É fácil partir para uma ilha deserta

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Tavira, uma certa ideia de liberdade associou-se a esta ilha - uns gostam disso, outros não

Quem não sentiu já a necessidade de partir para uma ilha deserta! Pois em Portugal é fácil fazê-lo. Ao longo da costa do continente há oito ilhas de sonho onde se pode chegar, de barco, em 10 ou 40 minutos. Têm praias de areia fina, águas transparentes e poucos turistas. Quase ninguém vive lá, com algumas excepções, dignas de serem contadas. Para todos os efeitos, são ilhas desertas, selvagens e distantes, aqui tão perto. A Pública viajou pelas ilhas continentais portuguesas, começando pelas do Algarve. Na próxima semana continuamos pelas da costa ocidental.

No Algarve, há menos ilhas no mar do que na cabeça das pessoas. É um fenómeno estranho. Não é não conhecerem as ilhas. Conhecem. Mas multiplicam-nas. Dão-lhes nomes diferentes, que pulverizam os territórios. As ilhas são cinco. Mas os algarvios falam de pelo menos oito ou nove. O mapa mental não coincide com o geográfico. Ou coincide - com a sua natureza instável e mutante. Como a realidade geológica não é estável, as pessoas desenham com o traço dos seus próprios percursos o mundo circundante. À ilha do Farol chega-se num barco que se apanha em Faro. Desembarca-se e passa-se o dia na praia, ali perto do bar Mar a Mais, ou um pouco mais para leste. Ao fim da tarde regressa-se a Faro. É a ilha do Farol. Já à ilha da Culatra se chega-se através de Olhão. É outra praia, totalmente diferente, frequentada por outras pessoas. O ambiente é outro, a temperatura da água e as cores. Os sons, os cheiros, os hábitos, as histórias, não têm nada a ver. Outra ilha. No entanto são a mesma.

Alucinação idêntica se passa com a ilha da Armona, que não é outra senão a da Fuseta. Quanto à ilha de Faro, não é ilha, e a Deserta não pertence à de Faro, é antes a Barreta que, essa sim, é uma ilha. Uma confusão. Ou nem tanto. Cada um vê de acordo com a sua condição. Uma cegonha que migra desde o Báltico até ao Norte de África, ou mesmo um maçarico galego que por esta altura chega da Rússia, não têm a mesma perspectiva que um humano apanhador de conquilha. Ou da própria conquilha, ensopada no lodo, já agora. Cada um enxerga segundo a sua conjuntura. O que importa é o equilíbrio do sistema. Que a água flua através das barras, as plantas alófitas fixem as areias, a lama fermente sob a protecção das ilhas-barreira, que desenvolva os plânctones que alimentam os peixes que entram durante a maré alta, e ficam presos nos buracos quando as águas recuam, nos pequenos lagos do sapal, para servirem de pasto às aves que estão de passagem, e aqui nidificam, e que os humanos possam apanhar amêijoas e estender-se nas areias finas e banhar-se nas águas transparentes. Não importa que as ilhas não sejam ilhas. Importa é a harmonia de toda a Ria Formosa, que aliás não é uma ria.

Ilha de Cabanas

É fácil fugir para uma ilha desabitada. Aqui em Cabanas basta entrar num destes barcos pequenos que andam cá e lá. Em poucos minutos estamos numa ilha deserta. Só não o é completamente porque outras pessoas tiveram a mesma ideia. Mas ninguém vive na ilha de Cabanas. Nem mesmo Manuel Macieira, que tem a concessão da praia e dos dois bares - o Cabana da Ria e o Paradise. Ao fim do dia, ele e os seus empregados atravessam para o lado da vila de Cabanas. A ilha, 6 quilómetros de praia e dunas, fica sozinha.

Isso dá-lhe carácter. Bem podem os turistas encher a área de toldos da praia, espalhar as toalhas pelo areal cor de pérola semeado de conchas. E não adianta que esteja à vista, a poucos metros, a outra margem, a outrora aldeia piscatória de Cabanas, agora transformada em vila turística, com as suas mais de mil casas à venda. Uma ilha deserta é uma ilha deserta. Sente-se.

Basta entrar no Cabana da Ria, o bar de ripas vermelhas, todo suspenso em estacas sobre a areia, propriedade de Manuel, e olhar em redor, para as dunas tufadas de arbustos verdes, levemente desfocadas pela brisa. Há qualquer coisa agreste e desabrigada, que fere e seduz no mesmo ápice. Há qualquer coisa. Tinha de haver, não é impunemente que uma ilha é desabitada. Claro que a música do bar ajuda a criar uma atmosfera, mas atenção, não pode ser isso, porque a canção nem sequer é boa. Night night, night inside your eyes, pessoas sozinhas e eu esperando você, canta Ive Mendes, assim mesmo, em inglês e português, uma piroseira, mas, sabe-se lá porquê, perfeito neste lugar. Night night, pessoas sozinhas...

