Para reeditar este livro até a tinta teve de ser inventada

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Na última semana, as rotativas da Heidelberg Speedmaster da Guide afinaram-se ao máximo para que as páginas voltassem a ser impressas Miguel Manso

Lisboa, Cidade Triste e Alegre, de Victor Palla e Costa Martins, está de volta. Um dos melhores livros de fotografia da Europa do pós-Guerra mostra que sabe viver múltiplas vidas. Por Sérgio B. Gomes

Outra vez te revejo,

(...)

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

(...)

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo...

Álvaro de Campos, Lisboa Revisited (1926)

Chamam-lhe poema gráfico. E ele tem, na verdade, estampada a poesia das palavras, o virtuosismo dos melhores: Pessoa, O"Neill, Sena, Miguéis, Mourão-Ferreira, Gomes Ferreira... No livro dos livros de fotografia criados em Portugal, entraram muitas fontes de poesia, muitos géneros de poemas, que estão para lá da rima e da métrica. À palavra juntaram-se, no papel, outras formas de poesia, a gráfica e a fotográfica - ingredientes para um poema visual total que nos "anos de chumbo" (Fernando Lopes) do fim dos anos 50 foi assinado por dois autores de talentos múltiplos, Victor Palla e Costa Martins.

Quando passam 50 anos sobre a primeira edição de Lisboa, Cidade Triste e Alegre, o único álbum português referenciado na bíblia mundial dos livros de fotografia - The Photobook: A History (Phaidon, 2004) - vai ser finalmente reeditado em Dezembro pela mão de outra dupla de fotógrafos, José Pedro Cortes e André Príncipe.

Durante a última semana, as rotativas da Heidelberg Speedmaster da Guide Artes Gráficas, em Odivelas, afinaram-se ao máximo para que as páginas voltassem a ser impressas. No chão da gráfica foram-se empilhando resmas de papel onde já se mostravam casais de namorados e varinas, calçadas e fontenários.

Na mesa de trabalho, Armindo Francisco, um dos impressores do turno da manhã, não dá descanso ao conta-fios, a lente que lhe fornece pistas sobre se a impressão está a tomar o caminho certo. Compara as páginas soltas de um original meio amarelado com o resultado das cópias. Compara e faz esvoaçar páginas de um lado para o outro. Pelo meio vai carregando em filas de botões, como se estivesse a tocar piano. Lisboa, Cidade Triste e Alegre tem ritmo até na impressão. Armindo não conhece o livro que está a imprimir. A fama dele não o assusta. Nem a sente. Só lhe promete dar o melhor que sabe.

Em escalas diferentes, a história da iniciativa particular e da teimosia de poucos à volta da edição daquele que é considerado por Martin Parr e Gerry Badger (autores de The Photobook...) um dos melhores livros de fotografia da Europa do pós-Guerra parece repetir-se.

Se em 1959 Victor Palla (1922-2006) e Costa Martins (1922-1996) juntaram à sua criatividade todo o esforço e dinheiro para transformar em livro (distribuído por fascículos) o trabalho fotográfico que vinham desenvolvendo juntos nos bairros históricos de Lisboa desde 1956, Cortes/Príncipe ousaram dar, em 2006, um novo impulso a um projecto de reedição ambicioso, mas mais ou menos moribundo, que envolvia o autor de uma tese de mestrado sobre o livro, o Centro Português de Fotografia, a família dos autores e a reputada editora alemã de fotolivros Steidl.

Apenas na recta final, quando todo o projecto de Cortes/Príncipe estava encaminhado rumo à gráfica, a editora fundada pelos dois, a Pierre von Kleist, garantiu a venda de 500 das 2000 cópias a um banco, garantindo o retorno de parte do investimento. Há semelhanças nas dificuldades do passado e do presente. Em contramão, há uma diferença significativa no que toca ao reconhecimento do génio envolvido na criação de Lisboa, Cidade Triste e Alegre, contemporâneo de outros livros de fotografia incontornáveis, como Les Américains (Robert Frank, 1958) ou New York (William Klein, 1956).

Procura da obra

Ao fracasso comercial e alcance limitado da primeira edição contrapõe-se agora um renovado interesse e uma grande procura da obra por coleccionadores. Em Junho de 2006, no primeiro leilão de fotografia em Portugal, organizado pela P4, um exemplar sem sobrecapa foi à praça com um preço base de 400 euros e acabou nos 1200. A disputa terminou em palmas. Em Maio de 2007, num leilão de livros de fotografia da Christie"s, em Londres, uma cópia com sobrecapa branca foi vendida a um coleccionador americano por cerca de 14 mil euros. No ano passado, também num leilão da P4 com lotes que testemunhavam as várias facetas criativas de Victor Palla, foram vendidas mais três cópias, entre 4600 e 7400 euros.

Ao longo destes 50 anos, Lisboa, Cidade Triste e Alegre já passou por momentos altos e baixos. Como um gato, vai mostrando que sabe viver múltiplas vidas. Criado na sequência de duas exposições em 1958, em Lisboa (Galeria Diário de Notícias) e no Porto (Divulgação), com imagens que fugiam da tónica da fotografia de salão alinhada com o regime, o livro não se pode comparar com nada do que existia em Portugal e hoje ombreia com os mais reputados livros de fotografia do mundo.

