Um filho preso do outro lado do Atlântico

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"É como se parte de mim morresse a cada dia." NELSON GARRIDO

Como é ter um filho preso e não poder visitá-lo? O filho de Ana Bastos está a cumprir pena de tráfico de droga na Venezuela. "Todo o dia penso: Como estará?" Queria que ele viesse para perto dela, mas não conseguiu. Todos os anos, Portugal lida com cerca de 200 processos de transferência de condenados.

Por mais que dê voltas à cabeça, Ana não consegue entender como raio o filho se meteu naquilo. "O Cajó sempre teve muita atenção. Era como se fosse um bibelot. Eu levava-o ao mercado e as velhotas adoravam-no."

Um dia, julgava-o a salvo em Lisboa, o telemóvel tocou: "Mãe, salva-me. Estou na Venezuela. Apanharam-me com cocaína. Perdoa-me. Perdoa-me. Amo-te. Amo-te muito!"

Ana tanto tentou desviá-lo de maus caminhos. Talvez demasiado. Viviam na Damaia. A fama da freguesia transbordava da Amadora, da Área Metropolitana de Lisboa.

Moravam ao lado da Cova da Moura, bairro de construção clandestina, enclave de migrantes nem sempre documentados, mercado de drogas. Ainda antes da adolescência, o miúdocomeçou a trocar os bancos da Escola D. João V pelos muros do bairro. "Saí muitas vezes do trabalho para procurar o meu filho na Cova da Moura. Ele jurava: ´Não faço mais!" Fazia.""

Cajó chumbou uma vez no 6.º ano. E depois outra. De noite, a mãe dava voltas na cama. "Ele só queria fumar charros e falar com os colegas sobre sabe-se lá o quê. Estava a perdê-lo." Decidida a segurá-lo, Ana mudou-se para a Maia, na Área Metropolitana do Porto. "Tinha de tentar."

O ex-marido não opinou: afastara-se havia muito. A filha ia nos 18 anos e aplaudiu a estratégia. Trabalhava como auxiliar de acção educativa e namorava com o rapaz com quem haveria de casar: "Vai, eu fico com a avó e com o avô." O filho é que não achou graça àquilo. Não queria separar-se dos amigos com quem partilhava horas de aventuras e gargalhadas. Mas, aos 13 anos, as amizades podem brotar como cogumelos. E Cajó depressa encontrou novos companheiros.

Recuperou a meiguice. Parecia encarreirado. Até entrou no movimento escutista fundado por Baden-Powell em 1907. Vestia a farda de campo e ia até à sede do seu agrupamento. Primeiro artigo da lei escuteira: "Honra para um escuteiro é ser digno de toda a confiança."

A mãe nunca pensou que volvidos dois anos ele se encostasse ao muro da EB 2/3 de Moreira da Maia. "O meu filho é muito influenciável. Se de um lado estiver um grupo com ideias positivas e de outro um grupo com ideias negativas, ele junta-se ao das ideias negativas. Não sei porquê. Nunca percebi. E foi sempre acompanhado por psicólogos."

Cruzar os braços é coisa que nem passa pela cabeça de Ana quando o que está em jogo é o filho. Transferiu-o para o ensino nocturno e arranjou-lhe um trabalho a meio tempo. Todos os dias, ia buscá-lo à fábrica de materiais electrónicos e o levava à escola. Esperava até as aulas terminarem - à porta ou dentro da sala para ter a certeza de que ele não saía.

650 gramas

Cajó não acreditava na escola. Nem terminara o 9.º ano e já teimava em sair. A mãe ouvia-o,insistia que continuasse. Até quando deveria insistir? Teria servido de alguma coisa terem insistido com ela? Ela adorava pentear bonecas, cortar-lhes os cabelos. Começou a lavar cabeças no salão de uma vizinha aos 11 anos. Fez o 4.º ano no regime normal, o 6.º no nocturno. E desistiu. Trabalhou por conta de outrem, inclusive do cantor António Variações, até abrir o seu próprio salão. Tudo isto lhe passava, uma e outra vez, pela mente: "Não queres estudar, vais trabalhar!"

De 15 em 15 dias, Cajó ia a Lisboa passar o fim-de-semana com o pai, dono de uma mercearia que já tivera melhores contas. Um casal, amigo da família, ofereceu-lhe trabalho numa empresa de tectos falsos. O rapaz pediu guarida ao pai e aceitou a proposta.

Quando tudo aconteceu, já não usava essa morada. Fora viver com a namorada. E assumira a paternidade de uma criança com uma amiga - com quem se envolveranuma noite bem regada.

Era sábado. Que pode uma mãe fazer num sábado à noite ao saber que o filho está preso no outro lado do Atlântico? Telefonou à filha, ao ex-marido, à melhor amiga, sempre sem parar de chorar. Na manhã de domingo foi para o cabeleireiro, ligou o computador, acedeu à Internet.