Uma ilha deserta parece sempre desconhecida e distante, mesmo que fique a poucos metros de terra, como esta, e talvez por isso seja difícil imaginar que alguma vez tenha sido habitada. Mas Cabanas já o foi.

Em 1838, após os Liberais terem desfeito o monopólio estatal da pesca do atum, a Companhia de Pescarias Lisbonense criou uma armação para a apanha de atuns ao largo da costa de Cacela. Chamava-se Armação de Cacela, ou Armação da Abóbora, e os seus equipamentos e trabalhadores eram abrigados num conjunto de cabanas construídas na ilha. Ilha de Cabanas, por causa disso. Ou Ilha da Abóbora, como também é designada. Todo esse arraial, que entretanto mudara de proprietário, foi destruído pelo mar em 1962. A armação continuaria activa por mais dez anos, mas a ilha nunca mais seria habitada.

"O mar comeu as casas", conta Carlos Baptista, o presidente da Junta de Cabanas. "Só deixou areia. Mais nada." Carlos, de 58 anos, é professor de Educação Física em Tavira, mas está à frente da Junta de Freguesia há 10 anos. Nasceu e sempre viveu em Cabanas, e lembra-se de ver a ilha mudar. "A areia move-se", diz ele. "É um movimento de poente para nascente. As barras deviam andar no mesmo sentido". Os homens tentam contrariar esta tendência, quase sempre com maus resultados. "As máquinas taparam as barras que se abriram naturalmente. Havia uma em frente a Cacela Velha, a Barra do Cochicho, do nome do primeiro barco que a atravessou. Fecharam-na e abriram outra, mais para cá. A intervenção humana acabou com o ciclo natural."

A ilha está em permanente transformação, segundo um plano mais vasto, bolado seja lá onde for que os ecossistemas são concebidos. Contrariar esse plano é um erro que se paga mais cedo ou mais tarde. "A ilha está mais alta, mas mais estreita. A qualquer momento pode romper", avisa Carlos, que no entanto tem ele próprio um plano nada politicamente correcto para Cabanas: erguer uma ponte.

De madeira, claro. E só para peões. E que fechasse durante a noite, para evitar o vandalismo. Mas uma ponte. Sempre pensou o contrário, mas agora rendeu-se. É um processo mental comum a muitos autarcas e operadores turísticos algarvios: uns imaginam pontes, outros falam de veículos bizarros como teleféricos. Gostam tanto das ilhas, que querem ligá-las a terra - acabando com elas.

À direcção do Parque Natural da Ria Formosa e à Administração dos Recursos Hídricos (ARH) cabem o ingrato papel de serem desmancha-prazeres. Às vezes com algum fundamentalismo, dizem as suas vítimas. Manuel Macieira, o dono do Cabana da Ria, quer transformar o bar em restaurante. Acontece que, segundo o Plano de Ordenamento da Orla Costeira, só é permitido à Ilha de Cabanas possuir um equipamento de apoio do tipo mais simples, que, entre outras restrições, não pode servir comida cozinhada.

"Estamos a privar os turistas do melhor que a região tem para dar", queixa-se Manuel, referindo-se à gastronomia. "Temos todas as condições para montar um restaurante. As pessoas querem comer e estamos a impedi-las, por causa de uma lei caduca. Queremos que nos deixem ter um restaurante, como as outras ilhas". E está a pensar, por exemplo, na Barreta, também deserta, aliás chamada Deserta, que possui no centro um belo restaurante de luxo, o Estaminé.

Manuel, de 48 anos, trabalhava em Lisboa, no BCP. "Troquei a gravata pelos chinelos", diz ele. Agora vive em Cabanas, mas quer que o negócio cresça. "Não nos deixam ter música ao vivo no bar. Só gravada. Quis trazer um saxofonista, não me permitiram. No entanto ouve-se aqui, perfeitamente, a música das festas Manta Beach". É quando o vento sopra de sudeste, o chamado Levante, que a matraca sonora das festas organizadas pela astróloga Maya na praia da Manta Rota vem desonrar a virginal ilha da Abóbora.

Ilha de Tavira

Em frente à ilha de Tavira também houve uma armação de atum - a do Medo das Cascas. José Falcão lembra-se. É de Castelo Branco, mas vem para cá desde os anos 1960, quando casou com uma filha da terra. Depois foi para a guerra em Angola, e nessa altura a sogra descobriu que uma das barracas dos pescadores estava à venda na ilha. Lá do Ultramar ele deu logo autorização para a compra, em 1969. Dois anos depois, veio para cá.

A mulher dava-se mal com as osgas que frequentavam a barraca, e o casal resolveu fazer obras. Hoje é uma verdadeira casa, tal como todas as outras nesta zona oriental da ilha, logo à saída do cais dos barcos que fazem a travessia de meia em meia hora.

