Era uma vez um pai, Günter Grass

Quando passam cinquenta anos da publicação de "die Blechtrommel" ("O Tambor de Lata"), do escritor alemão Günter Grass (n. 1927, Danzig), a Dom Quixote assinala por cá a data com uma nova tradução (chegada às livrarias há poucos dias) desse romance que na época foi considerado, por uns, como blasfemo, pornográfico e um ataque ao bom gosto, e por outros, como uma obra-prima, o símbolo do renascimento da literatura alemã depois de décadas de agonia. "O Tambor de Lata" é o primeiro volume da chamada "Trilogia de Danzig" (os outros são "O Gato e o Rato" e "O Cão de Hitler"), em que Grass recria com ironia e humor corrosivo, à maneira do romance picaresco, o ambiente da sua cidade natal, Danzig - actualmente a cidade polaca de Gdansk -, antes e durante a II Guerra Mundial e analisa as fundações éticas e políticas da Alemanha. Esse seu primeiro romance, conta Günter Grass no volume autobiográfico "Descascando a Cebola" (Casa das Letras, 2007), foi escrito em Paris numa casa de duas assoalhadas, "um anexo num pátio interior", para onde o escritor e a mulher, bailarina, se tinham mudado em 1956 - vindos de uma bafienta cave berlinense - pouco tempo antes de lhes nascerem os filhos gémeos. "O Tambor de Lata" foi publicado em 1959 e teve (para além das muitas vozes críticas) um êxito imediato junto do público. Com o muito dinheiro recebido, compraram eles uma "semi-ruína com cinco quartos" e voltaram para Berlim. Com este facto termina Günter Grass "Descascando a Cebola", a sua polémica autobiografia - que descreve o período entre 1939 e 1959 - em que revela que aos 17 anos de idade se alistara voluntariamente nas Waffen-SS. O homem que no debate público sempre criticou ferozmente os defeitos da Alemanha - que pretendeu ser durante mais de 30 anos uma "consciência moral da nação alemã" - não teve coragem, durante décadas, de se criticar a si mesmo. Ele parece ter esperado elogios públicos pela sua "honestidade tardia", mas a revelação feita quase atingiu a dimensão de escândalo nacional. De maneira que quando decidiu prosseguir com a escrita da sua autobiografia, deve ter pensado: "Eles não me apanham outra vez". E então, para contar os anos em falta, arquitectou uma forma narrativa que o deixasse a salvo das indesejadas críticas. O resultado tem o título "A Caixa - histórias da câmara escura". O livro acaba de ser também por cá publicado e abrange o período entre a publicação de "O Tambor de Lata" (1959) e a atribuição do Prémio Nobel (1999).

A invenção dos filhos
Mas "A Caixa" é mais um manifesto poético do que um verdadeiro texto autobiográfico. É uma despedida melancólica em que Grass apenas se parece preocupar em reunir o que caracteriza o homem e o autor: a imagem de "pater familias" que preside à refeição, os seus casamentos, a preferência culinária por cozido de lentilhas e costeletas de borrego, o pai famoso que não teve tempo para os filhos ("contar histórias sabia ele ... mas para brincar com os filhos, como os outros pais fazem, não tinha qualquer pachorra"), o sucesso dos livros, e o já conhecido gosto pelas fábulas. E é como uma fábula, ou melhor em jeito de conto de fadas tradicional, que o livro começa: "Era uma vez um pai, que, por ter envelhecido, convocou os seus filhos e filhas - quatro, cinco, seis, oito, assim eram eles em número -, até que, após longas hesitações, estes obedecerem ao seu desejo."
"A Caixa" é um texto simples, narrado de maneira cronológica, que está adornado com a técnica canónica dos contos tradicionais e com o truque do uso das vozes dos filhos, que na realidade não existem como verdadeiros narradores biográficos, pois é o autor quem conta, é ele que põe as palavras que escolhe e quer na boca dos filhos "imaginados pelo pai e postos a falar com as palavras deste". Os filhos reúnem-se nove vezes, sempre com formações diferentes (há sempre alguns que por prosaicas razões não podem estar presentes), e com um microfone à frente falam do pai. Günter Grass tem na verdade oito filhos, seis das quatro mulheres com quem viveu, e dois que são apenas filhos sanguíneos da segunda, de um casamento anterior. Mas para este livro, ele rebaptiza pelo menos os seus seis: os gémeos Francis e Raoul, e Bruno, passam a ser Pat, Jorsch e Taddel; Laura, Helene e Nele, chamam-se agora Lara, Lena e Nana. Aos filhos "inventados" junta um elemento fantástico (não poderia faltar num conto tradicional): uma câmara fotográfica (a caixa, a "Box"). É através das fotografias tiradas por esta máquina (um modelo "Agfa" de antes da guerra, "do tempo em que ainda havia milagres"), que vai ligando os factos. A câmara fotográfica foi pertença da "velha Mariechen" (que equivale a "Mariazinha"). Esta personagem, que é real, é a fotógrafa Maria Rama (1911-1997) - à memória de quem o escritor dedica o livro - que durante décadas acompanhou Günter Grass e as suas quatro famílias para todo o lado, chegando mesmo a viver com eles. E que no fim da vida "vivia à base de batatas cozidas com casca e arenques com vinagre." (Muitas das fotografias conhecidas de Grass, que constam em várias fotobiografias, são da autoria de Maria Rama.)