Durante dias e dias, sentada naquele banco pequeno virado para a porta do salão, mandou mensagens para todas as entidades porventura úteis - Presidência da República, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Consulado Geral de Portugal em Caracas, Agência Lusa...

Cajó chegara à fala com a sua famíliaatravés do telemóvel de um guarda. Estaria numa urgência hospitalar.Seria presente a um juiz segunda-feira. Mas que hospital? Que prisão? Que tribunal?

Amigas, como Ana Piedade, acompanhavam-na conforme podiam. É dela a mensagem enviada à Lusa: "Foi detido há 12 dias um cidadão português, no Aeroporto de Caracas. Tem 19 anos e chama-se Carlos Jorge Bastos Cruz. Até à data, a família não foi oficialmente informada pelas autoridades competentes da sua situação nem do seu paradeiro...."

Bastaram uns telefonemas para o correspondente da Lusa em Caracas, Filipe Gouveia, resolver o enigma. A experiência ditou-lhe os passos. Do Aeroporto Internacional Simón Bolívar partem os voos para a Península Ibérica. O processo estaria no Terceiro Tribunal de Controlo, no estado de Vargas. Precipitou-se para o Estabelecimento Prisional de Maiquetía, mas já não encontrou o rapaz alto, magro, de cabelo liso, penteado para trás. Fora transferido para Los Teques, no estado de Miranda.

O jornalista deu indicações precisas a Ana. E escreveu uma notícia seca, como mandam as regras de qualquer agência noticiosa: "Caracas, 28 Out de 2009 (Lusa) - Um jovem português de 19 anos foi preso no Aeroporto Internacional Simón Bolívar, em Maiquetía, no estado venezuelano de Vargas (a norte de Caracas), com várias saquetas de cocaína no estômago, revelou hoje à Agência Lusa fonte policial. Segundo a fonte, o jovem foi detido por funcionários da Divisão Anti-Drogas da Guarda Nacional (polícia militar) no passado dia 16 e conduzido a um hospital da localidade para remoção dos pequenos pacotes de droga. O jovem encontra-se actualmente detido numa prisão ao cuidado da Guarda Nacional e aguarda ser levado a julgamento."

Nada naquela história o surpreendia. Acompanhara de perto o drama de um piloto e de três passageiras acusadas de fretarem um avião para transportar 387 quilos de cocaína. E já escrevera sobre muitos correios porventura convencidos do fraco controlo alfandegário na Venezuela.

A República Bolivariana da Venezuela emergiu em 2004 como trampolim de cocaína para a Europa. Cinco anos depois, a Agência das Nações Unidas para a Droga e para o Crime dizia que mais de metade dos barcos interceptados no Atlântico com cocaína iniciara lá viagem.

Cajó receberia nove mil euros pelo transporte dos 650 gramas. E se uma cápsula estourasse dentro do seu estômago? "Porquê? Por que fizeste uma coisa destas?", perguntava-lhe a mãe nos primeiros contactos. "Fiz, está feito, não vale a pena perguntar mais."

Ana deixou de perguntar. Mas não deixou de lhe tentar aliviar a pena.

"Peço encarecidamente que não ignorem o meu pedido pois não sei mais o que fazer, uma vez que a tristeza, a ansiedade e o desespero começam a controlar o meu raciocínio e as minhas forças. [...] Infelizmente, [a droga] é um flagelo mundial. Acontece em muitas famílias e eu estava longe [de pensar] que este mal, um dia, viria "bater" à minha porta."

Nesta carta, escrita a 9 de Novembro de 2009, o apelo que repetiria noutras: "Sei que o meu filho cometeu um delito grave, mas tem 19 anos e merece uma oportunidade na vida. [...] É como mãe, como cidadã e acima de tudo como ser humano que apelo a que o Carlos Jorge seja transferido para Portugal, onde poderá ser castigado, mas de uma forma mais digna."

A consulesa-geral de Portugal em Caracas, Isabel Brilhante, soma cartas como esta. No principio do ano, quarenta e um portugueses estavama cumprir pena na Venezuela - quase todos por tráfico de drogas. Alguns iniciam um "longo e burocrático" processo de transferência para o seu país de origem.

Solidariedade numa mala

Todos os anos, Portugal lida com cerca de 200 transferências de condenados - uns num sentido, outros noutro. Máquina oleada quando do outro lado estão países experientes, como a França, a Espanha, o Reino Unido, o Luxemburgo, a Suíça, o Brasil ou os Estados Unidos. Não quando do outro lado está a Venezuela, a insistir nos canais diplomáticos. A advogada de Cajó, na Venezuela, já disse a Ana que "não aceitam" a transferência do filho.