Não são casas ilegais, mas o seu estatuto é sui generis. O terreno é público e não pode ser comprado pelos proprietários das habitações, que pagam uma taxa anual por um alvará de utilização. O sistema é idêntico em todas as ilhas, embora com algumas diferenças específicas, nem sempre claras para todas as partes. Neste caso, José Falcão paga 600 euros por ano, sem qualquer garantia de que o alvará seja renovado no ano seguinte. Só a casa, sem o terreno, é propriedade sua, como se estivesse construída sobre o vazio. E com restrições: não a pode vender, apenas deixá-la aos filhos em herança. Só desvantagens. Mas um privilégio ter uma casa na ilha mesmo assim.

José Lucas Falcão, 75 anos, viúvo, coronel na reforma, passa aqui o Verão, sentado à mesa que tem por baixo do alpendre. Antes da morte da mulher, há 17 anos, levantava-se às 6 da manhã e ia à pesca. Apanhava robalos de três quilos e meio, à cana. Agora não. Encontra-se aqui com os amigos, para conversar. José Plácido, 60 anos, professor de Matemática reformado, e Fernando Robles, 74 anos, um militar na reforma que também cumpriu serviço em Angola. José e Fernando passaram aqui a manhã e agora vão fazer o almoço: feijão frade com atum. De conserva.

Por esta hora a ilha já tem muita gente. Os barcos da carreira, que partem de Tavira ou da praia das Quatro Águas, após a extensão de salinas, ou os táxis marinhos, trazem milhares de turistas à ilha, que é a maior do Algarve. Concentram-se quase todos ali na chamada Praia de Tavira, a seguir ao parque de campismo, em frente aos bares e restaurantes. Só alguns caminham para poente, para a Terra Estreita ou o Barril, ou mesmo a Praia do Homem Nu - parece que alguém viu ali uma vez uma criatura nestas condições, e o nome ficou. E o estatuto também, agora legal, de praia naturista. Ignora-se o nome do pioneiro.

Por causa disto e de outras coisas, a Ilha de Tavira tem fama de ser a mais hippie do Algarve. É a ilha dos "friques", tal como a do Farol é dos surfistas, a da Armona das famílias e a da Barreta a dos "betos". Ideias feitas, que mudam mais devagar do que a realidade. De tudo o que muda na Ria Formosa, aliás, as imagens mentais são sempre as mais lentas. Mais do que as próprias alterações geológicas.

Seja como for, uma certa ideia de liberdade associou-se à Ilha de Tavira. Uns gostam disso, outros não, e portanto a filtragem vai-se fazendo, das pessoas como das águas que servem o metabolismo das plantasalófitas. Porém tudo está diferente nos últimos anos. O bar Sal, por exemplo, cujos pufes na areia são agora mobília para a paz da alma, e foi esta semana cenário de filmagens dos Morangos com Açúcar, era conhecido pelos antigos da ilha como o "bar dos drogados". Isto há uns 5 anos.

Sextas e sábados, a Ilha de Tavira era o centro da vida nocturna algarvia. Pelo menos de uma certa vida nocturna, de jovens em fuga dos clubes ingleses de Albufeira, com os seus hooligans e loiras de mini-saia e saltos altos, das mega-discotecas e das festas dos "betos". Era antes a noite das fogueiras na praia, com guitarras e djambés, dos artistas e libertários, ou gente que como tal se sentia, da cerveja e das drogas, geralmente leves.

"Todas as noites havia facadas", é a perspectiva de José Falcão. "Era só whisky e droga. Gritaria e confusão na praia". Campismo selvagem, malucos a vender artesanato, e lixo, toneladas de lixo. Ele e Fernando Robles recordam esses tempos com repulsa. Agora melhorou, mas nunca fiando. Ainda há dias estava um grupo muito esquisito junto aos toldos. "Acho que eram actores de filmes pornográficos", diz José Plácido, um homem tão alto que é conhecido como o Zé Grande.

Uma das raparigas do grupo, conta ele, foi à barraca do massagista. O homem, que era bom profissional, começou a fazer o seu trabalho, ainda que contrariado. Mas ela agarrou-o e, a certa altura - isto narrado posteriormente pelo próprio terapeuta do relaxamento muscular - fez-lhe uma massagem da sua especialidade.

Os coronéis não riem. Estão escandalizados pelo relato do Zé Grande. Robles, um homem que foi condecorado pelos seus actos heróicos em Angola, em 1961, imobiliza-se por momentos, ofendido no íntimo só de imaginar a cena. Uma banhista a massajar o massagista. Que coisa contra-natura.

A verdade é que, em 2007, os abusos atingiram tal nível que o presidente da Câmara de Faro, Macário Correia, decidiu pôr a ilha na ordem. Uma noite, mandou 60 polícias fardados, com shotguns e cães, recorda Isabel Baptista, directora do parque de campismo. "Isto aqui ficou cheio de fuzileiros fardados, a guardar", diz ela apontando para as entradas do parque. "Macário dizia que era por causa do botellón"[nome que vem das rodas de jovens espanhóis que se juntam com álcool nas ruas, mais barato do que consumir nos bares].

