos um défice de oferta imobiliária." É uma ironia, numa cidade onde o número de casas desocupadas mais do que duplicou na última década: quase 80 mil unidades em 2010. Um terço de Detroit é composto por casas e lotes de terreno abandonados, uma área equivalente à cidade de São Francisco.

Detroit é bom

Em 2012 não há árvores a brotar no topo dos arranha-céus de Detroit. No último ano, Dan Gilbert, milionário número 293 na lista Forbes dos 400 Americanos Mais Ricos, comprou três deles, bem no centro da cidade.

Em Agosto de 2010, Gilbert mudou a sede da sua Quicken Loans, a maior empresa online de empréstimos hipotecários nos Estados Unidos, e 1700 empregados, dos subúrbios para a cidade. Este Verão, trouxe mais 2000 empregados para a cidade. Ao fazê-lo, Gilbert inverteu a tendência das últimas décadas. O simbolismo do gesto é evidente: como o batedor de campo que vai à frente para testar a segurança do terreno, o objectivo de Gilbert é dizer que Detroit é um bom lugar para investir e encorajar outros a segui-lo.

Em vez de Dan Gilbert, como estava programado, Jennifer, a sua relações públicas, anuncia - sem explicações adicionais - que vamos ter um encontro com Bruce Schwartz. Schwartz estende o seu cartão, que diz "Embaixador de Relocalização em Detroit".

Subimos até ao 10º andar de um edifício onde Gilbert instalou os escritórios da Quicken Loans. Bruce guia-nos até uma parede de vidro com vista sobre a downtown e anuncia, mirando a cidade aos seus pés: "Em tempos, esta já foi a artéria mais activa do mundo. E nós temos planos para ela."

Planos: reabilitar os edifícios históricos recentemente adquiridos e reconvertê-los em espaços residenciais e escritórios para novas empresas focadas em Internet e tecnologia, com espaço comercial na base. Ao mesmo tempo, Gilbert e outros empresários estão a financiar um programa de incentivos inspirado no modelo de Midtown para repovoar a baixa da cidade.

"Dan Gilbert é um filho de Detroit e quer ver esta cidade renascer", diz Bruce Schwartz. Gilbert, 49 anos, é o maior proprietário de imobiliário em Detroit, a seguir à Câmara e à General Motors. Mas ele insiste em retratar o seu recente investimento na cidade como uma causa filantrópica e não como uma oportunidade de negócio.

"Isto é mais uma paixão para ele. "Hei-de trazer esta cidade de volta." Ele quer que isso seja parte do seu legado", diz o seu porta-voz. Quanto dinheiro é que Gilbert investiu na baixa da cidade? Jennifer, a relações-públicas-sombra, intervém: "Não revelamos esse tipo de informação".

"Muito dinheiro!", graceja Bruce.

Gilbert não é o único homem de negócios a apostar na revitalização da downtown de Detroit. Desde o ano passado, existem mais 10 mil pessoas a trabalhar na zona. Nos últimos 40 anos, a procura imobiliária nunca foi tão elevada como agora. A Torre Broderick, até há pouco tempo uma ruína, vai reabrir em Setembro, com mais de uma centena de apartamentos e estúdios renovados. As três penthouses , com um valor de aluguer de cinco mil dólares, já estão reservadas.

É possível que empresários como Gilbert tenham percebido que só têm a ganhar em ter uma cidade - um centro regional - forte. Livonia, Troy, Rochester? Estas localidades não dizem nada a ninguém fora do Michigan. Para situar os seus clientes, as empresas terão sempre de dizer "Detroit". Para o bem e para o mal.

Nos últimos meses, os casos de Midtown e Downtown têm tido ampla cobertura nos jornais locais e nacionais como exemplos de uma nova vitalidade em Detroit. Aparentemente, depois de anos e anos a documentar uma cidade em coma, a imprensa nacional ansiava por boas notícias (se for possível em Detroit, é possível em qualquer lado?).

Só que esta nova Detroit é muito localizada, está a beneficiar pessoas que não vivem na cidade mas nos subúrbios (maioritariamente brancas), e não inclui a maioria da população de Detroit (82% negra).

