E assimcomeçou a dança contemporânea

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Trisha Brown ainda segue os ensaios da sua companhia, mas a coreógrafa dedica-se a observar o modo como os bailarinos resolvem os problemas que ela criou há 40 anos

Trisha Brown chega quinta-feira ao Museu de Serralves com um programa de peças que, ainda hoje, procuram um lugar na história da dança. São quatro dias para mostrar um conjunto de preciosidades deslumbrantes. Tiago Bartolomeu Costa, em Nova Iorque

Se subirmos a um dos telhados da esquina da Broadway Avenue com a Houston Street, mesmo sem sabermos se é o edifício certo mas formos decididos e não cruzarmos olhares com quem passa por nós nas escadas, podemos fingir ser um dos doze bailarinos que em 1971, seguindo indicações da coreógrafa Trisha Brown, integraram a peça "Roof Piece". Com excepção de que não temos ninguém a quem transmitir o movimento que fazemos, o que vemos é, comparando com as fotografias, a mesma coisa. Os depósitos de água, o fumo das chaminés, o monocromatismo dos edifícios, uma cidade que, na verdade, gere os movimentos de uns e de outros de modo a parecerem integrados numa mesma coreografia sem início nem fim.

Quase que poderíamos dizer que Brown, 40 anos depois, vê concretizada a sua ambição de reduzir o movimento a acções e assim ele se sujeitar à ambiguidade da distinção entre bailarino e espectador.

Trisha Brown chegou a Nova Iorque no Outono de 1960, depois de dois anos a ensinar "convencionais métodos coreográficos" no Connecticut . Tinha 25 anos e passara o verão a experimentar improvisações e tarefas sob coordenação de Anna Halprin (a coreógrafa da qual vimos "Parades and changes, replay", em 2008 na Culturgest e Serralves), que reunira uma academia informal em São Francisco, onde participaram Simone Forti, Yvonne Rainer e Robert Morris, entre outros. Nomes que iriam, logo depois, começar a interrogar a dança e o modo como ela podia relacionar-se com a efervescência que se vivia em Nova Iorque na transição entre a cultura pop e o movimento hippie.

Dois anos depois Brown faria parte de um dos mais importantes movimentos da história da dança, a Judson Dance Theatre, que todas as segundas feiras se apresentava no ginásio e sacristia da Memorial Judson Church na Washington Square, no fim da 5ª Avenida. O grupo, constituído por coreógrafos, cineastas, pintores e músicos, dissolveu-se em 1968 mas ainda hoje se apresentam ali, ao fim da tarde, performances de alunos da Tish School of Arts, coreografadas por eles próprios ou por nomes que estiveram na Judson Church quando tudo começou, como Lucinda Childs.

"Para os artistas, músicos e bailarinos que colaboraram com a Judson Dance Theatre, a dança tornou-se uma estrutura através da qual qualquer indivíduo podia lidar, factualmente, com os elementos básicos da dança: espaço, tempo, peso - e também o modo como outros indivíduos ou objectos são afectados por isso. Um bailarino não era um galante, um super-atleta ou um herói em sofrimento. Havia um respeito, e um amor, pelo que a Yvonne Rainer apelidava de "irresolúvel fisicalidade"", explicou Brown anos depois.

As peças "Floor of the Forest", "Accumulation Duet", "Scallops", "Raft piece", "Sticks I & II", "Figure Eight", "Spanish Dance", "Sticks Leaning duets I, II", "Falling duet", "Skymap" e "Planes" que a partir de quinta-feira a companhia de Trisha Brown apresenta na Fundação de Serralves, como parte do ciclo "Improvisações/Colaborações", a decorrer até Outubro, foram criadas entre 1968 e 1974, e são o resultado directo das experimentações da Judson Dance.

"Até aquela altura os bailarinos nas companhias de dança faziam rigorosos movimentos técnicos", disse em 1966, numa entrevista a Sally Banes, citada no livro "Terpsichore in sneakers". Brown dançava "criando a ilusão de uma corrente que percorre o seu interior e que é constantemente canalizada e desviada de modo a alimentar uma perna, um dedo, possa fazer com os seus braços a envolvam ou a sua cabeça possa descair", descreveu a crítica Deborah Jowitt num artigo do Village Voice. A dança era, para Brown, "como um animal que monta, sem sela, dificuldade ou disfarce". E Brown explicava que as suas primeiras peças nos anos 60, interpretadas no loft de Yoko Ono, no Dakota Building, no Upper West Side, eram como "improvisações estruturadas, apenas parcialmente coreografadas". "Deixei sempre algumas portas abertas que, tendo coragem, atravessaria. Queria resolver coisas na interpretação, manter essa abertura, a possibilidade de melhorar dez vez mais [o que fazia]".

Marcia B. Siegel, outra importante crítica da altura, disse, em 1967, que "trabalhando a partir das ideias vangardistas do início dos anos 60, Brown quis encontrar outras formas de se movimentar para além da tradição expressiva e decorativa da dança moderna e do ballet. Ela e os seus bailarinos trabalham com um corpo flexível, inteiro e descontraído. Nenhuma parte do corpo é treinada ou enfatizada às custas de outra; nenhum movimento existe para melhor se adequear ao que o precedeu, ou é agrupado de modo a constituir uma frase. Tudo se esvai de um ponto a outro."