Os bares, que ficavam abertos toda a noite, passaram a ter de fechar às 9 horas. O barulho acabou, bem como o campismo selvagem e o lixo. E também a animação da ilha de Tavira. "Até eu que sou cota gosto de me divertir à noite", diz Isabel, de 54 anos. "Quem é que, num fim-de-semana de férias, acaba de jantar às 9 da noite?"

As autoridades reconsideraram, e os restaurantes voltaram a poder estar abertos até tarde. O limite é as duas da manhã, mas fecham todos muito mais cedo, porque não têm clientes.

"Andamos aos poucos a tentar recuperar a ilha", diz Victor Guerreiro, 63 anos, administrador do parque. Ele e Isabel estão emprenhados num difícil equilíbrio: manter a segurança e a limpeza e também o carácter boémio e hippie da ilha. O parque de campismo, o único nas ilhas algarvias (o da Armona não conta porque só tem bungalows), está cercado por uma rede alta e tem à entrada um torniquete controlado electronicamente. Não é propriamente selvagem, tirando o facto de se situar numa ilha, e a poucos metros da praia. Já não é pouco.

Victor tem o projecto de encher o recinto de bungalows, mas a direcção do Parque Natural da Ria Formosa não aprova. Em alternativa, ele e Isabel decidiram alugar tendas familiares, montadas, equipadas com camas, roupa, electricidade, fogão e frigorífico. Custam 60 euros por noite, mas não há hotel que lhes faça concorrência. Quem aproveita, contudo, são os espanhóis, que nesta época ocupam mais de 80 por cento do parque.

O bar, onde se servem refeições e caipirinhas, os restaurantes da praia, o mar de água tranquila e morna onde se pode nadar como se fosse uma piscina sem limites, a Praia do Homem Nu, tudo na ilha respira o mesmo halo de liberdade. Até as casas de alvenaria como a de José Falcão, onde os coronéis passam as tardes de Verão trocando piadas e recordando velhas façanhas de África. Desde 1974 que se juntam na ilha. Em Angola, o então jovem alferes Fernando Robles assistiu aos massacres perpetrados pela UPA [União das Populações de Angola] de Holden Roberto, que marcaram o início da guerra colonial. Acirrado pelas abominações que presenciou, tornou-se num combatente feroz a favor das forças coloniais. Conhecido como o "mata-pretos", integrado nas forças de Caçadores Especiais e seguindo uma filosofia de "olho por olho, dente por dente", chefiou algumas das campanhas mais sangrentas de toda a guerra.

Uma ilha é uma jangada de pedra, solta de amarras, em fuga para a redenção. É um local de recomeço e de inocência. Numa ilha sentimo-nos longe de tudo, mesmo que a terra seja tão convenientemente próxima.

Ilha da Armona

Há 50 anos, não havia casas na ilha da Armona, mas agora parece uma cidade. Num dos lados, note-se. Do outro, o mar levou tudo. Todas as casas construídas desde há décadas na chamada Ilha da Fuseta foram destruídas pelo avanço das águas. Atenção: por muito que custe a tanta boa gente do Sotavento, Armona e Fuseta são a mesma ilha. A metade leste é conhecida como Armona e frequentada pelos habitantes de Olhão. O lado oeste, em frente à vila da Fuseta, é visto como pertencente a esta. Uma e outra povoação colonizaram a ilha respectiva com casas de Verão ou de pesca. Sem querer tomar partido nesta rivalidade colonial, é preciso reconhecer que o além-mar de Olhão tem levado a melhor, por esta razão simples: esse lado da ilha está a crescer e o outro a diminuir.

Na pequena "cidade" da Armona, as casas amontoam-se às centenas, ao longo de uma rua interminável que começa no cais, junto ao Tolinhas Bar, e termina no início da praia, no Restaurante Santo António. O mar ainda fica longe, hoje em dia. Quando o restaurante foi erguido, era mesmo ali. O cimento para a construção foi aliás amassado com areia da praia e água do mar.

O ciclo da erosão e sedimentação joga a favor da Armona nesta área. As casas estão seguras para as próximas décadas, da parte do oceano. Já da parte da direcção do Parque Natural, não se sabe o que vai acontecer em 2013, quando os alvarás caducarem. Mesmo assim, várias casas estão à venda por 150 mil euros.

À semelhança da flora e fauna, também a estética de construção é endémica em cada ilha. Na Armona abundam os azulejos amarelos nas paredes, as composições com conchas e búzios, os jardins de cactos. As casas têm nomes como Vivenda Berbigão, e algumas possuem verdadeiras esculturas nos pátios, como estaespécie de animal mitológico, com pernas em ferro forjado e uma chaminé algarvia a fazer de cabeça.

Há muitas casas na Armona, mas viver, viver, só um homem vive na ilha: João José Tavares, 77 anos, conhecido como o Nocas. Quem tem casa na Armona vai-se embora no Inverno. O mesmo acontece nas ilhas de Cabanas e de Tavira, assumidamente devolutas. João é portanto o primeiro habitante das ilhas que encontramos. Quando todos voltam a Olhão, ele fica cá. Fez esta opção há 50 anos, embora só tenha casa própria aqui há 30, inicialmente de platex, hoje de tijolo. A mulher vive em Olhão. Ele só vai para lá "em caso de doença, ou morte".