"O meu receio é que as pessoas pensem que a vida da maior parte dos Detroiters melhorou porque o centro da cidade parece melhor e é um sítio que está na moda", diz Jackie Victor. Ela e Ann são um casal e têm dois filhos. "Criar o nosso filho de seis anos na cidade é completamente diferente do nosso filho de 11. Detroit é um lugar muito melhor para as pessoas da classe média criarem os seus filhos do que era há dez anos. Mas isso é porque nós temos recursos. E vivemos no centro da cidade. Mas para quem vive nos bairros e tem de mandar os filhos para a escola pública, e depende dos transportes públicos, é um lugar muito pior. Qual é a taxa de pobreza de Detroit? Deve ser 60 por cento. A percentagem de iliteracia é pelo menos isso. Eu acho que a estratificação só está a piorar. Existem duas Detroits." No mínimo.

Cidade bizarra

O taxista deixa-nos em Corktown, o velho bairro irlandês, depois de dizer que esta parte da cidade é "assustadora". É verdade que o carro de Michael Hodges foi roubado numa destas esquinas há uns anos. Mas já nem estranhamos a inexistência de pessoas na rua. É uma marca de toda a Detroit. E depois, Michael combinou um pequeno-almoço no Astro, um belo café com croissants e café pingado. Acordámos em Nova Iorque? Não, a grande ruína, a velha Michigan Central Station, domina o outro lado da rua. "Detroit é sexy de um modo bizarro", diz Michael. "Há uma data de miúdos que se estão a mudar para cá, vindos de outras partes do país. Para eles, Detroit é romântica, é uma paisagem urbana que não se encontra em mais lado nenhum. Nova Iorque tornou-se - desculpe a expressão - tão fucking burguesa. E tão dominada pelos obscenamente ricos."

David Lilly, que parece Clark Kent, é um desses jovens. Depois de 15 anos a trabalhar em Nova Iorque como relações públicas no sector financeiro, David despediu-se do seu emprego e mudou-se para Detroit em Outubro de 2010. Como é que os seus amigos e a sua família reagiram à notícia? "Muitos pensaram que eu tinha enlouquecido. E sugeriram: "Não queres ponderar outras cidades?" Os meus pais apoiaram a decisão e perceberam que eu estava determinado. O comentário da minha mãe foi: "Bem, não é o meu sítio favorito, dear ."

David cansou-se do sector financeiro e do Upper East Side de Manhattan, "onde tudo é perfeito e o mundo é irrealmente reluzente e bonito", mas não escolheu Detroit ao acaso no mapa. Ele cresceu numa cidade do Ohio, semelhante a Detroit só que mais pequena, no coração da América industrial. "Durante grande parte dos últimos 100 anos, Detroit foi a quarta ou quinta maior cidade do país e o centro do poderio industrial da América. Nós fomos um país industrial durante a maior parte do último século. O que aconteceu em Detroit em termos do êxodo de mão-de-obra industrial, o declínio do emprego, o esvaziamento da cidade e a migração de pessoas para os subúrbios é algo que cidades como Cleveland ou Milwaukee e outras também estão a confrontar. Talvez Detroit mais do que as outras cidades porque tudo aqui parece ser mais extremo."

David achou que estavam a acontecer coisas positivas em Detroit e queria fazer parte disso - queria contribuir para o renascimento da cidade. Nada em grande escala: talvez baste só viver aqui.

No Verão, começou a frequentar a escola náutica. Está a aprender fotografia. E tem estudado a arquitectura da cidade. "São coisas que sempre me interessaram mas que nunca tinha tido oportunidade de fazer quando trabalhava dez horas por dia segurando um Blackberry o dia inteiro. Este é um período de experimentação para mim. Não tenho um emprego neste momento, mas não me importo. Estava a precisar de uma pausa." David vive no centro da cidade, mas conhece o East Side. Uma manhã, pegou-nos de carro, no seu Chevrolet " made in America" (David tirou a carta de condução aos 16 anos - "porque é isso que se faz quando se tem 16" - e nunca mais pegara num carro até mudar-se para Detroit), e levou-nos ao East Side. Apesar de só viver aqui há pouco mais de um ano, David parece saber porque é que aquela escola fechou ou como identificar uma casa desocupada que não ardeu (uma visão comum) ou não foi entaipada: a caixa de correio está estufada de publicidade.

"As pessoas aqui trabalham tanto como em qualquer parte do país. É uma pena que esta cidade tenha dependido tanto de uma indústria", lamenta.

Mas a cidade ainda tem pulso.

kgomes@publico.pt

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