Brown também queria encontrar modos de usar o movimento que a distinguissem dos seus contemporâneos. As peças, que viriam a ser conhecidas como "Accumulation Pieces", variavam de duração, por vezes muito curtas, apenas dois ou cinco minutos, outras vezes mais longas, podendo ir até aos 45 minutos. A primeira de todas, "Accumulation" (1971), durava um minuto e meio na primeira versão e cinco minutos na segunda (1972), sempre em silêncio. Os movimentos eram, invariavelmente, simples. Levantar de braços, rodar a cabeça, mover os pés, torcer o tronco, passar um objecto.

Siegel dizia que tudo tinha "uma estrutura, uma tarefa a ser completada, ou um problema para ser resolvido". E, por isso, o que lhe parecia evidente, também lhe parecia contraditório: "Os movimentos podem não ser, em si mesmo, extraordinariamente interessantes, mas cada um é uma chave, e uma vez descoberto o padrão através do qual se constituem, tornam-se tão satisfatórios como o são todas as estruturas estéticas".

Testar as peças, hoje

Hoje, as peças são remontadas como parte de um programa de cinco anos inscrevendo-as não apenas num contexto contemporâneo, mas também libertando-as da sua condição de peças icónicas. "O objectivo é testar as peças hoje, e perceber se os problemas que causaram na altura, para os bailarinos, são os mesmos. Ou então, de que modo outros bailarinos, com outra experiência, podem responder às mesmas questões", explica Dianne Madden, directora de ensaios e bailarina, na companhia desde o início dos anos 80. As peças, se no início foram interpretadas por não profissionais, com o tempo, e pela exigência técnica, passaram a ser dançadas por bailarinos profissionais. "São peças extremamente complexas, muito difíceis de dançar e serve de muito pouco a memória", explica. "As peças, aparentemente simples, pedem que o bailarino não confie na sua memória coreográfica nem se distraia com a simples repetição".

Trisha Brown participa pouco no dia a dia da companhia, ocupado com seis horas diárias de ensaios. A idade avançada não lhe dá um dia bom todos os dias. Acompanha os ensaios e, de vez em quando, tira notas. Outras vezes faz desenhos das coreografias. "Ela mostra-nos o que faz, muitas vezes ideias que surgem a partir das coreografias", explica Dianne, que conta ainda que alguns desses desenhos, que Brown, na verdade, sempre fez, estão agora guardados no MoMA e no Whitney Museum.

A mesma qualidade das coreografias, a mesma liberdade que os movimentos controem, existem nos desenhos e nas breves palavras que a coreógrafa vai dizendo ao longo dos ensaios. O que sempre interessou a Brown foi a tensão entre a precisão matemática e formal de um movimento e a sua distorção física. As peças foram - e continuam a ser - apresentadas em parques, praças, jardins, e salas de espectáculo. Em 1968, com a separação e a partida para diferentes caminhos dos elementos da Judson Dance, Brown começou a definir a complexa fronteira "entre o risco e a segurança, entre a funcionalidade e o ilusionismo, entre a extraordinária tarefa e a concretização dessa mesma tarefa", escreveu a crítica Deborah Jowitt em 1978 no jornal "Village Voice".

As "Accumulation Pieces" são, no fundo, variações físicas e descritivas de ideias que dependem, em exclusivo, do tempo e do modo da sua criação. Brown contava, por exemplo, a propósito de "Primary Accumulation", onde se deitava no chão para interpretar 30 movimentos acumulados numa estrutura de 1; 1, 2; 1, 2, 3; 1, 2, 3, 4, etc., que o objectivo era liberar as pernas do peso de sustentação de todo o corpo. "Era dar-lhes liberdade", diz. Essa liberdade ia tão longe quanto o momento de apresentação da peça. "Comecei a trabalhar nessa peça em Outubro de 1972 e encontrei 20 movimentos acumulados até à altura da apresentação, a 1 de Dezembro. Depois continuei a trabalhar no estúdio, como se fosse um exercício de aquecimento, acumulando sem qualquer objectivo. A apresentação seguinte foi a 27 de Março, e parei nessa altura. O que tinha acumulado entre Outubro e 27 de Março era a peça".

Marcia B. Siegel escrevia que "Trisha Brown estava menos interessada na psicologia dos elementos do seu grupo, e mais no modo como cada indivíduo podia contribuir para a concretização de uma experiência de movimento". E explicava que a coreógrafa começava sempre com um problema, "normalmente simples", trabalhando-o até o grupo ser capaz de o realizar convenientemente . "Não é eficácia que procuram, mas um entendimento que possa levar o problema até várias elaborações e ramificações".

A relação com o corpo, observado e observador, é interior. E os movimentos surgem da relação do intérprete com a tarefa que tem que cumprir e a consciência das responsabilidades a que se obriga e está sujeito. "A dificuldade maior está na consciência da estrutura que determina a acção", explica Dianne Madden. "Ainda hoje os dias normais da companhia são feitos de seis horas no estúdio a ensaiar, evitando que os movimentos se tornem mecânicos, e a repetição seja a primeira opção do bailarino". Madden conduz a maior parte dos trabalhos, enquanto Trisha Brown observa, por vezes tirando apontamentos, mas falando muito pouco. "Às vezes ela vem mostrar-nos o que escreveu e são só palavras ou desenhos que não têm particular significado ou relação com o que fizemos, mas que partiram do que estávamos a fazer".

Siegel acreditava que o trabalho de Trisha se preocupava, primeiro, "com a experiência do bailarino, e só depois com a experiência do espectador. As apresentações, ou o modo como são integradas num contexto performático, não são uma das suas prioridades". É também isso que sentimos a partir do telhados de Nova Iorque: a experiência sobrepõe-se ao que vemos.

O Ípsilon viajou a convite da Fundação de Serralves

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