Sozinho, cozinha para si todos os dias. Arroz, pão, conquilhas e lulas, um peixe grelhado ou cozido. Ou a sua especialidade: berbigão na chapa. Durante 48 anos foi pescador. Agora, anda à conquilha e à ameijoa, de manhã cedo, enterrado no lodo até aos joelhos. São mais de 7 mil pessoas a dedicarem-se a esta actividade na Ria Formosa. Não contando com os ilegais.

Neste capítulo, aliás, a ria é também um viveiro. Há tantos patifes como bivalves. Em todas as ilhas e canais circundantes, as artes proibidas são as mais apreciadas. O Nocas conhece-as todas, embora só teoricamente. Não é só ele. A ilha está cheia de especialistas, embora este não seja aqui o lugar para denunciar ninguém.

Os "covos", o "arco de corda", a "fisga", o "arco da conquilha", são técnicas proibidas, dominadas com mestria na Ilha da Armona. A fisga inclui uma espécie de garfo com arpões e uma lanterna, cuja luz encandeia os polvos, lulas e chocos, que, apalermados, se deixam espetar pelo arpão. Há também uma técnica para o choco que usa uma garrafa com óleo atada a um pau cuja extremidade fica fora da água. "O choco vem ao cheiro do óleo, e zás, é fisgado". Os "covos" são armadilhas de rede, presas em série a uma corda. O peixe entra por um orifício e não consegue sair. Chegam a apanhar-se robalos e douradas assim. O mar aqui à volta está pejado de geringonças destas, que ninguém sabe a quem pertencem. Na altura de ir recolher as presas é que é preciso ter cuidado. João explica pormenorizadamente a lógica de cada uma das artes proibidas. Algumas apresentam uma sofisticação extrema, enquanto outras são básicas e cruéis. "Andei à fisga com o meu pai desde os 8 anos", conta o Nocas. Mas já antes se dedicava a apanhar minhocas, daí a alcunha. Era bom nisso. "Quando carregavam vendavais, lá saía eu para as minhocas. Chegava a apanhar 9 ou 10 quilos". Cada um tem o seu talento. O irmão mais novo de João especializou-se na pesca à cana e por isso ganhou a alcunha de o "Cana".

João teve quatro filhos, mas só um lhe merece referência, por uma ponderosa razão. "Aquele ali é meu filho e nasceu morto", aponta ele para Henrique, sentado noutra mesa. Henrique Tavares, 41 anos, aproxima-se para confirmar. "Nasci morto sim senhor. Morto como este cinzeiro". Pega com gosto no cinzeiro redondo de vidro do café e toma-lhe o peso, como para demonstrar o seu estado inerte e defunto. "Eu era como este cinzeiro. Depois, com respiração boca a boca, banhos de água quente e fria, ressuscitei". Nasceu em casa. Fez a 4ª classe, depois foi ajudar o pai na apanha do marisco. É o que ainda faz hoje, embora falar do assunto não o entusiasme. A sua história parece reduzir-se ao trauma natalício. Depois disso, nada digno de nota lhe aconteceu. "Eu era como este cinzeiro, e já cá ando há 41 anos", repete ele, triunfante, servindo-se do frio pedaço de vidro como demonstração antonímica da sua própria humanidade.

Ilha da Culatra

A Ria Formosa não é uma ria, é um sistema de lagunas, explica Óscar Ferreira, professor de Geologia Marinha e Dinâmica do Litoral da Universidade de Faro. Quando o mar penetra na zona costeira, afundando-a, estamos em presença de uma ria. "É o que se passa nas rias galegas, ou nos fiordes da Noruega. São vales preenchidos com água. Não há sapais". O que aconteceu aqui foi o contrário. As ilhas formaram-se no mar, desde a última glaciação. As deslocações de areias fizeram-nas crescer e migar em direcção ao continente, tornando-as barreiras naturais que protegem a costa e toda a zona lagunar do sapal. Algo idêntico se passa na costa leste dos Estados Unidos, de Nova Iorque à Florida.

O mar eleva-se e as ilhas sobem em altura e migram para o interior. "Há 10 mil anos estavam mais longe". Em termos geológicos, todo o sistema das ilhas algarvias é recente. Não existe há muito tempo e não durará muito mais. A sua permanência conta-se em dezenas de milhares de anos, não em milhões. E é altamente dinâmico.

"A Ria Formosa tem um processo evolutivo rápido. Nos últimos 50 anos, as ilhas crescerem 3 quilómetros", diz Oscar. "A ilha da Culatra aumentou muito, cresceu para o dobro, em décadas". São alterações visíveis no período de uma vida humana. As pessoas lembram-se de uma ilha ser mais pequena, de uma barra existir noutro lugar, quer por acção humana quer natural. A barra de Faro/Olhão, junto ao Farol, por exemplo, é artificial. Mas passou a canalizar 60 por cento de toda a água que entra no sistema, e que dantes circulava pela barra do Lavage.

