O pesadelo das vidas deles chegou ao fim

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A irmã de Jackie, Kay, celebra as conclusões do inquérito PETER MUHLY/AFP

São irmãos e filhos dos 14 católicos irlandeses mortos a 30 de Janeiro de 1972 pelos soldados enviados para travar uma marcha pelos direitos cívicos em Derry. Lutaram durante décadas para que as vítimas do Domingo Sangrento fossem ilibadas. O relatório Saville, divulgado esta semana, vingou-os. Por Ana Fonseca Pereira

A frase fica solta enquanto o ecrã escurece e soa como um aviso: "Queremos dizer em nosso nome, em nome das vítimas e das famílias das vítimas, que não descansaremos enquanto não for feita justiça." Os corpos ainda se amontoavam na morgue e a raiva corria solta em Derry, reduto católico numa Irlanda do Norte prestes a explodir. Trinta e oito anos depois do massacre, a promessa feita na cena final de Bloody Sunday (2002), filme de Paul Greengrass, foi enfim cumprida - por teimosia dos que a 30 de Janeiro de 1972 perderam irmãos, pais e maridos. A luta pela absolvição das vítimas consumiu-os e hoje admitem ser "artefactos vivos" do pior banho de sangue cometido por militares britânicos contra civis em quase dois séculos.

Terça-feira, 15 de Junho de 2010, foi o dia em que puderam gritar vitória. O inquérito conduzido pelo juiz Mark Saville - a mais longa e cara investigação da história britânica - chegou finalmente às mãos dos 13 sobreviventes e das famílias das 14 vítimas. Pouco depois, a multidão instalada frente a um ecrã gigante na praça central de Derry exultou - houve abraços, punhos erguidos, lágrimas - ao ouvir o primeiro-ministro, David Cameron, pedir desculpa pelas acções das tropas.

"As vítimas foram absolvidas e os soldados do regime de pára-quedistas foram desonrados. Tirem-lhes as condecorações", exigiu Tony Doherty. O pai, Patrick, foi morto pelas costas naquela tarde de domingo, quando tentava pôr-se a salvo das balas que voavam sobre a cabeça dos manifestantes. O militar que o matou alegou que Patrick Dohertyestava armado, mas o relatório Saville rejeitou a justificação: "O cabo F. disparou sabendo que ninguém na área representava uma ameaça grave ou não se importando se quem ali estava era ou não uma ameaça."

Tony tinha nove anos quando a sua vida foi virada do avesso. Daquele dia lembra-se que "estava muito, muito frio" e que um dos amigos lhe disse que o pai tinha sido morto no final da marcha convocada para protestar contra a detenção, sem julgamento, de activistas republicanos. Não quis acreditar, mas numa entrevista à BBC Radio 4 recordou o "desespero terrível" quando, nessa noite, percebeu que ele "nunca mais regressaria a casa".

IRA fortalecido

Doherty, um operário de 31 anos, era militante da Associação pelos Direitos Cívicos e esteve em todos os protestos que o grupo organizou desde o final dos anos 60. Mas Tony, o mais velho dos seus seis filhos, diz que a família Doherty "não era abertamente nacionalista". Apesar dos confrontos diários entre grupos de jovens republicanos e os militares, "Derry ainda era uma cidade inocente", explicou à BBC. "As pessoas pensavam que estavam a fazer o correcto e que mais tarde ou mais cedo alguém os ouviria."

O Domingo Sangrento mudou tudo. "Foi uma tragédia para os enlutados e para os que ficaram feridos e uma catástrofe para a Irlanda do Norte", escreveu o juiz Saville, no resumo das mais de cinco mil páginas do relatório. A violência daquele início de 1972 - seria o ano mais sangrento em três décadas deconflito, com mais de 470 mortos - "fortaleceu o IRA Provisório, aumentou o ressentimento e a hostilidade dos nacionalistas irlandeses e exacerbou o conflito".

Uma revolta alimentada pelo inquérito apressado ordenado por Londres no rescaldo do massacre. Ignorando os relatos dos sobreviventes e dos jornalistas que testemunharam os acontecimentos, o juiz John Widgery concluiu que os militares foram alvejados quando saíram das suas posições para deter os desordeiros e imputou culpas aos organizadores da marcha pela criação de uma "situação altamente perigosa" que tornou "quase inevitável" o uso da força. Mesmo sem provas conclusivas, admitiu que alguns dos que foram mortos estavam armados ou tinham atirado bombas artesanais aos soldados - a versão que os soldados e os seus superiores repetiram até à exaustão.

"O que eles disseram aos jovens como eu, da classe operária, era que podiam matar a nossa gente, de forma impune e sem serem julgados", diz Tony Doherty, que ainda antes de completar 18 anos se juntou ao IRA. A luta armada valeu-lhe anos de prisão, por participação em ataques à bomba.

Um Mars com 38 anos

John Kelly, de 61 anos, não lhe seguiu as pisadas, mas também para ele há uma vida antes e outra depois de 30 de Janeiro de 1972. "Até então não tinha qualquer interesse na política. Tinha trabalho e namorava", disse à BBC.

Depois disso, juntou-se aos que construíam barricadas para travar o caminho aos blindados do Exército em Bogside e Creggan, os dois bastiões católicos da cidade.

As entranhas da cidade revoltavam-se e a família Kelly chorava a morte de Michael, o mais novo dos seis adolescentes mortos pelas balas do 1º batalhão de pára-quedistas. Michael era franzino e superprotegido pela mãe que quase o viu morrer aos três anos, devido a uma infecção. "Ele tinha 17 anos, mas ainda pediu autorização à mãe para ir à marcha. Ela não queria, mas nós convencemo-la a deixá-lo ir", recorda John. Cinco anos mais velho, ficou responsável por Michael e lembra-se que, antes de a marcha começar, lhe disse: "Se houver chatices, vai para casa", contou ao diário The Guardian.