No final dos anos 50, Palla/Martins mergulharam no Bairro Alto e em Alfama. "Deixaram de trabalhar e todos os dias - dia e noite - deambularam pela cidade, fotografando, falando, comendo, divertindo-se com pessoas e coisas. Vinham a casa apenas para revelar e ampliar [os negativos]", escreve António Sena (Uma História da Imagem Fotográfica em Portugal, 1998). Inspirados na espontaneidade da fotografia humanista à maneira de Cartier-Bresson e num modo de ver cinematográfico e neo-realista, consumaram um livro graficamente arrojado, onde se sente a "sinfonia da cidade".

"Lisboa é, certamente, um livro mais complexo do que aparenta ser à primeira vista. (...) Se menciono que a chave do seu sucesso é o design e a tipografia, não é para denegrir as fotografias ou outros aspectos do volume, mas para dizer que a exuberância do design cria largamente a exuberância do livro", defende Gerry Badger num longo ensaio que será publicado num índice encartado com a reedição da Pierre von Kleist. Depois da primeira edição, o livro hibernou até que, em 1982, António Sena o recuperou através da exposição Lisboa e Tejo e Tudo, na galeria Ether (1982-1996). Nessa altura, juntaram-se muitos dos fascículos que estavam por encadernar e fizeram-se cerca de 200 cópias. Esta segunda vida dá-lhe alguma cotação internacional, confirmada, muitos anos mais tarde, na obra de Parr/Badger.

Conscientes da reputação e da importância do livro na história da fotografia portuguesa, José Pedro Cortes e André Príncipe decidiram meter mãos à obra, depois de uma conversa do segundo com uma das filhas de Victor Palla, Maria José, também fotógrafa. "Sabíamos que a reedição que envolvia a Steidl estava parada e a meio de uma conversa com a Maria José surgiu a ideia de avançarmos. Eu ri-me e disse: "Sabe que este livro não se faz assim". Mas depois de dizer isto, percebi que podíamos mesmo voltar a editá-lo", recorda o fotógrafo do Porto, que se encontrou com Victor Palla várias vezes para rodar um filme sobre o seu trabalho.

"Vi-me no meio de uma série de factores que me diziam que podia concretizar a reedição. E o facto de ter mantido algum contacto com Victor Palla enquanto ele foi vivo deu-me uma espécie de legitimidade para levar o projecto em frente", afirma Príncipe, que lembra que o fotógrafo (também arquitecto, escritor, tradutor, pintor e designer) sempre lhe falou do livro de uma maneira "despretensiosa" e que tanto lhe recordava as peripécias à volta da sua realização como do projecto da Aldeia das Açoteias (condomínio no Algarve). José Pedro Cortes: "Sentimos uma grande responsabilidade. A intenção é democratizar a obra. Colocá-la no sítio onde deve estar, que é na mão das pessoas."

Fazer artesanato

A inexistência da maior parte dos negativos e o desaparecimento da rotogravura em Portugal (técnica em que foi impressa a primeira edição) obrigaram os novos editores a optar por uma solução em fac-símile. Ou seja, as fotografias foram fotografadas e tratadas digitalmente de maneira a aproximarem-se ao máximo dos originais. Para além do rigor da cópia visual, houve cuidado redobrado nos pormenores tácteis.

Foi escolhido um papel grosso, levemente rugoso (do tipo gardapat), e mandou-se fabricar na Alemanha uma tinta específica (de tonalidades mais quentes e um elevado grau de liquidez) para que a sensação táctil produzida pela rotogravura pudesse, pelo menos, ser sugerida. "Houve uma preocupação em não alterar nada na lógica narrativa e no conceito de design do livro. Quando escolhemos a tinta e o papel, tentámos aproximar esta edição o mais possível do conceito original", explica Príncipe.

A tinta até pode ser especial e o papel um dos melhores para suportar fotografia, mas não fosse a experiência e a iniciativa da Guide talvez esta reedição não existisse. Cortes e Príncipe bateram a várias portas e todas se fecharam. Algumas gráficas nem arriscaram orçamentos para um livro de execução muito complexa e demorada. "Este livro não foi pensado para um processo industrial. É por isso que vai ser acabado de forma artesanal com técnicas actuais", explica Nuno Penedo, um dos responsáveis da Guide e um dos nomes a quem se deve a concretização da obra.

Lisboa, Cidade Triste e Alegre tinha de ser feito "com algum sentimento", diz Penedo, contente por ser uma gráfica portuguesa a responsável por lançar de novo o livro no mercado. "Vai exceder as expectativas das pessoas que estão à espera dele."

Conhece-se o entusiasmo à volta de Lisboa, Cidade Triste e Alegre. A procura que a primeira edição de 1959 e a reencadernação de 1982 têm despertado não pára de surpreender. Agora, há alguma expectativa sobre o sucesso da reedição da obra-prima da dupla Palla/Martins. De uma coisa a dupla Cortes/Príncipe não tem dúvidas: "Se esta edição esgotar, tentaremos fazer a segunda, porque os grandes livros de fotografia têm de ser como os clássicos da literatura - têm de estar sempre disponíveis."

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