Uma alteração destas provoca outras, em todo o sistema, mas nem sempre com a mesma velocidade. O Forte de São Lourenço, que foi construído diante do canal para protecção face aos piratas, tem hoje dunas à frente. E, mais paradoxal ainda, a maioria dos viveiros de peixe que se fixou na zona da barra do Lavage, por a água ser aí mais oxigenada continua lá, apesar de essas condições favoráveis já não se verificarem.

"Há uma capacidade de resiliência no sistema", diz Oscar. Em 1961, por exemplo, houve um ciclone e a Ilha de Cabanas desapareceu. Ficaram apenas alguns bancos arenosos dispersos. Mas os espaços entre si foram-se preenchendo, houve crescimento dunar, e em pouco tempo a ilha tinha-se regenerado. Pensa-se que em 1755 sucedeu algo semelhante. O tsunami galgou as ilhas, afundando-as. Mas elas recuperaram, e em poucos anos tinham reassumido a forma inicial, como se todo o sistema fosse um ser vivo, possuidor uma memória genética. Vai mudando, mas de acordo com um plano próprio, e reage de forma hostil a fenómenos de origem exterior ou antrópica.

A chamada Ilha de Faro é de facto uma península (do Ancão), mas já foi ilha, e as ilhas da Culatra e da Barreta já foram uma só, chamada Ilha dos Cães. No futuro, segundo Óscar Ferreira, todo o sistema, por acção do mar e do vento, tende a migrar em direcção ao continente, obrigando a própria costa a recuar. Mas a costa está urbanizada, pelo que resistirá ao empurrão. A ria e suas ilhas, que se estendem hoje por 18 mil hectares, em forma de triângulo, não terão outro remédio senão encolher, acabando por desaparecer, num prazo de dezenas de milhares de anos.

A ilha preferida de Rafael Rodrigues é a do Farol. "Tem a areia mais fina, água transparente e bronzeia mais. Não sei se por causa do sol ou do reflexo da areia. Mas sabe-se que um dia no Farol bronzeia tanto como três noutra ilha". Rafael tem 40 anos e faz surf desde os 20. Conhece as ilhas como ninguém.

Quando "entra Levante", não há lugar como o Farol. Em dias de "mar de Sul", é preferível Tavira. Ou Fuseta, depende. Ou mesmo a Deserta, do lado de Faro. "Se está mar liso e entra Levante, o mar começa a crescer, então é Tavira". No Algarve, o jogo dos ventos é muito diferente dos do resto do país. A orientação da costa e o sistema das ilhas alteram tudo. "No "mar de fora" a ondulação vem de Sul. A onda é paralela à terra. Levanta e cai toda ao mesmo tempo. Deixa de ter parede, que é a parte surfável. O Levante é vento do Sueste, e as ondas vêm oblíquas. Dão o lado direito ou o esquerdo. Para um goofy como eu, que coloca o pé direito à frente na prancha, é preferível o lado esquerdo".

Na sua lógica de ventos, profundidade do mar e direcção das ondas, Rafael insiste que a ilha do Farol e a da Culatra não são a mesma. Para um surfista, são mundos diferentes. É preciso caminhar pela praia, de um extremo ao outro da ilha, para sentir a sua continuidade. Do lugar do Farol, ao lado do bar Mar a Mais, com o seu toldo de lona branca entrançada, mesas de madeira e espreguiçadeiras, as casas com jardins decorados com âncoras e hélices, até ao lugar da Culatra, cheio de casas, alguns residentes permanentes e até uma escola, passando pelo lugar de Hangares, onde foi construído, durante a I Guerra Mundial, um Centro de Aviação Naval destinado à luta anti-submarinos. Até há alguns anos, os farenses não se aventuravam nesta parte da ilha, pois se dizia que ainda lá existiam minas por explodir.

Ao contrário de Cabanas, Tavira e Armona, a Culatra fica longe de terra. O barco sai de Olhão ou de Faro (no Verão), demora uns 40 minutos a chegar, fazendo duas escalas na ilha, e já não parece que atravessamos um rio, mas um mar. Cruzamo-nos com iates e lanchas no meio da neblina morna e azul, com os contornos de Faro e Olhão ao longe, e por trás a serra.

Ilha da Barreta

De Olhão para a Barreta, também chamada Deserta, pode fazer-se um percurso mais demorado. A empresa Animaris promove viagens até à ilha pelo caminho mais longo, para explorar a ria. Durante duas horas, um barco com alguns turistas mais aplicados peregrina pelos canais do sapal, ilhotas e bancos de areia. Pára para observar as ostras gigantes fixadas no fundo (as carcanholas), as moitas de seba onde vivem as enguias, cujo ruído chama a atenção das cegonhas, que as vêm comer.