A caixa dos desejos
O elemento fantástico da "caixa" é o poder de fotografar não apenas o tempo presente, mas registar também o passado e o futuro, os desejos e os medos de cada um dos fotografados. "A minha 'Box' é como o nosso querido Deus: vê tudo o que é, o que foi e o que há-de ser. A ela ninguém pode trapacear. Ela lê nas entrelinhas." Esses são também os dons do autor, o ideal do escritor como vidente. A caixa como instância autoral ilumina as trevas do passado e retrata o futuro - é um objecto bem à maneira de Grass, que mergulha nas águas turvas da história contemporânea ao mesmo tempo que procura auscultar o destino do Homem. Esta "caixa mágica" tem sobrevivido à História Mundial; conta Grass que, quase no final da guerra, nos bombardeamentos de Berlim, este objecto foi o único que se salvou do incêndio em casa de Maria Rama, pois "não sobrou nada de nada. Tudo perdido e queimado. (...). Só sobrou a 'Box', porquê não sei. Estava um bocadinho chamuscada, sobretudo a caixa de cabedal, onde ela era guardada."
Este livro mostra-se, em grande parte, quase como oposição ao princípio que orientou a primeira parte da autobiografia, "Descascando a Cebola", pois a angústia do auto-questionamento e a interpretação da verdade histórica foram banidas. A introspecção também não tem lugar, a não ser uma única vez, e em que surge em forma de ironia: "E na minha lápide será cinzelada a inscrição: Aqui jaz, com o seu complexo materno por tratar." O "verdadeiro" material autobiográfico não se mostra, só aquele que é aprovado pela câmara fotográfica. "O nosso pai conta muita coisa! E, daquilo que ele diz, depois ninguém sabe ao certo quanto é verdade." A "caixa" está em conluio com a dimensão épica, não com a História, não com a verdade testemunhal, porque ela "mente". Há uma realidade fora do texto que os filhos desconhecem, os filhos apenas confirmam a voz do patriarca. O herói deste conto de fadas não tem rival, o que o leva, obviamente, a ter um entendimento com a História. Günter Grass como autor político que sempre se pôs a jeito para ser criticado, desapareceu. Aceitou a sua própria história, adaptou-se a ela, mas não deixou de se oferecer como "centro do mundo", como ser narcísico: "ele surge em todos os seus livros (...) por vezes mal se consegue reconhecê-lo, mas sempre como se tudo, essencialmente ou apenas de passagem, girasse em redor dele."
Günter Grass não fez um documentário de família, ou mesmo um álbum de fotografias comentado, ele transformou a(s) sua(s) família(s) naquele que é, provavelmente, o seu último projecto literário. Fez deles personagens de um delicioso conto de fadas. E fê-lo bem.
Ver crítica de livros págs. 36 e segs.

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