Para o sentir mais perto, a família de Cajó usa a mala diplomática portuguesa. Até ao meio-dia de cada quarta-feira, a irmã desloca-se à Direcção Geral dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas, na Avenida Visconde de Valmor, em Lisboa. Leva um pequeno embrulho com produtos de higiene, medicamentos, alguma peça de roupa - dois quilos no máximo. De vez em quando, a consulesa ou o edil social vão a Los Teques visitar presos e entregar encomendas. Isabel Brilhante não consegue ir commaior frequência: "Os presos estão em várias cadeias. As cadeias estão dispersas".

Os amigos de Ana tentam ajudá-la a suportar as despesas. A 5 de Novembro de 2009, uma delas colocou um cartaz na montra da sua loja a pedir "Solidariedade a um vizinho": "Para que se possa assegurar cuidados de higiene e de saúde, pedimos a quem queira ajudar os seguintes produtos: escova de dentes; meias brancas; pasta dentífrica; cuecas brancas; gel de banho; T-shirts brancas; champô; sweats brancas; desodorizante; lâminas de barbear; espuma de barbear; Ben-U-Ron; vitaminas; Fenistil".

A cabeleireira conta cada um dos dias que faltam para o fim dos três anos e oito meses de prisão a que o filho foi condenado. Procura retirar-lhes peso: "Mandamos-lhe 30 euros todas as semanas - eu ou o pai. Paga isso ao chefe de ala para não ser violado, para comer uma refeição, para ter um cobertor. Se não paga, tem de lavar, de coser, de ser mulher de cama, de ser tudo o que eles quiserem."

Nem assim sossega. A página electrónica do Observatório Venezuelano de Prisões não ajuda. No ano em que Cajó foi detido, 32.624 pessoas expiavam pena - 366 morreram e 635 ficaram feridos. Vídeos publicados na Internet funcionam como janelas abertas para greves de fome, motins, rixas.

A 4 de Junho de 2010, noticiou o diário La Voz: "Na manhã de ontem, um motim protagonizado por internos no pavilhão 1 do Internato Judicial de Los Teques deixou como saldo um morto e seis feridos."

O jornal identifica os seis feridos - nenhuma referência a Cajó.

No dia seguinte: "Mães e [outros] familiares de reclusos estiveram na manhã de ontem nas imediações da Retén Judicial de Los Teques, onde a morte violenta de um preso, identificado como Exel Ebrain Mendoza, foi desencadeada por um escândalo de insalubridade que envolve as autoridades."

A 28 do mesmo mês: "Cinco presos e uma visitante morreram na cadeia de Los Teques durante um tiroteio em plena visita dominical. Também houve doze feridos (entre eles duas visitantes), produto dos disparos cruzados entre presos dos pavilhões 1, 2 e 3 e da cela especial. Os factos registaram-se a partir das 9 da manhã, no rés-do-chão do estabelecimento prisional."

O jornal La Región levantava três hipóteses. Um preso foi morto e outros retaliaram? A cônjuge de um exibira roupa "provocante" e os comentários de alguns enfureceram o marido? Efeitos da festa que houvera na noite de sábado e que incluíra a contratação de prostitutas?

Cajó levou um tiro de raspão. Ana soube logo.

Ele dá-lhe um toque a partir do telemóvel de outro preso e ela telefona-lhe: "Há semanas em que consigo falar com ele quase todos os dias." A conta de telefone pode ultrapassar os 300 euros mensais. "Às vezes, diz: "Estou bem." Outras vezes, diz: "Quero que me venhas buscar." Já n? o sei o que fazer. Já não sei mais para quem me virar."

Tivesse ela dinheiro e já lá estava. "É como se parte de mim morresse a cada dia. Todo o dia penso: Como estará?"

Esteve quase a ir.

Anafaz parte do Grupo Coral de Amizade do Rotary Club da Senhora da Hora - quatro vozes mistas orientadas pela maestrina Gabriela Caldelas. No ano passadoos companheiros organizaram um jantar de solidariedade. Juntaram dinheiro para a viagem. Frente à notícia de que Cajó fora esfaqueado, outra prioridade se levantou: "que fosse operado como devia ser".

Nos últimos tempos, Cajó, agora com 20 anos, anda revoltado. "Grita por tudo, grita com todos. Parece que agora é que percebeu."

Ana já não pergunta porquê. Desculpa-o. Alguma vez terá deixado de o desculpar? "Deixei de falar com a namorada dele. Ela incentivou-o a ir para ganhar dinheiro para comprarem casa. Cada vez que ele dizia alguma coisa que a magoava, ela ligava-me: "O Cajó fez isto ou aquilo." Então ela sabia que ele ia fazer uma coisa destas e não me disse nada?!"

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