Márcio Modesto Alexandre, 38 anos, é o guia que vai apontando para cada ave que surge, informando sobre o seu nome, origem e hábitos. Há 238 espécies de aves nas lagunas, mas mais de 90 por cento são migratórias. "Ali está um macho de garça branca", diz Márcio. "Ali vai uma cegonha. Há 20 anos eram migratórias, agora 40 por cento são residentes. Ali um coelheiro. Vêm da Holanda, nidificam aqui, vão para o Senegal. Olhem, uma alvéola amarela. Aquela gaivota vai mudar de plumagem nos próximos dias. Uma garça real. O macho vai trazer um peixe em troca de sexo. Se ela aceitar o peixe, fazem amor. Se não aceitar, ele espera outra oportunidade, mas não escolhe outra fêmea, porque esta espécie é monogâmica. E ali está um fuselo". Com os seus 40 centímetros, patas curtas e bico comprido, é a ave recordista mundial em distância de voo. Faz mais de 11 mil quilómetros seguidos, sem comer.

Há uma palpitação de vida em toda a extensão silenciosa de águas claras e pântanos esverdeados. A profundidade média da ria é de 2 metros, o que permite a entrada do sol e a formação de um plâncton invulgarmente rico. A lama do sapal, sobreposta em camadas e protegida na sua estabilidade pelo efeito das ilhas-barreira, é das zonas mais produtivas do planeta. "Há milhares de seres vivos por metro cúbico", vai dizendo Márcio.

A Ria Formosa é a maior concentração mundial de cavalos-marinhos, embora sobre eles paire a ameaça da extinção. Já foram 5 milhões, são hoje 300 mil. Uma espécie de ostras vinda do Japão trouxe consigo algas nocivas para os cavalos-marinhos. Já os caranguejos continuam a multiplicar-se. E as amêijoas são as melhores da Península Ibérica, diz Márcio, devido às "plantas alófitas, que resistem à salinidade e pouca oxigenação do solo e limpam a água, segurando os metais. Purificam o oceano".

Márcio nasceu na ilha Valadares, no Sul do Brasil, e talvez por isso se tenha apaixonado tão naturalmente pelas ilhas desta região, para onde veio há 4 anos. Escreveu um romance passado na Ria Formosa no tempo dos Fenícios, intitulado O Guardião das Conchas, e faz conferências explicando a sua tese de que a capital da civilização de Tartessos se situava no Algarve.

É formado em Gestão, mas do que gosta é de História. "Há 3 mil barcos naufragados no mar algarvio", diz ele. Quase todos por explorar.

Na ilha da Barreta, que é o território mais a sul de Portugal continental (no Cabo de Santa Maria) há um restaurante e cinco barracas de pescadores. O restaurante, enorme e chamado Estaminé, é explorado pela Animaris. Situado num promontório da ilha, permite ver água para todos os lados, serve um peixe excelente e caro e contribui para que a Barreta seja considerada pelos surfistas "a ilha dos betos".

O empregado vem mostrar à mesa um robalo fresco e diz que foi apanhado agora mesmo pelo Sr. Alves, o único pescador da ilha.

Francisco Alves, 64 anos, vive numa das cinco casas de madeira azul do lado norte da Deserta. Em tempos houve 47 casas clandestinas na Barreta, mas foram demolidas. Numa delas, Alves tinha uma arrecadação onde guardava os artefactos da pesca. O proprietário da casa doou-lhe por escritura a arrecadação, o que permitiu ao pescador mantê-la, ao lado de outros quatro casinhotos mais pequenos, de outros tantos pescadores.

De início, Alves guardava aqui as coisas, mas ia dormir a casa, em Faro. Depois de vários assaltos na ilha resolveu mudar-se para cá em definitivo. Através de um contrato sui generis com a capitania, e como não tem descendentes, ficou com o direito intransmissível ao usufruto da casa enquanto viver.

E que usufruto. Mal se chega percebe-se que neste lugar alguém leva a vida em cheio. Sob um grande toldo, há uma mesa de madeira com cadeiras, fogareiros de grelhar peixe, panelas de ferro, inúmeras gerinçonças de formas e funções incompreensíveis, cães a vaguear e muita, muita tralha espalhada. Logo à entrada está uma boneca em tamanho natural, um desses manequins das montras de lojas de roupa, com uma peruca negra e um seio ostensivamente de fora da velha camisa aos quadrados que pertenceu ao próprio Alves. Ele encontrou-a há seis anos no lixo, trouxe-a para cá de barco e costuma sentá-la à mesa nas petiscadas que organiza com os amigos pescadores.

Francisco Alves, um homem de cara redonda, cabelo grisalho e bigode como Hemingway, vive na ilha desde 1981. Antes, trabalhou nas obras e numa fábrica de plásticos. A pesca era só um hobby. Mas estava sempre doente. O médico perguntou-lhe: "O que gostas realmente de fazer?"

Largou tudo, construiu um barco e veio para ilha, para se dedicar à pesca em exclusivo. "Patrões nunca mais", pensou. Agora vive sozinho, com o seu trabalho, a observação de pássaros, os seus pensamentos e passeios, as suas invenções loucas. Inicialmente a mulher vinha visitá-lo no Verão. Agora menos porque está doente.

