O círculo tornado elipse

a Exactamente quarenta anos após os Silver Apples se estrearem (com disco homónimo), lançando para o meio do caldeirão psicadélico da época a electrónica possível, Simeon, o único membro restante do duo inicial apresentou-se (terça-feira à noite) na Galeria ZDB (Lisboa), no que, à partida, poderia ser uma mera manifestação de revivalismo. No dia seguinte, no Santiago Alquimista, houve concerto de Caribou, banda de Dan Smith - cuja primeira encarnação, quando dava pelo nome Manitoba, partia de beats complexos instalados no seio de ruído e psicadelismo.Em disco, como Caribou, Smith tem aberto o leque melódico aos tons mais coloridos da pop psicadélica dos anos 60. E apesar de ser esse exactamente colorido a cor que os Apples recusavam, há uma linha a unir estes dois projectos: a percussão complexa e a conjugação entre psicadelismo e som "sujo". Nesse sentido a "vanguarda" pop dos Caribou (ou dos Manitoba, se quiserem), faz rima com os Silver Apples.
Mas o concerto de terça-feira foi tudo menos nostálgico: se o som da banda assentava no cruzamento dos sons de oscilador (aparelho que produz um sinal electromagnético constante e oscilante) que Simeon tocava por entre os longos e estranhos breaks de bateria de Danny Taylor (a outra metade original do duo), à conta da morte do baterista Simeon (que se apresentou em seu nome e sozinho em palco) foi obrigado a reconstruir digitalmente (pese embora com a ajuda das antiguinhas disquetes) esses breaks.
Munido do eterno oscilador (que ele manipulou manualmente, criando torrentes de ruído com uma fina linha melódica em fundo), dos breaks agora digitais e de um pequeno teclado analógico, Simeon tornou as versões das canções antigas dos Silver Apples (que já no original são perfeitamente actuais) em canções "do" agora: não no sentido de arranjadas à pressa para encaixarem num qualquer "som do momento", antes possuídas por um ludismo inesperado.
Talvez tenhamos sido nós a, ao longo dos anos, habituarmo-nos ao difícil som dos Apples, talvez esse som tenha impregnado toda a electrónica com beats milimétricos e sons repetitivos de ruído - mas ontem, na ZDB, por instantes esteve-se perto da pop do futuro num óptimo concerto que nada teve de nostalgia.
Por sua vez nostalgia foi o que mais se viu no concerto dos Caribou - a vertente pastoral, planante dos discos cedeu a dupla de guitarras e percussão, numa aproximação não apenas ao universo dos My Bloody Valentine (já de si fervorosos adeptos dos Apples), mas fez - por entre a projecção de imagens psicadélicas, borrões laranjas, cornucópias violeta - tangentes à torrente dos Floyd do início. Aquilo que no disco é uma suave e elaborada combinação de elementos do passado com tecnologia actual (assim pertencendo ao século XXI), torna-se, ao vivo, ligeiramente reaccionário - que não se interprete erradamente esta afirmação: aquelas canções são efectivamente boas (por vezes muito) e toda aquela electricidade é saborosa, apenas demasiado colada a um modelo indie-rock mais que visto e revisto.
Curiosa mutação: o velho que tenta reproduzir o passado soa, por força das circunstâncias, contemporâneo à medida que o novo, ao aproximar-se dos seus modelos, soa a antigo (mesmo que um óptimo antigo). Como um círculo que em vez de completar-se desenha uma espiral.

João Bonifácio

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