O buraco desta fechadura tem vista para vidas inteiras

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Isto que começa no jardim para depois passar ao salão e acabar com sete palmos de terra em cima é a trilogia com que os Peeping Tom abrem o Dancem!09

a As coisas tornam-se mais reais do que a realidade quando os Peeping Tom se fecham no estúdio cinco meses seguidos a espreitar pelo buraco da fechadura e ver coisas como esta família que se desfaz à nossa frente, em três capítulos (Le Jardin, hoje; Le Salon, amanhã; Le Sous-sol, no domingo), no Teatro Carlos Alberto, no Porto. "Os nossos processos são tão compridos e passamos tanto tempo fechados no estúdio que ao fim de algum tempo já não temos assunto, já não sabemos o que se passa lá fora, e então temos de procurar temas dentro da nossa cabeça. Tudo o que está nas nossas ficções são coisas que nos aconteceram, pessoas com que nos cruzámos. Não mudamos de personagem quando estamos em palco: continuamos a tratar-nos pelos nossos nomes verdadeiros", diz Franck Chartier, que fundou os Peeping Tom em 1999 com Gabriela Carrizo (conheceram-se durante a digressão de La Tristeza Complice, de Alain Platel, e a seguir, ainda nos Ballets C. de la B., estiveram juntos em Iets op Bach e Wolf). Além dos nomes verdadeiros, as suas vidas verdadeiras também estão nas ficções dos Peeping Tom: "As pessoas ficam muito espantadas quando sabem que a miúda que desaparece em Le Salon é mesmo a nossa filha, mas quando nos fechámos no estúdio para fazer a continuação de Le Jardin, era disso que a Gabriela queria falar: dos primeiros medos de mãe, do terror de perder um filho. Ao mesmo tempo, o Simon Versnel tinha acabado de perder o pai, estava de rastos, e então decidimos que ele ia fazer o papel do pai dele nos meses que antecederam a morte; deu esse avô que não encontra as chaves e fica incontinente. Não sei se as pessoas se reconhecem em nós, mas acho que reconhecem ali uma humanidade - e sobretudo percebem que podem entrar muito facilmente nas nossas histórias, que é aquilo que nós gostamos de fazer quando vamos ver um espectáculo."
Família em crise
Vamos entrar na história deles, então, pelo portão do jardim, onde esta trilogia começou, em 2002, debaixo de um grande guarda-sol cor de laranja, com um homem nos seus 40, o mesmo Simon Versnel, a enumerar as coisas que já teve (uma mulher linda, filhos, amantes e um cão branco chamado Calypso). Le Jardin eram os Peeping Tom a espreitar pelas frinchas da vedação e a deparar-se com o esplendor da crise de meia-idade - nunca teriam ido mais longe se tivessem tido dinheiro. "Queríamos absolutamente que do jardim se visse a janela da casa e que percebêssemos dali, à distância, o quotidiano de uma família. Mas ficava muito caro pôr o salão no palco. Deixámo-nos ficar no jardim e a seguir, dois anos depois, passámos ao salão", continua Franck Chartier. Foram ouvir o que as paredes de uma casa antiga têm a dizer sobre uma família: "As paredes vêem coisas que mais ninguém sabe. Tive um bisavô que se suicidou e até hoje isso é um segredo. Houve um tio que contou o segredo à minha irmã antes de morrer, mas não falamos disso na sala."
Quando lá chegaram, já estavam de gatas: a certa altura a trilogia transformou-se numa saga familiar, e esta família está em crise. É por isso que eles passam tanto tempo no chão, a cair, desamparados, como nunca vimos nenhum bailarino cair - "Le Salon é o declínio, uma família em queda, e isso deu muitas coisas no chão" -, antes de descerem à cave no último episódio da trilogia, Le Sous-sol (2007), o episódio em que há vida depois da morte. Cair é um desporto radical nas ficções dos Peeping Tom, mas morrer ainda é mais: "Tomámos uma direcção muito radical em Le Sous-sol por causa de uma cena em que a filha segura a mãe de 82 anos nos braços. De repente olhámos para aquilo e percebemos que quando crescemos deixamos de ter contacto físico com os nossos pais - e quisemos que aquelas personagens, como estão mortas, fossem o negativo daquilo que somos em vida. Ali, ao contrário do que acontece na vida real, quando tocas numa pessoa, já não consegues descolar-te dela. Tecnicamente, é brutal, sobretudo porque estamos com os pés enterrados em 60 centímetros de terra."
Também acontece connosco depois de três noites seguidas a espreitar pelo buraco da fechadura e a ver os Peeping Tom: já não conseguimos descolar-nos deles. "Quando fazemos a trilogia, ouvimos os aplausos a mudar de noite para noite. Os últimos são muito mais calorosos, são uma verdadeira despedida: cria-se uma ligação emocional que é muito intensa", nota Franck Chartier. A partir de logo à noite, podemos tratá-lo por Franck: também já somos da família.

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