Único habitante da ilha, sozinho durante os longos invernos, tem muito tempo para pensar na vida, mas também em técnicas e métodos aplicados às artes da pesca, que o tornaram num dos melhores.

"Chamam-me a ratazana da Deserta", diz ele. Tem um barco artilhado com os mais sofisticados aparelhos, onde construiu tanques para manter o peixe vivo durante dias, levando-o à lota quando é mais propício. Aprendeu uma técnica para fazer a descompressão do peixe que apanha a mais de 30 metros de profundidade: enfia-lhe uma agulha pelo umbigo, até à bexiga. Com quatro dedos, aperta até sair o ar. Assim evita que os robalos naveguem de barriga para cima e que a bexiga inchada lhes oprima o coração. "Ninguém trata o peixe com tanto carinho como eu".

Alves só pesca de noite, porque há mais peixe e para evitar que os colegas vejam como ele trabalha. Não usa redes. É o homem do anzol. "Na ria, as redes são uma arte assassina. Porque isto é uma maternidade. O peixe vem aqui desovar". As redes apanham os juvenis e comprometem o futuro da pesca, pensa Alves. Tanto pior se forem usadas artes ilegais, como malhas finas ou dispositivos com lanternas. Muitos fazem-no e Alves vive em luta permanente contra eles. A polícia marítima envia fiscais, mas há uma teia de informadores à porta das esquadras, que avisa os prevaricadores.

No mar, há uma rivalidade tradicional entre as gente das redes e a dos anzóis, tal como em terra há entre pastores e agricultores. Mas a Ria Formosa deveria ser o reino do anzol. Aos da rede, Alves tem-nos debaixo de olho. Usa um telescópio de observação de aves para perscrutar a água em frente de casa. Durante o dia, fica a saber exactamente o que cada um pescou e em que lugar, para melhor orientar o seu trabalho durante a noite.

"Sei coisas que ninguém sabe. Segredos que não conto a ninguém", diz ele, o olhar um pouco toldado pela loucura da solidão. "E vejo tudo o que se passa à minha volta, mesmo quando estou fechado em casa, graças a um periscópio".

Um periscópio? Alves entra na desarrumação que é a sua sala, abre uma tampa disfarçada no tecto, e faz descer um tubo largo, cinzento como a fuselagem de um submarino. Com as mãos nas duas pegas laterais, roda o tubo para um lado e para o outro, espreitando pelo óculo, de onde se vê o mar e a ilha toda, num raio de 360º graus.

Alves fabricou os tubos, que pintou com tinta da Marinha, comprou espelhos e prismas, que montou num mecanismo de grande precisão óptica, furou o tecto e instalou um verdadeiro periscópio. "Assim posso saber em qualquer altura se alguém me está a assaltar os viveiros. E outras coisas que se passam na ilha".

Está a referir-se aos pacotes com droga que têm sido encontrados na praia, e às estranhas movimentações que detectou em certas noites. As ilhas algarvias, pela sua posição e isolamento, são território privilegiado do tráfico, que se tem intensificado nos últimos anos. A polícia já falou com Alves sobre o assunto. Se der com os traficantes em pleno acto, o melhor é não fazer nada. Não lhes falar, e nem sequer chamar a polícia, ou corre o risco de ser eliminado sumariamente. "Tem cuidado, olha que eles dão-te um tiro sem problema nenhum", avisou a polícia. E Alves tem agora de viver com mais esta dificuldade: para certos discretos e sinistros frequentadores da ilha, ele é uma figura indesejável. Por isso, fora da época estival, passa grande parte do tempo fechado em casa, agarrado ao periscópio.

Mas este não é a sua única engenhoca. Toda a barraca está equipada com invenções, construídas a partir de ferro-velho. Um frigorífico apanhado no lixo, por exemplo, está deitado no pátio, ligado com tubos a uma velha máquina de cerveja imperial. Esta cria pressão que impulsiona a água e a faz circular gelada através do frigorífico, onde estão guardadas as cervejas e outras bebidas, sempre frescas.

Em frente está um fogareiro a gás instalado por baixo do grelhador de peixe, mas que também serve de maçarico para fundir o chumbo de soldar. Além disso, pode ser levado para o interior da casa e colocado por baixo de um barril metálico de cerveja que funciona como depósito de água, conectado a uma bomba que a puxa para o chuveiro. Um termostato ligado a uma caixa de música vai medindo a temperatura da água. Quando atinge os 34 graus, disparam os acordes da lambada, e Alves sabe que pode ir tomar duche.

"Se eu gosto de viver aqui?" Faz um silêncio, emocionado. "Eu nem sei como lhe responder a essa pergunta. Eu sinto-me tão feliz aqui". Às vezes precisa de ir a Faro, ou até, raramente, a Lisboa. Mas volta rapidamente. "Estar na cidade um dia, é um dia de vida a menos".

paulo.moura@publico.pt

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