Cada um seguiu com o seu grupo de amigos e John só voltaria a ver o irmão moribundo. Tinha sido baleado no estômago junto à barricada onde os mais novos tinham estado a atirar pedras aos militares. O cabo F., autor do tiro fatal, garantiu que só disparou contra pessoas armadas e os exames forenses encontraram resíduos de pólvora na sua mão. A suspeita indigna John - "os únicos interesses que ele tinha eram os pombos, a música e a namorada" -, que passou as últimas quatro décadas a lutar pela absolvição do irmão.

"Sou um artefacto vivo do Bloody Sunday", diz aquele que se tornou no rosto mais conhecido do grupo de famílias que, em 1998, convenceu o então primeiro-ministro Tony Blair a reabrir as investigações ao massacre. John Kelly trabalha no Museu de Bogside e foi ali que, durante anos, contou a milhares de visitantes a sua história do Domingo Sangrento. Um relato que coincide, desde esta semana, com a versão oficial dos factos: Michael, escreveu o juiz Saville no relatório, não estava armado, nem representava qualquer ameaça. "We have overcome [vencemos]", gritou John à multidão reunida em Derry para ouvir o veredicto, completando o velho hino dos direitos cívicos (We shall overcome) que os manifestantes entoavam no dia do massacre.

Uma vitória que a mãe, destruída pela perda de Michael, já não pode presenciar. "Ela morreu em 2004 e semanas antes eu menti-lhe. Disse que o Michael tinha sido ilibado. Ela ficou tão contente." No seu caixão foi colocado tudo o que ainda restava do filho. Tudo menos um chocolate Mars que ela lhe comprou dias antes de ele morrer. "Esse ficou comigo", conta John.

Um lenço ensanguentado

É a pequenas lembranças que as famílias se agarram para perpetuar a memória dos mortos. Terça-feira, Kay Duddy foi buscar ao museu o lenço que o então padre Edward Daly usou para tentar estancar o sangue que jorrava do peito do irmão. Jackie Duddy tinha ido à manifestação "para se divertir um pouco", mas acabaria por ser a primeira vítima mortal. A situação era grave e o sacerdote usou o mesmo lenço, manchado de sangue, para acenar aos soldados e abrir caminho entre os disparos aos que transportavam o rapaz - momento retratado num dos murais do Bogside e que se tornou símbolo do Domingo Sangrento.

O lenço, que o padre Daly ofereceu à família de Jackie, transformou-se num amuleto para Kay. Tinha 23 anos no dia em que perdeu o irmão, um dos 15 que os pais criaram num pequeno apartamento de Creggan, e é aquele pequeno pedaço de tecido que o liga a ele. Transportou-o na mala durante anos, mas quase o perdeu numa tentativa de assalto. "Quando cheguei a casa, desatei a chorar", contou Kay ao Herald Scotland, acrescentando quenesse dia decidiu confiá-lo ao museu. Só o foi buscar dias antes da divulgação do relatório Saville, quando a ansiedade começou a apertar.

Kay batalhou pela reabertura das investigações e assistiu a todas as audiências, entre 2000 e 2005, mesmo depois de o inquérito se ter mudado para Londres, para ouvir os militares envolvidos. Pelo caminho, descobriu que perdoou o soldado que matou o irmão, alvejado quando tentava fugir ao caos. Mas a alegria completa só a sentiu ao ouvir o pedido de desculpa de Cameron. "Nem consigo acreditar. Estou tão contente."

Também Mickey McKinney acompanhou, sem falha, cada um dos dias do inquérito. Como representante das famílias, aprendeu a lidar não só com a sua dor, mas também com a dos outros. "Descobri uma força em mim que não sabia que existia", contou à BBC, recordando o dia em que ouviu o soldado que terá disparado contra o irmão.

William, de 27 anos, era gráfico no jornal local e fotógrafo amador. No Domingo Sangrento decidiu levar para a manifestação a pequena câmara que tinha recebido no Natal. "A última vez que o vi, ele estava em cima de uma árvore a filmar", recorda Mickey. Só quando regressou a casa, nessa noite, descobriu que o irmão mais velho tinha sido baleado quando procurava refúgio entre um bloco de apartamentos.

O pai nunca se conformou com a morte do primogénito. "Um amigo contou-me que o viu a chorar num elevador. Quando lhe perguntou o que tinha acontecido, ele disse-lhe que só queria ver o filho. Tinham passado 12 anos." Mickey não se lembra de ter visto a mãe derramar uma lágrima. "Um dia, há cerca de oito anos, contou-me que nunca chorou à nossa frente, porque tinha medo que nos juntássemos ao IRA. Já tinha perdido um filho, não podia perder outro."

Não se juntou aos paramilitares, mas travou uma luta sem quartel pela absolvição do irmão. "Para mim era simples, o Willie foi assassinado e alguém tinha de ser responsabilizado." Disseram-lhe muitas vezes que estava louco, que o Governo britânico nunca recuaria na sua versão dos factos. Trinta e oito anos depois, venceu a sua guerra. Não tem cicatrizes, mas tornou-se também ele um símbolo do dia que marcou para sempre a história de Derry e da Irlanda do Norte. "Já ouvi muitas vezes dizerem: "Vai ali o Mickey McKinney, o do Domingo Sangrento.""

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